Processo nº 27/2020 Data: 10.07.2020
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Embargos de terceiro.
Caso julgado.
Efeitos.
Bem próprio.
SUMÁRIO
1. A autoridade do caso julgado, produzindo os seus efeitos directos em relação às partes, tem também eficácia reflexa contra terceiros.
Importa é distinguir se os ditos terceiros são “juridicamente interessados” ou “juridicamente indiferentes” em relação à decisão cujo caso julgado se formou.
2. Serão “juridicamente interessados” se a definição judicial da relação litigada, a valer em face deles, lhes causar um “prejuízo jurídico”, reduzindo ou invalidando a própria existência do direito que lhes assiste.
Por sua vez, serão terceiros “juridicamente indiferentes” se a sentença proferida não lhes causar nenhum prejuízo jurídico, embora lhes possa causar um “prejuízo de facto ou económico”.
3. Se o direito de aquisição de uma fracção autónoma foi constituído com recurso à utilização de “dinheiro próprio da embargante”, adequado é concluir que tem a natureza de seu “bem próprio”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 27/2020
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença prolatada pela Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base decidiu-se julgar improcedentes os embargos de terceiro por A (甲) deduzidos, absolvendo-se os embargados “B” e C (丙) do peticionado; (cfr., fls. 153 a 160-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido recorreu a referida embargante A; (cfr., fls. 172 a 193).
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Conhecendo do dito recurso, (Proc. n.° 725/2019), por Acórdão de 31.10.2019, (e na parte que ora releva), decidiu o Tribunal de Segunda Instância:
“(…) conceder provimento ao recurso final, revogando a sentença recorrida, julgando procedentes os embargos de terceiro deduzidos e determinando o levantamento da penhora sobre os direitos de aquisição em referência; e (…)”; (cfr., fls. 258 a 271).
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Inconformada com o assim decidido, traz a (1ª) embargada “B” o presente recurso, onde, a final das suas alegações, produz as conclusões seguintes:
“1. No acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância aditou um facto provado, cujo conteúdo é o que se segue: “Por sentença proferida na acção ordinária sob o n.º CV2-16-0077-CAO, transitada em julgado em 02/03/2017, se declarou que os direitos de aquisição em referência eram bens próprios da Embargante”.
2. Face a tal, salvo o devido respeito, “B” entende que tal facto é inexistente.
3. Da parte conclusiva da sentença proferida na acção declarativa sob o n.º CV2-16-0077-CAO, pode-se saber que, na verdade, tal sentença apenas declarou que, para a promessa de compra das fracções autónomas “G30” e “H26”, a embargante, A, tinha pago uma quantia de HKD$1.257.500,00 (um milhão e duzentos e cinquenta e sete mil e quinhentos dólares de Hong Kong) e uma quantia de HKD$914.375,00 (novecentos e catorze mil e trezentos e setenta e cinco dólares de Hong Kong).
4. Tal sentença não tem intenção de declarar que os direitos de promessa de compra das fracções autónomas “G30” e “H26” em questão são bens próprios da embargante, A.
5. Para tal, o Tribunal de Segunda Instância aditou um facto provado, acto esse que viola manifestamente o disposto nos art.º 562.º, n.º 3 e art.º 558.º do Código de Processo Civil.
6. O TSI aditou um facto inexistente aos factos provados, acto esse que inverteu completamente o resultado da acção. Sem dúvida que esse acto indevido influiu na decisão da causa; portanto, nos termos do disposto no art.º 147.º, n.º 1 do CPC, é nulo o acto do TSI que aditou um facto inexistente aos factos provados.
7. Com base nisso, requer-se a V. Exa. que se digne declarar a nulidade do acórdão recorrido e, em consequência, anular o acórdão em questão.
8. A sentença proferida na acção declarativa sob o n.º CV2-16-0077-CAO apenas declarou que, para a promessa de compra das fracções autónomas “G30” e “H26”, a embargante, A, tinha pago uma quantia de HKD$1.257.500,00 (um milhão e duzentos e cinquenta e sete mil e quinhentos dólares de Hong Kong) e uma quantia de HKD$914.375,00 (novecentos e catorze mil e trezentos e setenta e cinco dólares de Hong Kong).
9. Até à presente data, ainda trata-se de uma questão de saber quem irá efectuar o pagamento do remanescente do preço resultante da promessa de compra dos dois imóveis acima indicados (75% do preço).
10. O facto constante do quesito 14.º da Base Instrutória foi julgado como não provado pelo Tribunal Judicial de Base e, tal facto também não foi incluído nos factos dados como provados pelo acórdão recorrido, como é que o Tribunal de Segunda instância reconheceu que os direitos de promessa de compra dos dois imóveis em causa são totalmente pertencentes à embargante, A?
11. Importa saber que, os direitos de promessa de compra dos imóveis em questão não se limitam às cinco primeiras prestações já pagas!!! Incluem-se também todos os direitos decorrentes dos contratos-promessa, nomeadamente os direitos de aquisição das duas fracções autónomas em questão.
12. Face a tal, quando não se deu como provado o facto constante do quesito 14.º da Base Instrutória, é manifestamente que o acórdão recorrido carece de factos provados suficientes para suportar a sua decisão que julgou procedentes os embargos de terceiro, pela razão de que carece de factos provados suficientes para reconhecer que os direitos de promessa de compra dos dois imóveis são totalmente bens próprios da embargante.
13. Pelo exposto, requer-se V. Exa. que se digne julgar o presente recurso procedente e, em consequência, anular o acórdão recorrido.
14. Segundo alguma jurisprudência, entende-se que o chamado “prejuízo jurídico” conduz à invalidade e inexistência do direito de outrem, bem como implica uma diminuição do conteúdo do direito de outrem.
15. Isto posto, caso a estabilidade do direito de outrem for abalada, tal sentença não pode ter eficácia de caso julgado em relação a terceiros.
16. In casu, na parte dispositiva da sentença proferida na acção declarativa sob o n.º CV2-16-0077-CAO, declarou-se que as cinco primeiras prestações referentes aos direitos de promessa de compra das duas fracções autónomas em causa são pertencentes aos bens próprios da embargante A, em vez do bem comum do casal.
17. Sem dúvida que, a decisão de tal sentença implica uma diminuição do conteúdo do direito de “B”, razão pela qual tal sentença causa directamente prejuízo jurídico ao direito da recorrente “B”.
18. O presente processo é o de embargos de terceiro. O fundamento alegado pela embargante é que os direitos de promessa de compra dos dois imóveis em questão são seus bens próprios, em vez do bem comum entre ela e o seu cônjuge.
19. Então, ora a recorrente “B” é equivalente a um titular de uma relação independente e incompatível com a sentença proferida na acção declarativa sob o n.º CV2-16-0077-CAO.
20. A incompatibilidade é que, tal sentença declarou que a executada não era titular dos respectivos bens, assim, tal sentença é manifestamente incompatível com o direito de penhora da recorrente “B”, mas, não é incompatível com o direito de crédito da recorrente “B”.
21. De acordo com os factos provados nos autos (nomeadamente os factos provados A) e B)), pode-se saber que os dois direitos de promessa de compra em questão foram penhorados pelo tribunal, bem como a respectiva penhora encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial. Isto é, a respectiva penhora concedeu uma garantia prioritária ao direito de crédito da recorrente “B”, ao invés do referido pelo TSI, que a recorrente “B” perdeu apenas a garantia geral das obrigações.
22. Por isso, uma vez declarada que os direitos de promessa de compra dos dois imóveis em questão não são bem comum do casal, o que priva completamente a recorrente “B” dos direitos conferidos pelos art.º 812.º e art.º 1564.º do CC.
23. Sem dúvida que há uma contrariedade ou uma incompatibilidade entre o direito de penhora da recorrente “B” e o direito de bens próprios da embargante A em relação às cinco prestações em questão.
24. Com base nisso, salvo o devido respeito, a recorrente “B” entende que o entendimento do TSI é errado e viola o disposto nos art.º 416.º e art.º 571.º, n.º1 do CPC.
25. Pelo exposto, deve julgar-se o presente recurso procedente e, em consequência, anular-se o acórdão recorrido.
26. No fim, a recorrente “B” pretende indicar que o TSI parece omitir uma questão sobre o direito registral.
27. Ao abrigo do disposto nos art.º10.º, n.º 1 e art.º 26.º, n.º 1 da Lei n.º 7/2013, os negócios jurídicos de promessa de transmissão (ou seja, os direitos de promessa de compra) das fracções autónomas “H26” e “G30” em questão estão sujeitos a registo.
28. Nos termos do disposto nos art.º10.º, n.º 1 da Lei n.º 7/2013 e art.º 3.º, n.º 1, al. a) do Código do Registo Predial, está sujeita a registo a acção intentada em 2016 pela embargante, A, na qual pediu a declaração de que os direitos de promessa de compra das fracções autónomas “H26”, “F30” e “G30” são seus bens próprios.
29. Para além do mais, à luz do disposto no art.º 3, n.º 1, al. c) do Código do Registo Predial, a sentença, transitada em julgado, proferida na acção acima referida, está igualmente sujeita a registo.
30. Quer de acordo com os factos provados nos autos, quer nos registos prediais constantes dos autos principais de execução, pode-se demonstrar que, antes e depois de ter sido registrada a penhora indicada no facto provado B), a embargante, A, não efectuou qualquer registo da acção ou da sentença transitada em julgado na Conservatória de Registro Predial.
31. Mais, a embargante, A, não alterou, por averbamento, os registos prediais relativos aos dois direitos de promessa de compra em questão, para ser pertencentes aos seus bens próprios.
32. Para os acontecimentos do presente processo, pelos factos provados pode-se saber que, a penhora requerida pela recorrente foi registada sem qualquer registo da acção, nem com a indicação dos direitos de promessa de compra em causa como bens próprios da embargante A.
33. Por isso, uma vez que a sentença proferida na acção declarativa sob o n.º CV2-16-0077-CAO tenha eficácia de caso julgado que é realmente oponível à recorrente “B”, esta acção está sujeita a registo ou o acto de reconhecimento dos direitos de promessa de compra em questão como bens próprias da embargante A está sujeito a registo, mas, a embargante A não efectuou o registo da acção ou o registo do acto de reconhecimento dos direitos de promessa de compra em questão como seus bens próprios. Face a tal, nos termos do disposto nos art.º 5.º, n.º1 e art.º 6.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, a penhora em causa deve prevalecer sobre o reconhecimento dos direitos de promessa de compra em causa como bens próprios da embargante A, ou seja, a sentença que reconheceu os direitos de promessa de compra em causa como bens próprios da embargante A é inoponível à penhora em causa.
34. Dado que a penhora em causa prevalece sobre o reconhecimento dos direitos de promessa de compra como bens próprios da embargante A, no caso sub judice, não se verifica a “situação ofensiva da posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência”, prevista no art.º 292.º, n.º 1 do CPC.
35. Pelo exposto, deve-se julgar improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pela embargante A”; (cfr., fls. 284 a 303 e 22 a 29 do Apenso).
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Respondendo, pugna a embargante (recorrida) pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 310 a 321).
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Nada parecendo obstar, e colhidos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, cumpre apreciar.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram (em sede dos presentes embargos) considerados como “provados” os factos seguintes:
“- Foram penhorados nos autos principais os seguintes (alínea A) dos factos assentes):
a. metade do direito de aquisição resultante do contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 11 de 07 de 2012, da fracção do 30.° andar “G” da [Endereço(1)], designada por Lote 6, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX-II (fls. 430 a 453 e 487 dos autos principais); e
b. o direito de aquisição resultante do contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 11 de 07 de 2012, da fracção do 26.° andar “H” da [Endereço(1)], designada por Lote 6, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX-II (fls. 454 a 477 e 487 dos autos principais).
- A penhora dos bens referidos na al. A. foi registada como provisória por natureza na Conservatória do Registo Predial de Macau em 14 de 03 de 2017 sob o n.º da inscrição XXXXXF e XXXXXF (fls. 523 e 526 dos autos principais) (alínea B) dos factos assentes).
- Conforme resulta do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 11 de 07 de 2012 (fls. 474 a 477 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), a Embargante prometeu comprar à [Empresa(1)] a fracção atrás identificada (H26), pelo preço de HKD 5.030.000,00, equivalente a MOP 5.190.960,00 (alínea C) dos factos assentes).
- Conforme resulta do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 11 de 07 de 2012 (fls. 450 a 453 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), a Embargante e D prometeram comprar à [Empresa(1)] a fracção atrás identificada (G30), pelo preço de HKD 7.315.000,00, equivalente a MOP 7.549.080,00 (alínea D) dos factos assentes).
- O registo do direito de aquisição da fracção 26º andar “H” a favor da Embargante foi efectuado na Conservatória do Registo Predial de Macau sob a inscrição, provisória por natureza, n.º XXXXXXG (fls. 473 dos autos principais) (alínea E) dos factos assentes).
- O registo do direito de aquisição da fracção 30º andar “G” a favor da Embargante e de D, na proporção de metade para cada uma, foi efectuado na Conservatória do Registo Predial de Macau sob a inscrição, provisória por natureza, n.º XXXXXXG (fls. 449 dos autos principais) (alínea F) dos factos assentes).
- A Embargante e o Executado casaram-se em 22 de 03 de 2010, sob o regime da comunhão de adquiridos (alínea G) dos factos assentes).
- Em 07 de 06 de 2013, a Embargante e o Executado celebraram uma convenção pós-nupcial na Conservatória do Registo Civil de Macau, mudando o regime matrimonial de bens de “comunhão de adquiridos” para “separação de bens” (cfr. fls.7 dos autos) (alínea H) dos factos assentes).
- Relativamente à fracção 26º “H” foi paga à promitente vendedora, em 07 de Julho de 2012, como sinal, a quantia a esse título previsto no contrato, ou seja, HKD 251.500,00 (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- Em 11 de Julho de 2012, foi paga a 1ª prestação do preço da fracção 26º “H”, no montante HKD 251.500,00 (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- Em 08 de Outubro de 2012, foi paga a 2ª prestação do preço da fracção 26º “H”, no montante HKD 251.500,00 (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- Em 05 de Julho de 2013, foi paga a 3ª prestação do preço da fracção 26º “H”, no montante HKD 251.500,00 (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
- Em 02 de Janeiro de 2014, foi paga a 4ª prestação do preço da fracção 26º “H”, no montante HKD 251.500,00 (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
- Em 02 de Julho de 2014, foi paga a 5ª prestação do preço da fracção 26º “H”, no montante HKD 251.500,00 (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- Relativamente à fracção 30º andar “G”, foi paga à promitente vendedora, em 07 de Julho de 2012, como sinal, metade da quantia a esse título previsto no contrato, ou seja, HKD 182.875,00, tendo a outra metade também sido paga (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- Em 11 de Julho de 2012, foi paga metade da 1ª prestação do preço da fracção 30º “G”, no montante HKD 182.875,00, tendo a outra metade também sido paga (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- Em 08 de Outubro de 2012, foi paga metade da 2ª prestação do preço da fracção 30º “G”, no montante HKD 182.875,00, tendo a outra metade também sido paga (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- Em 05 de Julho de 2013, foi paga metade da 3ª prestação do preço da fracção 30º “G”, no montante HKD 182.875,00, tendo a outra metade também sido paga (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- Em 02 de Janeiro de 2014, foi paga metade da 4ª prestação do preço da fracção 30º “G”, no montante HKD 182.875,00, tendo a outra metade também sido paga (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- Em 02 de Julho de 2014, foi paga metade da 5ª prestação do preço da fracção 30º “G”, no montante HKD 182.875,00, tendo a outra metade também sido paga (resposta ao quesito 12º da base instrutória)”; (cfr., fls. 154 a 156).
Do direito
3. Atento o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância e ao que pela ora recorrente vem alegado, vejamos se lhe assiste razão.
Perante a factualidade dada como “provada” e atrás retratada, pelo Tribunal Judicial de Base foram julgados improcedentes os deduzidos embargos.
Com efeito, (perante aquela), não considerou os direitos de aquisição sobre os bens aí identificados com a referência “26-H” e “30-G” como “bens próprios” da embargante A, considerando-os (antes) “bens comuns” desta e do seu marido, o (2°) embargado, C.
Em sede do recurso do assim decidido, e, “com base na prova documental junta aos autos” decidiu o Tribunal de Segunda Instância aditar à referida factualidade provada que:
“- Por sentença proferida na acção ordinária sob o nº CV2-16-0077-CAO, transitada em julgado em 02/03/2017, se declarou que os direitos de aquisição em referência eram bens próprios da Embargante”; (cfr., fls. 265-v).
Para tal, considerou que se verificava a “vertente positiva do caso julgado”, consignando-se no Acórdão agora recorrido o seguinte:
“Sem dúvida de que a Exequente não é parte da acção ordinária sob o nº CV2-16-0077-CAO, na qual se declarou, por sentença já transitada em julgado em 02/03/2017, que os direitos de aquisição em referência eram bens próprios da Embargante.
Também é certo que em princípio, o caso julgado só produz efeitos em relação às partes do processo.
Contudo, há situações em que os terceiros podem ficar vinculados ao caso julgado, de forma directa ou meramente reflexa.
No caso em apreço, não entendemos que o direito da Exequente é incompatível com o direito da Embargante reconhecido judicialmente, pois o reconhecimento dos direitos de aquisição em referência como bens próprios da Embargante por sentença transitada em julgado não põe em causa o direito de crédito da Exequente sobre o Executado (cônjuge da Embargante), daí que a Exequente é um terceiro juridicamente indiferente, embora possa sofrer prejuízos económicos causados pela sentença, nomeadamente a diminuição da garantia do pagamento da dívida.
Sendo um terceiro juridicamente indiferente, o caso julgado pode lhe produzir efeitos.
No mesmo sentido, veja-se MANUAL DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL – Acção Declarativa Comum, Viriato Manuel Pinheiro de Lima, 3ª edição, pág. 586.
Na obra citada, foi dado o seguinte exemplo, que é algo semelhante do caso sub justice:
“É o caso do credor perante a sentença proferida num pleito em que seja parte o devedor. Tal sentença não prejudica o seu direito de crédito, mas pode lesar na prática o credor, visto que, se for desfavorável, pode importar uma diminuição do seu património e, portanto, da garantia do pagamento da dívida.
A sentença tem eficácia em relação ao credor, embora este seja terceiro.”
No mesmo sentido e a título do estudo do direito comparado, temos o Ac. do STJ, de 16/03/1999, proferido no Proc. nº 99B084 (in www.dgsi.pt).
Aliás, o credor, mesmo perante a autoridade do caso julgado, não significa que não tem meio legal de impugnação, já que o legislador prevê meio próprio de impugnação caso entenda que a sentença resulta de um acto simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artº 568º do CPC, por não se ter apercebido da fraude, que é justamente o recurso de oposição de terceiro previsto no artº 664º do mesmo Código.
Ou seja, a Exequente, como credor do Réu da acção ordinária sob o nº CV2-16-0077-CAO, pode interpor o recurso de oposição de terceiro e só com provimento do mesmo é que pode afastar a autoridade do caso julgado da sentença proferida naquele processo”; (cfr., fls. 269-v a 270-v).
Quid iuris?
Cremos que, nesta parte, (quanto aos “efeitos do caso julgado”), censura não merece o decidido.
Com efeito, o decidido na acção ordinária n.° CV2-16-0077-CAO produz “efeitos de caso julgado” nos presentes autos de embargos de terceiro, pois que, como bem se salientou na decisão recorrida, a embargada, ora recorrente, é, efectivamente, um “terceiro juridicamente indiferente”, e o julgado na dita acção pode-lhe produzir efeitos.
Como é sabido, é hoje plenamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência que a autoridade do caso julgado, produzindo os seus efeitos directos em relação às partes, tem também eficácia reflexa contra terceiros. Importa é distinguir se os ditos terceiros são “juridicamente interessados” ou “juridicamente indiferentes” em relação à decisão cujo caso julgado se formou.
Serão “juridicamente interessados” se a definição judicial da relação litigada, a valer em face deles, lhes causar um “prejuízo jurídico”, reduzindo ou invalidando a própria existência do direito que lhes assiste. Por sua vez, serão terceiros “juridicamente indiferentes” se a sentença proferida não lhes causar nenhum prejuízo jurídico, embora lhes possa causar um “prejuízo de facto ou económico”.
Na verdade, como também nota Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 312, “os terceiros têm de acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição da relação litigada, quando a sentença não lhes causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa na íntegra a consistência jurídica do seu direito, embora lhes cause um prejuízo de facto ou económico”.
Por outras palavras, porque “a decisão contida na sentença não causa prejuízo jurídico ao direito de terceiro, nenhuma razão há para recusar a invocação do caso julgado perante este terceiro, visto a regra da eficácia relativa do caso julgado ter por fim evitar que terceiros sejam prejudicados, na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito, sem eles terem tido possibilidade de se defender, e esse risco não ocorrer em tal tipo de situações”; (cfr., A. Varela in “Manual de Processo Civil”, pág. 724 e segs., podendo-se também ver A. dos Reis in, “Eficácia do Caso Julgado em relação a terceiros”, B.F.D.C., Vol. XVII, ed. especial, pág. 245 e segs., e L. de Freitas in “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 686).
Porém, há que atentar num aspecto.
Em tal “acção ordinária n.° CV2-16-0077-CAO”, em que foram partes a ora recorrida, (embargante), como A., e o seu esposo, (o 2° embargado), como R., (cfr., fls. 8 a 16), declarou-se, tão só, que:
- para a aquisição dos direitos de aquisição das fracções autónomas “30-F”, “30-G” e “26-H” (os das duas primeiras apenas 50% e o da ultima 100%) do [Endereço(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.° XXXXX-II, a Autora, A, pagou com dinheiro próprio as cinco primeiras prestações nos seguintes valores:
- HK$1.257.500,00 no contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada por “26-H”;
- HK$1.011.000,00 no contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada por “30-F”;
- HK$914.375,00 no contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada por “30-G”; (sub. nosso).
E, em face do assim considerado e decidido, (e atento o que dos autos consta), cremos que – em consonância com o por este Tribunal de Última Instância já entendido, (nomeadamente), no Ac. de 23.04.2003, Proc. n.° 6/2003, (quanto à sua competência em sede da matéria de facto), e ao abrigo dos art°s 649°, n.° 2, 652°, 631°, n.° 2 e 562°, n.° 3 do C.P.C.M. – ter-se-á de alterar o decidido em conformidade, sendo de se considerar, tão só, como “provado”, o que nos seus exactos termos se decidiu na referida acção n.° CV2-16-0077-CAO.
Aliás, consignar-se em sede de “matéria de facto” que os direitos de aquisição em referência eram «bens próprios» da embargante, não se apresenta também adequado, pois que tal “qualificação jurídica”, (e “conclusiva”), apresenta-se imprópria numa decisão sobre a matéria de facto, especialmente, numa acção em que se discute, precisamente, a natureza de “bens próprios ou comuns” de tais direitos; (sobre a questão, cfr., v.g., o recente Ac. deste T.U.I. de 19.02.2020, tirado no Proc. n.° 83/2018).
Efectuada a rectificação que se deixou assinalada, vista cremos que está a solução para o presente recurso.
Nesta conformidade, tendo presente o que consta dos documentos juntos aos autos a fls. 344 e segs., e, assim, inútil sendo a presente Instância quanto à fracção identificada como “30-G”, vejamos.
Nos termos do art. 1604° do C.C.M.:
“1. Não fazem parte da comunhão os bens que nos termos dos artigos 1584.º a 1590.º, aplicáveis com as devidas adaptações, sejam considerados excluídos do património em participação, bem como os demais bens indicados no artigo 1610.º
2. A compensação a que, no regime da participação nos adquiridos, haja lugar entre o património em participação e o património dela excluído é entendida para efeitos do presente regime como referida, respectivamente, ao património comum e aos patrimónios próprios dos cônjuges”.
E, prescreve por sua vez o art. 1584° do mesmo C.C.M. que:
“1. Estão excluídos do património em participação os bens ou valores do cônjuge, adquiridos na constância do regime da participação nos adquiridos, que lhe advierem:
a) Por sucessão ou doação, salvas as excepções admitidas por lei;
b) Por virtude de direito próprio anterior ao casamento ou à adopção do regime de bens da participação;
c) Por virtude da titularidade de bens próprios excluídos da participação, e que não possam considerar-se como frutos destes;
d) Por meio de indemnizações devidas por factos verificados contra a sua pessoa ou contra bens seus excluídos da participação;
e) Por força dos seguros vencidos em favor da sua pessoa ou para cobertura de riscos sofridos por bens seus excluídos da participação.
2. São igualmente excluídos da participação:
a) As roupas e outros objectos de uso pessoal e exclusivo do cônjuge, bem como os seus diplomas e a sua correspondência;
b) As recordações da família do cônjuge de diminuto valor económico.
3. O disposto nos números anteriores não prejudica o direito à compensação, eventualmente devida ao património em participação, por tudo o que haja sido pago com bens integrados nesse património para a aquisição dos bens ou para a satisfação dos encargos inerentes aos bens advindos por doação ou sucessão”.
Nesta conformidade, atento o estatuído no art. 1604°, n.° 1 e art. 1584°, n.° 1, al. a) e c), impõe-se concluir que o direito de aquisição da fracção autónoma – agora – em questão, (“26-H”), tem a natureza de “bem próprio da embargante”, pois que foi constituído com recurso à utilização de “dinheiro próprio da embargante”, e como tal, não poderia (deveria) ser objecto de penhora nos autos de execução que tem como exequente a ora recorrente, e, como executado, C, (o ex-esposo da embargante, ora recorrida).
Constata-se, assim, que ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, há que confirmar a decisão – na parte agora – recorrida, uma vez que irrelevante se apresenta também o argumento pela recorrente invocado quanto à “questão sobre o registo predial”, (cfr., conclusões 26 a 34), pois que, como em sede do Acórdão de 10.06.2011, (Proc. n.° 19/2011), já decidiu este Tribunal de Última Instância, “A presunção prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial não se estende ao regime de bens do casamento do titular inscrito…”.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
Macau, aos 10 de Julho de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 27/2020 Pág. 20
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