Processo nº 122/2019
(Autos de recurso civil e laboral)
(Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), recorrente, notificado do despacho que não admitiu o recurso que para este Tribunal interpôs, do mesmo veio reclamar, alegando o que se passa a transcrever:
“1. O Exmo. Juiz Relator não se pronunciou sobre todas as questões suscitadas no requerimento do Réu apresentado em 5.12.19, designadamente a questão da sucumbência.
2. É que o artigo 583.º, n.º 1 do CPC diz que: "Salvo disposição em contrário, o recurso ordinário só é admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, desde que a decisão impugnada seja desfavorável à pretensão do recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal; em caso, porém, de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atende-se somente ao valor da causa."
3. Ora, a verdade é que o Réu foi condenado a pagar aos Autores montante não inferior a MOP$2.533.800,00 (MOP$28.840.00 x 5 meses = MOP$144.200.00 + MOP$2.389.600,00),
4. Sendo pois este o valor da sucumbência.
5. E mesmo que o valor da causa fosse de MOP$494,197.00, há sempre que atender ao valor da sucumbência que é superior.
6. De resto, o próprio Tribunal de Segunda Instância já assim entendeu pois, caso contrário, devia ter rejeitado o recurso.
7. Por outro lado, salvo o devido respeito que é muito, considera-se que o despacho de fls. 452, não contém fundamentação suficiente e até confunde os termos em que se deve aplicar o disposto no n.º 4 do artigo 250.º do CPC, pois o mesmo não tem qualquer relação com o n.º 3 do mesmo preceito.
8. Finalmente sempre se dirá que não tendo sido proferido despacho a corrigir o valor da acção, o mesmo deva considerar-se tacitamente corrigido para o montante da condenação, pois que se assim não fosse o Tribunal de Segunda Instância não teria admitido o recurso.
9. Ora, seria um absurdo contra a própria Justiça que o Réu visse o seu direito de recurso coarctado pelo facto de não ter sido corrigido o valor, quando é certo que o Réu foi condenado em quantia bem superior à alçada do Tribunal de que se recorre.
Nos termos expostos e nos mais de direito, requer que, ao abrigo do disposto no artigo 620.º n.º 1 do Código de Processo Civil, seja julgada procedente a presente reclamação e, em consequência, que sobre a matéria do recurso recaia um acórdão tirado em conferência.
(…)”; (cfr., fls. 485 a 485-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Adequadamente processados os autos – com a resposta dos recorridos B (乙) e C (丙), (cfr., fls. 489 a 490), e colhidos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram os autos à conferência.
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Cumpre decidir.
Fundamentação
2. O despacho ora reclamado, proferido na sequência de prévio convite do relator ao recorrente e recorridos para se pronunciar sobre a questão da “admissibilidade do recurso” em virtude do “valor da causa”, (cfr., fls. 448), tem o teor seguinte:
“Os autores propuseram acção de despejo em que deram à acção o valor de MOP$494,197.00, valor indicado na petição inicial.
O réu contestou e indicou nesta peça como valor da acção o de MOP$494,197.00.
Foi proferido despacho saneador, no qual a Ex.ma Juíza não emitiu pronúncia sobre o valor da acção, pelo que este valor se fixou definitivamente nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 257.° do Código de Processo Civil.
Não tem aplicação o disposto na primeira parte do n.° 3 do mesmo artigo, já que o processo de despejo não é daqueles em que utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, caso em que o valor inicialmente aceite é corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários, nos termos do n.° 4 do artigo 250.° do mesmo diploma legal.
De resto, ainda que fosse daqueles em que utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, não houve qualquer correcção do valor na sentença, pelo que seria sempre o valor inicial o valor da acção.
Sendo o valor da causa de MOP$494,197.00, não há lugar a recurso, atento o disposto nos artigos 583.°, n.° 1, 638.°, n.° 1 do Código de Processo Civil e 18.°, n.° 1, da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Pelo exposto não admito o recurso.
Custas pelo recorrente.
(…)”; (cfr., fls. 452 a 452-v).
Nos termos do art. 247° do C.P.C.M.:
“1. A toda a causa é atribuído um valor certo, expresso em moeda com curso legal em Macau, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
2. Ao valor da causa se atende para determinar a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.
3. Para o efeito das custas e demais encargos legais, o valor da causa é fixado segundo as regras estabelecidas na legislação respectiva”.
Por sua vez, em face do estatuído no art. 583°, n.° 1 do mesmo C.P.C.M. – pelo ora reclamante transcrito na sua reclamação – (e certo sendo que em causa não está uma “situação” como a referida no n.° 2 do mesmo preceito), dois são os pressupostos (cumulativos) para se decidir pela admissão de um recurso: o “valor da causa”, (devendo ele ser superior ao do Tribunal de que se recorre), e o “valor da sucumbência”; (cfr., v.g., V. Lima in “Manual de Direito Processual Civil”, 2018, pág. 665, e M. Teixeira de Sousa in, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 481, onde, expressivamente, se refere à “conjugação de dois factores”).
In casu – dúvidas não se colocando em relação ao “valor da sucumbência” do recorrente, ora reclamante, pois que foi (efectivamente) condenado a pagar aos recorridos o montante de MOP$2.533.800,00, (cfr., o Ac. do Tribunal de Segunda Instância de 26.06.2019, a fls. 379 a 391-v) – a questão coloca-se (tão só) em relação ao “valor da causa”.
Na decisão ora reclamada entendeu-se que o “valor da causa” era de MOP$494.197,00, pelo que, não sendo superior ao “valor da alçada” do Tribunal de Segunda Instância, (correspondente a MOP$1.000.000,00; cfr., art. 18° da Lei de Bases da Organização Judiciária), decidiu-se não admitir o recurso.
Para tal, e como se viu, deu-se aplicação ao estatuído no art. 257° do C.P.C.M. onde se prescreve que:
“1. O valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, findos os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixa à causa o valor que considere adequado.
2. Se o juiz não tiver usado deste poder, o valor considera-se definitivamente fixado, na quantia acordada, logo que seja proferido despacho saneador.
3. Nos casos a que se refere o n.º 4 do artigo 250.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, o valor da causa considera-se definitivamente fixado logo que seja proferida sentença”.
E, em face do comando legal que se deixou transcrito, há pois que se ter o referido valor de MOP$494.197,00 como o “valor da causa” (“definitivamente fixado”).
Com efeito, foi este o “valor” pelos AA. indicado na petição inicial, (cfr., fls. 2 a 6), o mesmo sucedendo com o oferecido na contestação do R., ora reclamante, (cfr., fls. 68 a 73), e inexistindo qualquer pronúncia do Tribunal sobre o mesmo, impõe-se, (por força do n.° 1 e 2 do transcrito art. 257° do C.P.C.M.), ter o mesmo (“valor”) como “definitivamente fixado” para todos os efeitos legais, não sendo agora passível de alteração sob pena de se fazer tábua rasa do aludido comando legal.
Diz o reclamante que o Tribunal de Segunda Instância devia (então) ter “rejeitado o recurso”, e que, não o tendo feito, sempre seria de se ter o dito valor como “tacitamente corrigido”.
Ora, é certamente um entendimento que se pode ter.
Todavia, não se nos apresenta como o correcto.
De facto, se – como se referiu – o “valor da causa” em questão se deve ter como – e já aí estava – “definitivamente fixado”, (nos termos do art. 257°, n.° 1 e 2 do C.P.C.M.), evidente se nos mostra que adequada não é uma consideração no sentido da sua “correcção tácita” por efeito da (mera) admissão (tabelar) do recurso no Tribunal recorrido.
Importa ter presente que a não “rejeição do recurso”, (e assim, a sua admissão), pelo Tribunal de Segunda Instância, é (agora) “questão alheia” à ora em apreciação, pois que não se pode olvidar que nos termos do art. 594°, n.° 4 do C.P.C.M. “A decisão que admita o recurso, declare a sua espécie, determine o efeito que lhe compete ou fixe o regime de subida não vincula o tribunal superior, e as partes só a podem impugnar nas suas alegações”.
Diz ainda o reclamante que “seria um absurdo contra a própria Justiça que o Réu visse o seu direito de recurso coarctado pelo facto de não ter sido corrigido o valor, quando é certo que o Réu foi condenado em quantia bem superior à alçada do Tribunal de que se recorre”; (cfr., conclusão 9ª).
Pois bem, compreende-se a sua insatisfação.
Contudo, há que salientar que nos movemos em sede de um processo de “natureza civil”, onde, como princípio fundamental vigora o da “iniciativa das partes”, assim como o do “dispositivo”, (cfr., art°s 3° e 5° do C.P.C.M.), mostrando-se imperativo concluir que o decidido se apresenta em sua (total) conformidade, e que com o mesmo se efectuou correcta aplicação do regime previsto no referido art. 257° do C.P.C.M., (que não deixa de ser também uma clara manifestação dos aludidos princípios).
Vale a pena aqui transcrever a seguinte anotação por Cândida Pires e Viriato Lima efectuada ao estatuído no referido art. 257° do C.P.C.M.:
“2. O artigo em anotação formula duas importantes regras relativas ao valor da causa.
A primeira é a de que quando haja acordo entre as partes acerca do valor da causa é esse que se considerará como tal, a menos que o juiz considere que o acordo das partes viola manifestamente a lei, porque desconforme com a realidade, e nesse caso fixará o valor que entenda ser o correcto, pela forma indicada no art. 259.°.
A segunda regra é a de que, a partir do momento em que o valor processual se fixa, não mais pode ser alterado. É este um dos aspectos do regime que distingue este valor processual do valor tributário. Enquanto o valor processual, depois de se fixar é imutável, o que se compreende, além do mais, porque briga com importantes direitos das partes, como o direito ao recurso, no valor tributário o acordo das partes é irrelevante pelo que, se o valor parecer superior ao declarado pelas partes, o juiz fixa à causa o valor que repute exacto (art. 11.° do RCT), visto que o que está em causa é apenas que devem ser arrecadados, a título de custas, os montantes conformes com a realidade”; (in “C.P.C.M., Anotado e Comentado”, vol. II, pág. 169 e 170, nota 2).
Por fim, cabe também dizer que atento o estatuído no art. 257° do C.P.C.M., dúvidas não perece haver que, por regra, a “fixação do valor da causa” cabe ao Tribunal da Primeira Instância, (onde, como no caso, foi a acção proposta), estando tal decisão, (em princípio) vedada aos Tribunais de Recurso, sendo de se ter igualmente em conta que, nesta conformidade, caso o “valor da causa” não seja fixado no despacho saneador, na sentença, ou em despacho proferido incidentalmente sobre o requerimento de interposição de recurso, deve a parte interessada suscitar, (oportunamente), a questão, provocando despacho recorrível.
Nada se tendo feito, óbvio é que não se mostra ser este o momento para o fazer.
Decisão
3. Nos termos do exposto, em conferência, acordam indeferir a apresentada reclamação, confirmando-se a decisão impugnada.
Custas pelo reclamante com 3 UCs de taxa de justiça.
Notifique.
Macau, aos 18 de Março de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) – Sam Hou Fai – Song Man Lei
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