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Processo nº 61/2020 Data: 31.07.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Procedimento disciplinar.
Prazo (máximo) de prescrição.
Art. 289° do E.T.A.P.M..
Aplicação (subsidiária) do regime do C.P.M..



SUMÁRIO

1. A matéria da contagem do “prazo da prescrição” em processo disciplinar de trabalhador da Administração Pública está – toda – regulada no art. 289°, do E.T.A.P.M..

2. O prazo (máximo) de prescrição do procedimento penal previsto no art. 113°, n.° 3 do C.P.M. não se aplica (subsidiariamente) ao procedimento disciplinar.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 61/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em sede dos Autos de Recurso Contencioso n.° 28/2019, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão onde, declarando prescrito o procedimento disciplinar instaurado a A (甲), recorrente, julgou procedente o recurso.

Neste Acórdão, e em sede de decisão da matéria de facto, consignou-se:

“São os seguintes elementos, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
- À arguida/Recorrente foi imputada a prática dos seguintes actos/factos praticados em 20/06/2010:
1) - No período entre as 13H12 e as 14H12, as 16H04 e as 16H17, as 16H20 e as 16H26, as 17H23 e 17H25, as 18H32 e 19H16, ausentou-se do posto de trabalho por cinco vezes sem que tivesse sido colocada ou transferida para exercer funções no outro posto, nem que tivesse pedido previamente a autorização ou informado junto dos seus superiores hierárquicos;
2) - No período entre as 13H09 e as 13H12, as 14H12 e as 14H19, as 16H18 e as 16H26, as 17H03 e 18H13, as 19H51 e 20H12, por cinco vezes não manteve as portas fechadas e trancadas do piso onde a vigilância ficou a seu cargo;
3) - Ao entrar na zona prisional feminina para exercer funções, não recebeu a inspecção exigida nas Instruções de Serviço do EPM como sendo o procedimento de inspecção de segurança de primeiro grau;
4) - Durante o exercício de funções, não levou consigo a “bolsa de cinta para serviço” como equipamento necessário para serviço conforme exigido nas Instruções de Serviço.
*
- Do Relatório da instrução constam os seguintes elementos:
a) - Quanto aos supracitados cinco actos indicados no supracitado ponto 1), de acordo com o ponto 5 das Instruções de Serviço do EPM n.º0003-IS/DSV/2006, quanto às guardas prisionais (constante de fls. 338 dos autos): “Os guardas prisionais em serviço não podem sair do seu posto de trabalho sem qualquer autorização”, e segundo o documento n.º0005-CI/SSV/2005 (constante de fls. 70 dos autos) apreciado e autorizado pelo Director do EPM, durante o exercício de funções, pode o pessoal do corpo de guardas prisionais ausentar-se do posto de trabalho para descanso por 20 minutos, mas o qual deve ser organizado e autorizado pelo chefe geral de Piquete. Pelo que a arguida, pela prática dos actos, violou por cinco vezes o dever de assiduidade dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. g) e 9 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM).
b) - Quanto aos supracitados cinco actos indicados no supracitado ponto 2), de acordo com o ponto 10 das Instruções de Serviço do EPM n.º0003-IS/DSV/2006, quanto às guardas prisionais (constante de fls. 338 dos autos): “As portas dos pisos devem manter-se fechadas e trancadas.”
Pelo que, a arguida não fechou nem trancou por cinco vezes as portas do piso onde a vigilância ficava a seu cargo, violando cada vez os deveres de zelo e de obediência dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e c) e 4 e 5 do Estatuto.
c) - Quanto ao acto indicado no supracitado ponto 3), a arguida, ao entrar na zona prisional feminina para exercer funções, não recebeu a inspecção exigida nas Instruções de Serviço do EPM n.ºs 0033-IS/DSV/2006 (constante de fls. 64 e 64v dos autos) e 0009-IS/DSV/2006 (constante de fls. 45 e 46 dos autos) como procedimento de inspecção de segurança de primeiro grau, violando os deveres de zelo e de obediência dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e c) e 4 e 5 do Estatuto.
d) - Quanto ao acto indicado no supracitado ponto 4), a arguida, durante o exercício de funções, não levou consigo a “bolsa de cinta para serviço” como equipamento necessário para serviço conforme exigido nas Instruções de Serviço n.ºs 0014-01-IS/DSV/2006 (constante de fls. 53 dos autos) e 0014-02-IS/DSV/2006 (constante de fls. 54 a 63 dos autos), violando os deveres de zelo e de obediência dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e c) e 4 e 5 do ETAPM.
*
O respectivo relatório contém ainda a seguinte informação:
- A arguida possui as circunstância circunstâncias atenuantes previstas no art.º 282.º, al. a), b) e f), bem como as circunstâncias agravantes previstos no art.º 283.º, n.º1, al. h) do ETAPM. Por outro lado, a arguida, como pessoal do corpo de guardas prisionais com mais de dez anos e tal do tempo de serviço deve ter um perfeito conhecimento sobre as atribuições e deveres de guarda prisional e saber que os respectivos actos violam a lei e instruções de serviço, bem como as suas consequências graves, tendo, contudo, ainda agido deliberadamente ao cometer as supracitas infracções disciplinares, evidentemente, tudo isso mostra que a arguida não cumpriu os seus deveres por ter desprezado os seus deveres no exercício de funções, negligenciado a importância do seu trabalho e ignorado as consequências graves provavelmente causadas pelos seus actos, pelo que tem um grau de culpa bastante elevado.
Com base nisso, o Secretário para a Segurança, no uso das competências conferidas pelo art.º 1 da Ordem Executiva n.º111/2014 e o art.º 322.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, nos termos dos art.ºs 1.º, 7.º, n.º 1, 12.º n.º 1 do D.L n.º60/94/M, bem como 300.º, n.º1, c), 303.º, n.º2, al. a) e 316.º do Estatuto, determinou aplicar à arguida a pena de suspensão de 50 dias.”( Doc. 1)
*
- Foi notificado à Recorrente da decisão final punitiva com o seguinte teor:
Despacho n.º 134/SS/2018
Assunto: Procedimento disciplinar
Processo n.º: Procedimento disciplinar n.º 00012-PDD/EPM/2011 do EPM
Arguida: A, guarde principal do quadro, de nomeação definitiva, da DSC

Consta do presente processo disciplinar prova suficiente de que a arguida, enquanto estava de serviço no dia 20 de Junho de 2010, agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao cometer diversas infracções disciplinares. Com base nisso, por Despacho n.º 8/SS/2016 de 5 de Fevereiro de 2016, o Secretário para a Segurança aplicou à arguida a pena de suspensão de 90 dias.
A arguida interpôs recurso contencioso para o TSI, que, por acórdão de 14 de Junho de 2018, anulou o referido acto com fundamento em que o mesmo ponderou a circunstância agravante de “sucessão de infracções”, que não existiu.
Compulsados de novo os elementos constantes do processo, há prova suficiente de que a arguida, enquanto estava de serviço no dia 20 de Junho de 2010, agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar os seguintes actos:
1) - No período entre as 13H12 e as 14H12, as 16H04 e as 16H17, as 16H20 e as 16H26, as 17H23 e 17H25, as 18H32 e 19H16, ausentou-se do posto de trabalho por cinco vezes sem que tivesse sido colocada ou transferida para exercer funções no outro posto, nem que tivesse pedido previamente a autorização ou informado junto dos seus superiores hierárquicos;
2) - No período entre as 13H09 e as 13H12, as 14H12 e as 14H19, as 16H18 e as 16H26, as 17H03 e 18H13, as 19H51 e 20H12, por cinco vezes não manteve as portas fechadas e trancadas do piso onde a vigilância ficou a seu cargo;
3) - Ao entrar na zona prisional feminina para exercer funções, não recebeu a inspecção exigida nas Instruções de Serviço do EPM como sendo o procedimento de inspecção de segurança de primeiro grau;
4) - Durante o exercício de funções, não levou consigo a “bolsa de cinta para serviço” como equipamento necessário para serviço conforme exigido nas Instruções de Serviço.
Quanto aos supracitados cinco actos indicados no supracitado ponto 1), de acordo com o ponto 5 das Instruções de Serviço do EPM n.º0003-IS/DSV/2006, quanto às guardas prisionais (constante de fls. 338 dos autos): “Os guardas prisionais em serviço não podem sair do seu posto de trabalho sem qualquer autorização”, e segundo o documento n.º0005-CI/SSV/2005 (constante de fls. 70 dos autos) apreciado e autorizado pelo Director do EPM, durante o exercício de funções, pode o pessoal do corpo de guardas prisionais ausentar-se do posto de trabalho para descanso por 20 minutos, mas o qual deve ser organizado e autorizado pelo chefe geral de Piquete. Pelo que a arguida, pela prática dos actos, violou por cinco vezes o dever de assiduidade dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. g) e 9 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM).
Quanto aos supracitados cinco actos indicados no supracitado ponto 2), de acordo com o ponto 10 das Instruções de Serviço do EPM n.º0003-IS/DSV/2006, quanto às guardas prisionais (constante de fls. 338 dos autos): “As portas dos pisos devem manter-se fechadas e trancadas.” Pelo que, a arguida não fechou nem trancou por cinco vezes as portas do piso onde a vigilância ficava a seu cargo, violando cada vez os deveres de zelo e de obediência dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e c) e 4 e 5 do Estatuto.
Quanto ao acto indicado no supracitado ponto 3), a arguida, ao entrar na zona prisional feminina para exercer funções, não recebeu a inspecção exigida nas Instruções de Serviço do EPM n.ºs 0033-IS/DSV/2006 (constante de fls. 64 e 64v dos autos) e 0009-IS/DSV/2006 (constante de fls. 45 e 46 dos autos) como procedimento de inspecção de segurança de primeiro grau, violando os deveres de zelo e de obediência dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e c) e 4 e 5 do Estatuto.
Quanto ao acto indicado no supracitado ponto 4), a arguida, durante o exercício de funções, não levou consigo a “bolsa de cinta para serviço” como equipamento necessário para serviço conforme exigido nas Instruções de Serviço n.ºs 0014-01-IS/DSV/2006 (constante de fls. 53 dos autos) e 0014-02-IS/DSV/2006 (constante de fls. 54 a 63 dos autos), violando os deveres de zelo e de obediência dos deveres gerais previstos no art.º 279.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e c) e 4 e 5 do ETAPM.
A arguida possui as circunstância circunstâncias atenuantes previstas no art.º 282.º, al. a), b) e f), bem como as circunstâncias agravantes previstos no art.º 283.º, n.º1, al. h) do ETAPM. Por outro lado, a arguida, como pessoal do corpo de guardas prisionais com mais de dez anos e tal do tempo de serviço deve ter um perfeito conhecimento sobre as atribuições e deveres de guarda prisional e saber que os respectivos actos violam a lei e instruções de serviço, bem como as suas consequências graves, tendo, contudo, ainda agido deliberadamente ao cometer as supracitas infracções disciplinares, evidentemente, tudo isso mostra que a arguida não cumpriu os seus deveres por ter desprezado os seus deveres no exercício de funções, negligenciado a importância do seu trabalho e ignorado as consequências graves provavelmente causadas pelos seus actos, pelo que tem um grau de culpa bastante elevado.
Com base nisso, o Secretário para a Segurança, no uso das competências conferidas pelo art.º 1 da Ordem Executiva n.º111/2014 e o art.º 322.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, nos termos dos art.ºs 1.º, 7.º, n.º1, 12.º n.º 1 do D.L n.º60/94/M, bem como 300.º, n.º1, c), 303.º, n.º2, al. a) e 316.º do Estatuto, determinou aplicar à arguida a pena de suspensão de 50 dias.
Notifique a arguida de que um recurso contencioso pode ser apresentado ao Tribunal de Segunda Instância dentro de 30 dias.
Em 26 de Novembro de 2018, no Gabinete do Secretário para a Segurança”.

Seguidamente, apreciando o recurso, fez-se constar o que segue:

“Neste recurso contencioso interposto pela Recorrente são suscitadas essencialmente as seguintes questões que importa analisar e resolver:
1) – Prescrição do procedimento disciplinar;
2) - Vícios de forma por falta de fundamentação;
3) - Vício de violação da interpretação de várias disposições legais:
4) – Vício de exercício desrazoável do poder discricionário.
*
Comecemos pela 1ª questão: prescrição do procedimento disciplinar
A Recorrente defende que já prescreveu o procedimento disciplinar em tempo instaurado contra ela, QUER por força do disposto no artigo 289º do ETAPM, QUER ao abrigo do disposto no artigo 113.º, n.º 3, do Código Penal, aplicável por remissão do artigo 277.º do ETAPM.
A Recorrente invocou, para fundamentar a sua posição, os seguintes argumentos:
21.º
Embora disponha o n.º4 do art.º 289.º do Estatuto que suspende o prazo prescricional a instauração do processo disciplinar por parte da Administração, de acordo com o entendimento acima indicado, caso a Administração não realize nenhuma investigação no processo após a sua instauração ou só se limite a diligências esporádicas e sem continuidade ou meramente dilatórias, a Administração não pode usufruir do benefício da suspensão do prazo prescricional.
22.º
No caso em apreço, desde a instauração do processo e o início da instrução em 14/9/2011 até à audição da recorrente em auto de declaração em 27/3/2013 (totalizando 1 ano 6 meses e 16 dias), e desde a audição da recorrente em auto de declaração até à audição da testemunha B em auto de declaração (totalizando 3 meses e 4 dias), bem como desde a realização pela 3ª vezes de audição da recorrente em auto de declaração em 7/8/2013 até à audição de novo da testemunha B em 24/2/2015 (totalizando 1 ano 6 meses e 22 dias), na maior parte desses três períodos, a Administração não efectuou qualquer diligência útil ou só efectuou alguns actos que não contribuíam efectivamente para o andamento do processo.
23,º
O Estatuto dispõe no seu art.º 326.º, n.º5 que:
“As funções de instrutor preferem a quaisquer outras que o funcionário ou agente nomeado tenha a seu cargo, podendo determinar-se, quando tal seja exigido pela natureza e complexidade do processo, que aquele fique exclusivamente adstrito àquela função.”
24.º
De acordo com a disposição acima indicada, podemos saber que deve o instrutor dar a preferência ao trabalho de investigação do presente processo disciplinar, mas não constantemente demorar o processo a pretexto de recolha de provas ou efectuar diligências esporádicas e sem continuidade ou meramente dilatórias.
25.º
Pelo que, de acordo com o entendimento acima indicado, mesmo que a Administração, em 14/9/2011, já tenha instaurado o presente processo disciplinar, segundo a jurisprudência, deve o prazo prescricional ser suspenso até ao trânsito em jugado da decisão de recurso, mas foi devido à supracitada razão, resultando daí que a contagem da prescrição não ficou suspensa nos supracitados três períodos.
26.º
Pelo que, desde a instauração do presente processo disciplinar em 14/9/2011 até ao trânsito em julgado da decisão do recurso em 2/7/2018, deve o prazo de suspensão deduzir o tempo decorrido nos supracitados três períodos (num total de 3 anos 3 meses e 29 dias).
27.º
Quer dizer, desde a instauração do presente processo disciplinar em 14/9/2011 até ao trânsito em julgado da decisão do recurso em 2/7/2018, o prazo prescicional suspenso só era de 3 anos 5 meses e 25 dias.
28.º
No presente caso, desde a data em que a recorrente cometeu as infracções disciplinares (em 20/6/2010) até ao dia 31/7/2018 data em que a Administração deduziu de novo a acusação e notificou a recorrente, já passaram 8 anos 1 mês e 14 dias e sem contar o supracitado prazo prescicional suspenso de 3 anos 5 meses e 25 dias, já passaram 4 anos 6 meses e 54 dias.
29.º
O presente caso já ultrapassa o limite máximo do prazo prescricional de 4 anos e 6 meses previsto no art.º 113.º, n.3 do Código Penal aplicável ao presente caso, pelo que deve ter ocorrido a prescrição.

Escreveu-se no douto Ac. do TSI do Processo nº 185/2014, de 04/12/2014:
“(…) A prescrição do procedimento disciplinar, como se sabe, é um mecanismo que visa conferir estabilidade e segurança às relações que se estabelecem entre superior e inferior hierárquico de modo a que o subalterno não fique indefinidamente “nas mãos” do chefe, sujeito aos caprichos deste, vergado perante a discricionariedade temporal da sua vontade punitiva, dependente do maior ou menor grau de disponibilidade de tempo que este dispuser para pôr em marcha os seus intentos disciplinares sancionatórios.
Se o tempo desvanece a inquietude provocada pela infracção e simultaneamente atenua, ou apaga mesmo, o desejo de punir e a necessidade de sanção, isso apenas se ficará a dever à inércia e inacção daqueles que possuem o direito de punição.”

No caso sub judice, compulsados os elementos constantes dos autos e do PA, consideram-se assentes os seguintes elementos com valor para decidir a questão em análise:
- Em 20 de Junho de 2010 pela arguida foram praticados os factos infraccionais, que originaram o respectivo procedimento disciplinar;
- Em 8 de Setembro de 2011 foi instaurado o procedimento disciplinar;
- Em 14/09/2011 iniciou-se a respectiva instrução;
- Foi ouvida a arguida em 27 de Março de 2013 e 7 de Agosto de 2013, respectivamente;
- Em 11/03/2015 foi deduzida a acusação (fls. 295 a 314 do PA);
- Em 12/03/2015 foi notificada tal acusação (fls. 316);
- Em 5/2/2016 foi proferida a decisão punitiva pela Entidade Recorrida (fls. 475 a 477), e notificada em 18/02/2016.
- Por acórdão do TSI, proferido no processo nº 246/2016, de 14/06/2018, a decisão punitiva acima referida foi anulada.
- Foi feita nova acusação em 31/07/2018, notificada em 31/07/2018 (fls. 605 a 616 do PA);
- Em 26/11/2018 foi proferida nova decisão punitiva (fls. 736 e seg do PA);
- Tal decisão foi notificada em 28/11/2018 (fls. 739 do PA).
Aqui suscitam a seguinte dúvida: durante todo esse período, foram efectuadas diligências instrutórias relevantes, com efectiva repercussão na marcha do processo?
Sendo certo que os autos demonstram que a arguida foi ouvida em 27 de Março de 2013 e 7 de Agosto de 2013, diligências com interesse para a dilucidação dos factos, ou seja, para a investigação e sequente destino do processo, o que, à primeira vista, parece-nos, à luz do artigo 289.º, n.ºs 1 e 3, do ETAPM, tem repercussões na contagem do prazo de prescrição do procedimento disciplinar.
Será?
Ora, o artigo 289º do ETAPM estipula:
1. O procedimento disciplinar prescreve passados 3 anos sobre a data em que a falta houver sido cometida.
2. Se o facto qualificado de infracção disciplinar for também considerado infracção penal e os prazos de prescrição do procedimento criminal forem superiores a 3 anos, aplicar-se-ão ao procedimento disciplinar os prazos estabelecidos na lei penal.
3. Se antes do decurso do prazo prescricional referido no n.º 1 for praticado relativamente à infracção qualquer acto instrutório com efectiva incidência na marcha do processo, a prescrição conta-se desde o dia em que tiver sido praticado o último acto.
4. Suspendem o prazo prescricional a instauração dos processos de sindicância e de averiguações e ainda a instauração dos processos de inquérito e disciplinar, mesmo que não tenham sido dirigidos contra o funcionário ou agente a quem a prescrição aproveite, mas nos quais venham a apurar-se faltas de que seja responsável.
Ora, a hipótese prevista no nº 1 é muito clara e não carece de esclarecimentos adicionais.
O mesmo já não se pode dizer em relação à hipótese prescrita no nº 3 do artigo citado, cuja interpretação pode dar azo a entendimentos diferentes.
A propósito desta matéria escreveu o Dr. Leal Henriques (Cfr. Guia Prático do Direito Disciplinar de Macau, 1995, IPM e SAFP, pág 25):
“Em caso de suspensão, o prazo prescricional volta a correr a partir do dia em que cessa a causa que motivou a suspensão. Isto é: ao tempo decorrido antes da verificação da causa da suspensão junta-se o tempo decorrido apos o seu desaparecimento.
Afigura-se-me que a suspensão não pode ultrapassar os 3 anos (ou seja: instaurado qualquer um dos procedimentos referidos na lei, o processo não pode estar parado por tempo que, somado ao prazo prescricional já decorrido, perfaça mais de 3 anos). Trata-se, no entanto, de uma solução que se avança com algumas dúvidas.
Se após a suspensão do prazo prescricional motivada pela instauração do procedimento disciplinar se não realizar qualquer diligência no processo até ao limite dos 3 anos a suspensão não tem relevância, porquanto o prazo prescricional continua a correr e a prescrição acontece.
Só interrompem o prazo prescricional os actos verdadeiramente instrutórios que tenham influência na marcha do processo.
E também só os actos que tenham lugar antes de ter decorrido o prazo previsto no nº. 1, isto é, antes de terem passado 3 anos sobre a prática da falta disciplinar, excluindo-se, portanto, os actos instrutórios realizados depois de passado esses 3 anos, os quais, a partir daí, deixam de ter relevância para efeitos de interrupção da prescrição.”
Ou seja, seguido o raciocínio acima citado, no caso sub judice, os factos foram cometidos em 20/06/2010, e como o processo disciplinar foi instaurado em 08/09/2011, não prescreveu ainda o procedimento disciplinar em 07/09/2014, não obstante ter decorrido o prazo de 3 anos, por força da suspensão do prazo fixada no artigo 289º/4 do ETAPM, ou na pior das hipóteses, por força do nº 3 do citado preceito legal.
Então pergunta-se, quando terminaria o prazo de prescrição?
O próprio ETAPM não prevê um prazo máximo do prazo de prescrição para o procedimento disciplinar, ao passo que o legislador do Direito Penal estipula expressamente um regime nesta matéria através do artigo 113º (Interrupção da prescrição) do Código Penal de Macau (CPM), que dispõe:
1. A prescrição do procedimento penal interrompe-se:
a) Com a notificação para interrogatório do agente como arguido;
b) Com a aplicação de uma medida de coacção;
c) Com a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente; ou
d) Com a marcação do dia para julgamento no processo de ausentes.
2. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3. A prescrição do procedimento penal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade; mas quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2 anos, o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.
Ora, aplica-se subsidiariamente este nº 3 do artigo 113º do CP ao procedimento disciplinar?
Defendemos que sim, visto que:
1 – Se é certo que o Direito Penal obedece ao princípio da intervenção mínima e é um “direito agressivo” porque toca à liberdade das pessoas, de modo geral, toca aos direitos fundamentais dos cidadãos, em que se o legislador fixa o limite máximo do prazo de prescrição do procedimento sancionatório, por que razão é que no direito de processo disciplinar não contem instituto semelhante? Entendemos que o artigo 113º do CPM se aplica subsidiariamente à matéria de processo disciplinar, por força do disposto no artigo 277º do ETAPM.
2 – Num hipótese extrema - defender-se a inexistência do limite máximo do prazo de prescrição do procedimento disciplinar - pode conduzir ao resultado de que não haja prescrição do prazo do procedimento administrativo, porque a Administração Pública poderia, quando o prazo de prescrição está quase esgotar-se, praticar um acto instrutório para suspender o prazo, com o que exercerá uma “pressão permanente” sobre o infractor do ilícito disciplinar! Penamos que numa sociedade de Direito, tal não é permitido nem tolerável.
Voltemos ao caso:
- Em 20/06/2010 foram praticados os factos infraccionais;
- O prazo de 3 anos terminaria em 19/06/2013 por força do disposto no artigo 289º do ETAPM;
- Ao prazo acima referido acrescentam-se ainda o tempo de 18 meses (um ano e meio) por força do disposto no artigo 113º/3 (1ª parte) do CPM acima citado, e o prazo máximo da suspensão referido no artigo 112º do CPM, o que determina o prazo máximo da prescrição é 7 anos e 6 meses, portanto, no caso em apreciação, o prazo terminou invariavelmente em 20/12/2017!
Ou seja, retomando o exercício que vínhamos fazendo, a conclusão a que se pode chegar, mesmo em jeito de última análise ou de última ratio é agora mais clara: independentemente dos escolhos do estudo sobre cada interferência suspensiva ou interruptiva aplicável ao caso, a verdade é que, se tomarmos como ponto de partida a data dos factos (20/06/2010) e o prazo de prescrição, que é de três anos (artigo 289º/1 do ETAPM), no pior dos cenários (isto é, mesmo a despeito do efeito concreto de eventual causa suspensiva que aqui pudesse funcionar), sempre teremos que atentar no disposto no artigo 113º do CPM. Isto é, respeitando o prazo base da prescrição (3 anos), acrescido de metade (1,5 anos) e ressalvado o tempo máximo de suspensão previsto no artigo 112º/2 do CPM (3 anos), conclui-se necessariamente que, ao fim de sete anos e meio (7,5 anos), se tem por verificada a prescrição relativamente ao ilícito disciplinar imputado à arguida/Recorrente. Ou seja, a prescrição deste procedimento ocorreu em 20/12/2017.
Como a decisão punitiva só veio a ser proferida em 26/11/2018, já prescreveu o procedimento disciplinar contra a arguida/Recorrente.
Em face do expendido, e, sem necessidade de mais considerações, é de considerar prescrito o procedimento disciplinar contra a Recorrente, julgando-se procedente o recurso interposto pela mesma.
Com este decidido, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas.
(…)”; (cfr., fls. 203 a 217 e 4 a 49 do Apenso que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada com o assim decidido, traz a entidade administrativa o presente recurso, onde, em alegações, produz as seguintes conclusões:

“1) Por acórdão de 5 de Março de 2020, o Colectivo do TSI revogou a pena de suspensão de 50 dias aplicada pelo Secretário para a Segurança no procedimento disciplinar, com fundamento em que ao aplicar a respectiva pena, já prescreveu o procedimento disciplinar.
2) O acórdão recorrido indicou que, nos termos do art.º 277.º do ETAPM, aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas do art.º 113.º, n.º 3 do CPM.
3) Assim, entendeu o acórdão recorrido que, ao abrigo dos dispostos no art.º 112.º, n.º 2, conjugado com o art.º 113º, n.º 3 do CPM, o prazo máximo da prescrição do procedimento disciplinar em causa é de 7 anos e 6 meses, ou seja, a prescrição tem que ter lugar em 20 de Dezembro de 2017.
4) Salvo o devido respeito, o Secretário para a Segurança entende que o acórdão recorrido interpretou erradamente a lei.
5) No respectivo procedimento disciplinar, em 20 de Maio de 2011, o então director do EPM mandou realizar investigação sobre o conteúdo da carta recebida, e em 23 de Agosto de 2011, foi concluída a investigação e proferido o relatório. No dia 8 de Setembro do mesmo ano, o director do EPM proferiu despacho que instaurou o procedimento disciplinar contra as infracções cometidas pela arguida em 20 de Junho de 2010, e o instrutor iniciou oficialmente a instrução em 14 de Setembro de 2011.
6) Conforme o entendimento do TUI nos seus Acórdãos n.º 19/2006 e n.º 30/2008, a norma constante do n.º 3 do art.º 289.º do ETAPM deve ser entendida que os actos instrutórios com efectiva incidência na marcha do processo disciplinar interrompem a prescrição do procedimento disciplinar e o prazo prescricional corre de novo e por inteiro desde o dia em que tiver sido praticado o último acto.
7) Quanto à definição do “acto instrutório com efectiva incidência na marcha do processo”, cifre a obra do Dr. Manuel Leal-Henriques: “… acto instrutório com efectiva incidência na marcha do processo, que é apenas aquele que, fazendo andar o expediente, se destina exclusivamente a esclarecer e provar os factos tidos como disciplinarmente relevantes e determinar a respectiva autoria, tais como a audição do participante, o interrogatório do arguido, a inquirição de testemunhas, a realização de exames, etc.”.
8) No respectivo procedimento disciplinar, a partir do início oficial da instrução em 14 de Setembro de 2011, o instrutor tem praticado diversos actos instrutórios com efeito processual, tais como ver os respectivos vídeos, recolher documentos relevantes para apurar a verdade e fazer a decisão, dirigir-se em pessoa ao local, e ouvir as declarações da arguida e das testemunhas, actos esses que interromperam a prescrição.
9) Em 5 de Fevereiro de 2016, o Secretário para a Segurança proferiu o Despacho n.º 8/SS/2016, aplicando à arguida a pena de suspensão de 90 dias.
10) Em 21 de Março de 2016, a arguida interpôs recurso contencioso da aludida decisão punitiva para o TSI.
11) Por acórdão de 14 de Junho de 2018, o TSI anulou o referido acto punitiva por ter ponderado uma circunstância agravante que não existiu.
12) Em 31 de Julho de 2018, o instrutor deduziu de novo a acusação contra a arguida, e depois da conclusão de procedimentos para garantir o direito de resposta da arguida, sugeriu no relatório final que punisse a mesma. Em 26 de Novembro de 2018, o Secretário para a Segurança proferiu o Despacho n.º 134/SS/2018, aplicando à arguida a pena de suspensão de 50 dias.
13) Segundo o Acórdão do TUI n.º 30/2008: “É de notar ainda que, na vigência do antigo Código Penal de 1886, não havia norma que estabelecia o limite máximo do prazo de prescrição, tal como está previsto agora no art.º 113.º, n.º 3 do Código Penal vigente, que só entrou em vigor no início do ano 1996. A matéria de contagem do prazo de prescrição do procedimento disciplinar já está completamente regulada no referido art.º 289.º do ETAPM, em consonância com o §4.º do art.º 125.º do Código Penal de 1886, pelo que não há lugar à aplicação supletiva, por meio da remissão prevista no art.º 277.º do ETAPM, do limite máximo do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art.º 113.º do Código Penal vigente.”.
14) Pelo exposto, salvo o devido respeito, entende o Secretário para a Segurança que o acórdão recorrido interpretou erradamente a respectiva lei.
15) Quando o Secretário para a Segurança praticou o acto recorrido em 26 de Novembro de 2018, ainda não prescreveu o procedimento disciplinar em causa”; (cfr., fls. 226 a 230 e 50 a 58 do Apenso).

*

Após contra-alegações da recorrida, a pedir a improcedência do recurso, (cfr., fls. 232 a 249), e remetidos os autos a esta Instância, foram os mesmos com vista ao Exmo. Representante do Ministério Público que juntou o seguinte Parecer:

“O Exm.° Secretário para a Segurança vem interpor recurso do acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 5 de Março de 2019, que anulou o seu Despacho de 26 de Novembro de 2018, através do qual havia sido aplicada a pena de 50 dias de suspensão a A.
A anulação teve por fundamento o decurso do prazo de prescrição do procedimento disciplinar, decurso que o ora recorrente questiona, alvitrando que houve erro de julgamento na avaliação do inerente vício atribuído ao acto.
A questão que se coloca, tal como delineada na alegação de recurso jurisdicional e respectivas conclusões, reside em saber se ao procedimento disciplinar previsto no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau é aplicável supletivamente o limite máximo do prazo prescricional estabelecido no artigo 113.°, n.° 3, do Código Penal, atendendo à remissão constante do artigo 277.° do mesmo Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
O acórdão recorrido entendeu que sim e avançou como principal argumento o de que numa hipótese extrema – defender-se a inexistência do limite máximo do prazo de prescrição do procedimento disciplinar – pode conduzir ao resultado de que não haja prescrição do prazo do procedimento administrativo, porque a Administração Pública poderia, quando o prazo de prescrição está quase a esgotar-se, praticar um acto instrutório para suspender o prazo, com o que exercerá uma “pressão permanente” sobre o infractor do ilícito disciplinar.
Não podemos sufragar tal argumento.
A Administração é, e tem que ser, uma pessoa de bem. Não pode, evidentemente – e contrariamente ao que o referido argumento tende a inculcar –, actuar em fraude à lei e interpretá-la enviesadamente, de molde a que, em desrespeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, possa visar fins estranhos àqueles que lhe cumpre prosseguir. Aliás, uma tal actuação nunca poderia ter a cobertura das causas de interrupção e suspensão previstas nos números 3 e 4 do artigo 289.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, pois estas, numa correcta interpretação do texto legal, não dão guarida à criação de factos e causas artificiais apenas gizados com o fito de protelar o decurso do prazo da prescrição.
Posto isto, temos para nós – tal como defendemos no parecer exarado a fls. 194 e seguintes, que antecedeu a decisão recorrida – que permanece inteiramente válida a argumentação usada no acórdão de 17 de Julho de 2009, deste Tribunal de Última Instância, segundo a qual o limite máximo do prazo de prescrição calculado nos termos do artigo 113.°, n.° 3, do Código Penal, não se aplica supletivamente ao procedimento disciplinar previsto no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
Daí que tenhamos por bem chamar aqui à colação aquele nosso parecer em abono da tese em que o recorrente alicerça o presente recurso jurisdicional, o que conduz a que nos pronunciemos no sentido da procedência do recurso, revogando-se o acórdão e mantendo-se na ordem jurídica o acto contenciosamente recorrido”; (cfr., fls. 259 a 260).

*

Adequadamente processados os autos, e com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram à conferência.

Passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, vem a entidade administrativa recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 05.03.2020, (que atrás se deixou transcrito na parte que se considera relevante para a apreciação do presente recurso).

Atento o seu teor, constata-se que com o dito veredicto se declarou “prescrito o procedimento disciplinar” no âmbito do qual se proferiu a decisão punitiva da ora recorrente.

Tal decisão, tem, como razão de ser, o entendimento de que “o estatuído no n.° 3 do art. 113° do C.P.M. aplica-se, subsidiariamente, ao processo disciplinar”.

Ora, sobre esta (exacta) “questão”, e como – bem – nota o Ministério Público, já se debruçou este Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 17.07.2009, (Proc. n.° 30/2008), onde, reflectindo sobre o sentido e alcance do estatuído no art. 289°, n.° 3, do E.T.A.P.M., (transcrito na decisão recorrida), considerou-se, nomeadamente, o que segue:

“(…)
2.2 Prescrição do procedimento disciplinar – interrupção
É de examinar agora o sentido e aplicação do n.° 3 do art.° 289.° do ETAPM
Segundo esta norma, antes do fim do prazo de prescrição do procedimento disciplinar, qualquer acto instrutório com efectiva incidência na marcha do processo determina que a prescrição se conta desde o dia em que for praticado. Discute-se se estamos perante uma suspensão ou interrupção do prazo de prescrição.
Entendemos que seguramente se trata de uma interrupção do prazo de prescrição.
De facto, “a prescrição conta-se desde o dia em que tiver sido praticado o último acto” deve ser entendido tendo em conta o contexto temporal em que foi elaborado o ETAPM, tomando como referência o antigo Código Penal de 1886 e não o actualmente vigente, aprovado em 1995 cuja técnica legislativa é naturalmente mais aperfeiçoada, com linguagem jurídica mais precisa.
O ETAPM foi aprovado e publicado em 1989, altura em que estava ainda em vigor o Código Penal de 1886. A redacção do art.° 125.°, §4.° deste Código, antes de ser alterado pelo Decreto-Lei n.° 184/72, era semelhante à referida norma:
“§4.° A prescrição, de que tratam os parágrafos antecedentes, conta-se sempre desde o dia em que foi cometido o crime, ou, se antes dela algum acto judicial teve lugar a respeito do crime, desde o dia do último acto.”
Entendia-se que era regulamentação do regime de interrupção da prescrição do procedimento penal.1
E no plano do direito disciplinar, a solução é a mesma.
No art.° 15.º do Decreto-Lei n.º 37/88/M, a que sucedeu o actual ETAPM, já dispunha com o mesmo conteúdo do art.º 289.º do ETAPM.
“Os actos instrutórios que interrompem a prescrição são apenas aqueles que têm efectiva incidência na marcha do processo. Serão actos instrutórios aqueles que demonstram que a falta disciplinar não está esquecida, aqueles actos que produzem o resultado de fazer prosseguir utilmente o processo para a acção da justiça.”2
Assim, a norma constante do n.° 3 do art.° 289.° do ETAPM deve ser entendida que os actos instrutórios com efectiva incidência na marcha do processo disciplinar interrompem a prescrição do procedimento disciplinar e o prazo prescricional corre de novo e por inteiro desde o dia em que tiver sido praticado o último acto, tal como já foi expendido no acórdão do Tribunal de Última Instância de 30 de Novembro de 2007 de processo n.° 19/2006.
Aproveitando a linguagem do actual Código Penal, tem o mesmo sentido de que “depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição” (art.° 113.°, n.° 2 deste Código).
(…)
É de notar ainda que, na vigência do antigo Código Penal de 1886, não havia norma que estabelecia o limite máximo do prazo de prescrição, tal como está previsto agora no art.º 113.º, n.º 3 do Código Penal vigente, que só entrou em vigor no início do ano 1996.
A matéria de contagem do prazo de prescrição do procedimento disciplinar já está completamente regulada no referido art.º 289.º do ETAPM, em consonância com o §4.° do art.º 125.º do Código Penal de 1886, pelo que não há lugar à aplicação supletiva, por meio da remissão prevista no art.º 277.º do ETAPM, do limite máximo do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art.º 113.º do Código Penal vigente. Vista a questão agora sob a perspectiva do actual Código Penal, é natural que se entende que tal solução será menos favorável à defesa de arguido. Só que era essa a opção do então legislador do ETAPM, a que deve obediência enquanto não for alterada.
(…)”.

Do assim decidido resulta que – em sentido inverso ao entendido no Acórdão agora recorrido – a “matéria da contagem do prazo da prescrição em processo disciplinar de trabalhador da Administração Pública está toda (ela) regulada no art. 289°, do E.T.A.P.M.”, e – contrariamente ao que se afirmou no dito Acórdão – que o “limite máximo do prazo de prescrição do procedimento penal” previsto no art. 113°, n.° 3 do C.P.M. não se aplica (subsidiariamente) ao procedimento disciplinar.

Quid iuris?

Não obstante a (nova) reflexão que sobre a matéria se efectuou, e ponderados os fundamentos invocados na decisão recorrida, cremos que correcta e adequada é a solução por esta Instância assumida no citado aresto, sendo de manter, (e de se salientar que o que em causa está não é o “prazo” para a “instauração ou início do processo disciplinar”, mas sim, o do “procedimento” – tempestivamente – iniciado).

Não se nega que a “via” encontrada pelo Tribunal de Segunda Instância se mostra “tentadora”, e que, (como na dita decisão deste T.U.I. também se considerou), apresenta-se, “mais favorável ao arguido”.

Porém, importa não olvidar que em sede de “interpretação da lei”, há que se respeitar a “letra” e o “espírito da lei”, tendo-se sempre em atenção a “vontade do legislador” assim como as “condições” em que aquela foi elaborada, devendo, o intérprete, presumir que o “legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”; (cfr., art. 8° do C.C.M., podendo-se, sobre o tema, e com interesse, ver Pedro Tiago da Silva Ferreira in, “O princípio da legalidade e a segurança jurídica – um ensaio sobre a interpretação e norma jurídica”).

Aliás, se outra tivesse sido a “intenção legislativa”, no sentido de (se pretender) alterar o “regime” previsto, (consagrando-se um “prazo máximo” para o procedimento disciplinar), evidente se apresenta que oportunidades para tal não tinham faltado, pois que pouco depois da entrada em vigor do C.P.M., em 1996, (e onde no art. 113°, se passou a prever um “prazo máximo para a prescrição do procedimento penal”), foram introduzidas alterações várias ao regime disciplinar previsto no E.T.A.P.M. com o D.L. n.° 62/98/M de 25.12, nomeadamente, aos art°s 287° e 288°, (tendo-se, porém, mantido intacta a redacção do art. 289° agora em questão).

Na verdade, e como é sabido, interpretar uma lei é (tentar) atribuir-lhe um significado, determinando-se o seu sentido a fim de se possibilitar a sua correcta aplicação a um caso concreto.

Esta tarefa realiza-se com recurso a “elementos”, “meios”, “factores” ou “critérios” que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente.

Nos termos do referido art. 8° do C.C.M.:

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

E, nesta conformidade, e como se apresenta ser entendimento pacífico, o primeiro “elemento” a ter em conta na aludida interpretação são as “palavras” em que a lei se expressa, (“elemento literal”).

Os outros a que seguidamente se recorre, constituem os elementos, geralmente, denominados “lógicos”, (histórico, racional e teleológico).

O elemento “literal”, (também apelidado de gramatical), são, como se disse, as palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação.

A letra da lei tem duas funções: uma negativa, (ou de exclusão), e a outra positiva, (ou de selecção).

A primeira, afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão).

A segunda, privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.

Porém, para além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos “lógicos”, com os quais se tenta determinar o “espírito da lei”, (a sua racionalidade, ou a sua lógica).

Tem-se entendido que estes “elementos” lógicos agrupam-se em três categorias:
- o elemento “histórico”, que atende à história da lei, e que podem ser os trabalhos preparatórios, projectos, pareceres, elementos do preâmbulo ou relatório ou nota justificativa da lei, e occasio legis, (ou seja, as circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada);
- o elemento “sistemático”, que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, (“parte do sistema”); e,
- o elemento “racional”, (ou “teleológico”), que leva a que se tenha – sempre presente o fim ou objectivo que a norma visa realizar, (a sua “razão de ser”).

Ora, este (último) elemento, constitui aquilo a que se chama de “ratio legis”, ou seja, (como se disse), a “razão de ser”, “fim” ou “objectivo” que a lei se propõe atingir; (sobre o tema, cfr., v.g., entre muitos, Cabral de Moncada in, “Lições de Direito Civil”, pág. 163; Castanheira Naves in, “Interpretação Jurídica”, pág. 362 a 363; Baptista Machado in, “Introdução ao Direito”, pág. 182; Oliveira Ascensão in, “O Direito”, pág. 406 a 407; Santos Justo in, “Introdução ao Estudo de Direito”, 4ª ed., pág. 334 e segs.; Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão in, “Introdução ao Estudo de Direito”, 2ª ed., pág. 57 a 58; Neves Pereira in, “Introdução ao Direito e às Obrigações”, 3ª, ed., pág. 229 e segs; e Heitor Consciência in, “Breve Introdução ao Estudo do Direito”, 3ª ed., revista, pág. 43 e segs.).

Ponderando, (em nossa opinião, de forma muito meritória), sobre esta matéria e analisando e conjugando os elementos acabados de referir, recentemente, pronunciou-se também o Exmo. Conselheiro L. Henriques, valendo a pena aqui atentar nas suas cuidadas reflexões:

“(…)
Há quem venha entendendo que aquilo que o referido Estatuto contempla a propósito da matéria não chega para resolver a totalidade dos problemas que o instituto comporta e pode suscitar, justificando assim o recurso a regimes subsidiários, nomeadamente ao direito penal, a coberto da regra remissiva de carácter geral prevista no art.° 277.° do ETAPM, que manda aplicar supletivamente as respectivas normas, com as devidas adaptações.
Ora, para que tal seja possível torna-se desde logo indispensável que se intente saber se há ou não no ETAPM, e no âmbito do regime prescricional, uma lacuna normativa que implique o apelo a regulamentação estranha.
Por antecipação, atrevo-me a afirmar que não me parece ser esse o caso.
Com efeito, afigura-se-me ser possível retirar da história do diploma e da análise comparativa com outros textos paralelos (v. g. do Estatuto do Pessoal Militarizado das Forças de Segurança) que nas preocupações do legislador do ETAPM esteve presente a intenção de conferir ao ETAPM (diploma – matriz do direito disciplinar da RAEM) o privilégio de passar a constituir o texto por excelência em matéria disciplinar da Administração em geral, uma espécie de “bíblia”, susceptível de conter a regulamentação o mais completa possível do sistema público, passando assim a servir de padrão de referência e de regime subsidiário para responder a outros estratos com características específicas.
Por outro lado, parece poder decorrer ainda da intenção legislativa o desejo – por fidelidade a um princípio de autonomia que se pretendeu dar ao sector disciplinar – de o distinguir com um ordenamento que se apresentasse com a autosuficiência bastante que dispensasse o recurso a outros normativos alheios que não comungassem das especificidades próprias do direito disciplinar.
Basta atentar na configuração que foi dada ao regime prescricional levado ao Estatuto e ao detalhe com que o legislador tratou do assunto nesse Diploma para logo nos apercebermos de tais intenções autonómicas e das preocupações que houve em nele cuidar o instituto da prescrição de forma praticamente esgotante, para não se correr o risco de ter que pedir auxílio a outros textos que não levassem na devida conta as características bem específicas deste segmento.
Por último, atrever-me-ia a cuidar que a intenção legislativa se harmoniza com as suas preocupações em criar para o sector disciplinar um quadro legal que afastasse do sistema tudo quanto pudesse emperrar um expediente que está vocacionado para responder, tão pronto e rápido quanto possível, às necessidades de recomposição da máquina administrativa, abalada com a prática da falta.
A não ser assim talvez se não compreendesse muito bem que o legislador disciplinar, quando achou necessário recorrer ao ordenamento criminal, o tivesse feito expressamente como o fez no n.° 2 do art. 289.° do ETAPM.
Em resultado de tais considerações, sou a defender que inexiste no ETAPM qualquer vazio legal em matéria de prescrição, pelo que não há que recorrer a qualquer outro ordenamento, nomeadamente do direito penal, para acudir a uma hipotética lacuna que se não verifica.
Donde que se não ponha sequer o problema de fazer aplicar, por exemplo, o n.° 3 do art.° 125.° do Cód. Penal para obviar à possibilidade de eternização do processo disciplinar por efeito de sucessivas interrupções do prazo prescricional susceptíveis de apagar o tempo entretanto decorrido a favor do agente após a prática da falta, porquanto no regime de Macau, e segundo o meu entendimento, não existe a figura da interrupção, exactamente porque o legislador se apercebeu, na linha por exemplo de ROGÉRIO SOARES, que tal instituto não tem no Direito Administrativo «particularidades dignas de nota» (Direito Administrativo, Coimbra 1978, págs. 12 e 13).
(…)”; (in “Direito Disciplinar de Macau”, C.F.J.J., 2020, pág. 111 a 113).

Temos – ainda que, certamente, por manifesto lapso de escrita se tenha feito referência ao “art. 125°” – por acertada esta posição, (notando-se também que, como considerava Jean Bodin in, “Les Six Livres de La Republique”, ao Tribunal, e, acrescentamos nós ressalvadas raras excepções, não cabe “julgar a Lei”, mas sim, “julgar segundo a Lei”, não se devendo pois invadir a esfera própria de competência que cabe ao poder legislativo).

Dest’arte, atento o que se deixou expendido, clara nos parecendo a solução que se nos mostra adequada e que, in casu, se nos impõe adoptar, há pois que revogar o Acórdão recorrido com a necessária devolução dos autos ao Tribunal recorrido para, outro motivo não obstando, serem apreciadas as restantes questões colocadas nos Autos de Recurso Contencioso n.° 28/2019.

Decisão

3. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, ordenando-se a devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância para os exactos termos e efeitos consignados.

Custas pela recorrida com a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 31 de Julho de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa

1 Vítor António Duarte Faveiro e Laurentino da Silva Araújo, Código Penal Português Anotado, 7 ed., Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1971, p. 317. Eduardo Correia, Actos Processuais que Interrompem a Prescrição do Procedimento Criminal, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 94 (1962), p. 353 e ss, texto em que o autor tinha por pressuposto que os actos processuais eram causas de interrupção da prescrição do procedimento criminal.
2 Arnaldo Augusto Alves, Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, anotado, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1979, p. 13.
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