Processo nº 51/2020 Data: 31.07.2020
(Autos de recurso penal)
Assuntos : “Detenção ilícita de estupefaciente para consumo” (em quantidade superior a cinco doses diárias).
Omissão de pronúncia. (Nulidade).
“Toxicodependência”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Qualificação jurídico-penal da matéria de facto.
Ilicitude (consideravelmente diminuída).
Pena.
Suspensão da execução da pena.
SUMÁRIO
1. A “nulidade” por “omissão de pronúncia” – tão só – ocorre quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre “questão” que lhe coubesse conhecer.
Porém, tal nulidade apenas ocorre em relação a “questões”, e não quanto a todo e qualquer dos “fundamentos”, “razões”, “opiniões”, ou mesmo doutrinas que os sujeitos processuais invoquem para sustentar ou justificar o seu ponto de vista sobre as (verdadeiras) “questões” que colocam.
O vocábulo (legal) “questão” não pode ser entendido de forma a abranger todos os “argumentos” invocados pelas partes.
2. O (mero) “hábito de consumo de drogas” e que se pode também apelidar de “consumo habitual”, (ou “com – alguma – regularidade”), por contraposição a um “consumo pontual”, (ou ocasional), não se equipara a uma situação de “consumo continuado e prolongado” que origina no consumidor um “síndrome de dependência”, (vulgo, “toxicodependência”), ou “vício bioquímico”, que se caracteriza por um comportamento que cria uma “relação de dependência com a droga”.
3. Tendo o arguido alegado que é “toxicodependente”, e estando esta situação comprovada nos autos por “exame-médico” a que foi submetido, deve a mesma, porque relevante, ser levada à matéria de facto sob pena de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” que, sendo de conhecimento oficioso, pode ser sanada em sede de recurso.
4. A detenção de estupefaciente para consumo em quantidade que exceda cinco doses diárias integra o crime de “detenção ilícita de estupefaciente para consumo (agravado)”.
5. O (comprovado) estado de “toxicodependência” do arguido pode viabilizar a consideração de que a “ilicitude dos factos” se mostra “consideravelmente diminuída” para efeitos do art. 11° da Lei n.° 10/2016.
6. A pena de prisão aplicada pelo crime de “detenção ilícita de estupefaciente para consumo” do art. 14°, n.° 1, (ou de “utensilagem” do art. 15°), pode ser “suspensa na sua execução”, nos termos do art. 19° da Lei n.° 10/2016.
O relator, (*)
José Maria Dias Azedo
Processo nº 51/2020
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Sob acusação pública e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base respondeu A (甲), (1°) arguido com os sinais dos autos, vindo, a final, a ser condenado como autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n°s 2 e 3, e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 186 a 189 e 401 a 412 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 05.03.2020, (Proc. n.° 840/2019), julgou o recurso parcialmente procedente e, condenando o arguido como autor material da prática de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelos referidos art. 14°, n°s 2 e 3, e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção dada pela Lei n.° 10/2016, fixou-lhe a pena de 5 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 547 a 560-v).
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Ainda inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal de Última Instância.
Motivou e concluiu afirmando o que segue:
“1. Dos autos resultou provado que o Recorrente é toxicodependente (cfr. relatório pericial constante de fls. 347-351 dos autos e que devido a isso se encontra desde 24 de Outubro de 2018 a fazer tratamento, na Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM), cfr relatório constante de fls. 391-392 dos autos.
2. Não obstante estes factos, e apoiando-se na nova incriminação da detenção de estupefacientes para consumo próprio, constante do art.º 14.º, n.º 2, da Lei n.º 17/2009, o Tribunal a quo condenou o arguido na pena de 5 anos e 6 meses pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 14.º, n.º 2, em conjugação com o art.º, 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009.
3. Não se conformando, o 1º Arguido recorreu da douta decisão para o douto Tribunal de Segunda Instância, sendo que o Venerando Tribunal recorrido veio a considerar parcialmente provido o recurso, condenando-o por um crime de consumo de droga previsto no n.º 2 e 3 e n.º 1 do artigo 14º e artigo 8º da I:ei n.º 17/2009 (Lei da Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícitos de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas) alterada pela Lei n.º 10/2016, mas que manteve a pena de prisão efectiva de 5 anos e 3 meses pela prática do crime previsto no art.° 14.°, n.° 2, da Lei n.° 17/2009, foi a pena aplicada convolada para o crime de consumo ilícito de estupefacientes, havendo-se, no entanto, mantido a condenação com a moldura penal fixada no art.° 8.° da Lei da Droga, assim como a pena de 5 anos e 6 meses.
4. Não se conformando com o decidido vem o Recorrente recorrer, apontando ao Acórdão recorrido a sua nulidade, e ainda a violação dos artigos 11º, 14º e 19º, da Lei n.º 17/2009, bem como dos artigos 40.° e 66.° e 67.° do Código Penal.
5. Nos termos do disposto no art.° 19.° da Lei n.º 17/2009, o arguido que tiver sido condenado pela prática dos crimes previstos nos artigos 14.º ou 15.º e tiver sido considerado toxicodependente nos termos do artigo 25.º, o tribunal suspende a execução da pena de prisão, sob condição, para além de outros deveres ou regras de conduta adequados, de se sujeitar voluntariamente a tratamento ou a internamento em estabelecimento adequado, o que comprovará pela forma e nas datas que o tribunal determinar.
6. Um dos fundamentos em que o Recorrente alicerçou o seu recurso para o Venerando TSI foi o da proibição de se aplicar o artigo 14.°, n.° 2, da Lei da Droga (que pune os consumidores com as penas aplicadas aos traficantes), aos consumidores comprovadamente toxicodependentes, como o é o Recorrente nestes autos, devendo aplicar-se o disposto no artigo 19º, quanto à suspensão da pena. Tais fundamentos encontram-se no capítulo III (páginas 18 a 24 do Recurso interposto) e das conclusões 34 a 45 do seu Recurso.
7. O Tribunal a quo, apesar de mencionar este como um dos fundamentos do recurso interposto, nada referiu a esse respeito na parte da fundamentação do Acórdão.
8. Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal deve analisar e tomar conhecimento de todos os fundamentos de recurso e questões que são levadas à sua apreciação.
9. A violação apontada consiste numa nulidade da sentença, nos termos do artigo 571.°, n.° 1, alínea e) do Código do Processo Civil, aplicável ao CPP ex vi o seu artigo 4.°, sendo que essa nulidade deve ser conhecida em recurso, quando haja lugar a este, nos termos do artigo 360.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.
10. Ainda que, por hipótese, não seja reconhecida a nulidade supra apontada ao Acórdão recorrido, não pode deixar de ser reconhecida a violação do art.° 19.° da Lei da Droga em que incorreu.
11. Com efeito, e cfr. fls. 347 a 351 dos autos, o Recorrente é toxicodependente, facto devidamente comprovado por perícia médico-legal, e, portanto, juízo subtraído à livre apreciação do julgador (art.º 149.° do Código de Processo Penal).
12. Nos termos do artigo 19º da lei n.º 17/2009, caso o agente seja condenado pela prática dos crimes 14.º ou 15.º da lei n.º 17/2009, a pena deve ser suspensa na sua execução, desde que o condenado se sujeite voluntariamente a tratamento.
13. Ora, como também resulta dos autos, o Recorrente já se encontra em tratamento na ARTM (fls. 391 e 392 dos autos), sendo que está disponível para estender o seu tratamento pelo período que os Tribunais considerarem adequado.
14. Como se pode ler na perícia médico-legal de fls. 347 a 351, na sua página 5: "o examinando, desde os 19 anos de idade e até internado na ARTM, consumiu regularmente metanfetamina, em doses que, ao longo do tempo, devido ao aumento de tolerância, aumentaram em quantidade e frequência".
15. É certo que o Recorrente tinha na sua posse 2 gramas de metanfetamina, o que, de acordo com o mapa da quantidade de referência de uso diário em anexo à lei da Droga, representa uma quantidade para consumo equivalente a 10 dias. Mas para um toxicodependente a quantidade de consumo diário não pode, naturalmente, ser ajuizada de forma tão leviana, porquanto, como doutamente se afirma no parecer médico-legal constante dos autos já citado, a tolerância de um toxicodependente é bastante superior à da pessoa média.
16. Por outro lado, esta norma do art.° 19.º tem também subjacente o objectivo de sujeitar o agente do crime ao tratamento, ou seja, a prioridade do legislador é tratar o toxicodependente, e não remetê-lo à prisão, bem se sabendo que a reclusão social colocará em causa o seu tratamento e a respectiva evolução.
17. No caso dos autos, este objectivo é ainda mais premente, uma vez que o Recorrente se encontra já em fase de tratamento, desde Outubro de 2018.
18. Por isso o douto Tribunal a quo não deveria ter desconsiderado o artigo 19.º da Lei da Droga, na escolha da pena.
19. Sendo que, portanto, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, deve sempre considerar-se que o Tribunal a quo violou os artigos 14.º e 19.º da Lei n.° 17/2009, ao aplicar uma pena - art.º 8.° da Lei - que não podia ser aplicada in casu, viola a obrigatoriedade de se suspender a execução da pena de prisão por crime de detenção ilícita de estupefacientes para consumo próprio quando o agente seja comprovadamente toxicodependente, devendo ser corrigida nessa parte, sendo o Recorrente condenado exclusivamente ao abrigo do art.° 14.º, n.º 1, da Lei da Droga, a pena que deve ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita ao regime de prova, nomeadamente a ele continuar o tratamento na ARTM enquanto decorrer o prazo de suspensão decretada.
20. Concluindo-se que o Acórdão recorrido violou o art.° 19.° da Lei n.° 17/2009, ao ter sido desaplicado num quadro que impunha a sua aplicação, e ao ter punido o Recorrente ao abrigo de um artigo - n.° 2 do artigo 14.° - que não tinha aplicação in casu. Pugnou também o Recorrente pela punição ao abrigo do art.° 11.° Lei n.° 17/2009, ao invés do seu artigo 8.°, que fixa uma moldura abstracta até aos 5 anos de prisão.
21. O douto Tribunal a quo, apesar de se - e bem - reconhecer a possibilidade de se aplicar o artigo 11° aos consumidores que detiverem na sua posse estupefacientes em quantidade acima dos 5 dias de referência de uso diário constantes da tabela anexa à Lei, decidiu que in casu não há qualquer circunstância que leve à diminuição da ilicitude do acto.
22. Fazendo essa interpretação, fica sem se perceber afinal de contas se algum dia haverá alguma circunstância que se encaixe na norma do art.° 11.° para os consumidores de estupefacientes.
23. Dos autos decorre que o 1.º Arguido (1) é comprovadamente toxicodependente (2) se encontra a obter tratamento e está disponível a estendê-lo (3) confessou em audiência os factos (4) colaborou com a Polícia Judiciária com vista a deter quem lhe vendeu os estupefacientes (5) tem parecer positivo tanto da ARTM como Instituto de Acção Social (cfr. relatório constante de fls. 365 a 369 dos autos) e (6) a quantidade de estupefacientes não era tão superior quanto isso à quantidade de referência de uso diário constantes do mapa anexo à Lei da Droga - principalmente tendo em conta que se trata de agente toxicodependente, com uma grande tolerância para o consumo de metanfetamina - então a solução só pode ser a de que in casu está verificada a ilicitude diminuída da sua conduta, mormente no que diz respeito aos elementos previstos na norma referentes aos "meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados".
24. São tudo circunstâncias - comprovadas - que o Tribunal desconsiderou, mas que se encaixam perfeitamente no espírito do artigo 11.° da Lei da Droga.
25. Tendo ademais que ser levados em conta os princípios dos fins das penas e o princípio da culpa, previstos no art.º 40.º do Código Penal (no sentido em que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa do agente do crime).
26. Não se compreende, salvo o devido respeito, a que sentido de justiça se pode almejar quando se pune um agente toxicodependente a uma pena que oscila entre os 5 a 15 anos de prisão, quando a própria lei cria mecanismos para que nestes casos extremos - e com circunstâncias de ilicitude diminuída - se possa punir com uma pena até 5 anos de prisão, muito mais ajustada à realidade dos factos comprovados.
27. O próprio artigo 40.° do Código Penal exige que o julgador puna o agente com a pena mais ajustada aos fins das penas e ao princípio da culpa. E, salvo o devido respeito por opinião em sentido diverso, in casu, só a pena prevista no art.° 11.° da Lei n.° 17/2009 poderia ter qualquer aplicação.
28. Constituindo a prevenção, quer geral, quer especial, o fim das penas, conforme decorre do que estabelece o art.° 40.° do Código Penal, haverá que reconhecer que é muito dura uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão como punição para uma situação de consumo de droga, em que o consumidor é toxicodependente.
29. A determinação da medida judicial ou concreta da pena, nos termos do artigo 65.° do Código Penal, é feita em função da culpa, tomando-se em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e as demais circunstâncias do n.° 2 daquele preceito que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, certo sendo que as exigências de prevenção geral definem o limite mínimo da pena e a culpa o limite máximo criando, assim, a moldura dentro da qual se hão-de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização.
30. O Acórdão recorrido não valorou qualquer circunstância no plano das causas atenuantes gerais, no momento de proceder à determinação da medida judicial ou concreta da pena.
31. Tudo isto circunstâncias que deviam ter sido tomadas em conta no Acórdão recorrido, mas que foram desconsideradas, saindo por isso violados os artigos 14.° e 11.° da Lei n.° 17/2009 e ainda o art.° 40.° do Código Penal, devendo ser corrigido nessa parte, passando o Recorrente a ser condenado ao abrigo do art.° 11.° da Lei n.° 17/2009, a uma pena nunca superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, ainda que sujeita a um regime de prova ajustado.
32. Finalmente, e por mera cautela de patrocínio, mesmo que improcedam os vícios supra apontados à douta decisão recorrida, sempre se diga que saiu violado o art.° 66.° do Código Penal, ao não ter o Tribunal recorrido feito uso do instituto da atenuação especial da pena.
33. Trata-se, aí, de um verdadeiro poder-dever do Tribunal, que sempre que se verificarem essas circunstâncias deve atenuar a pena ao agente.
34. In casu, resultou provado que o 1.° Arguido colaborou com a Polícia aquando da detenção, levando à descoberta de 2 agentes traficantes de estupefaciente! Ademais, o Recorrente confessou espontaneamente, tanto na polícia, como em Tribunal, a sua conduta, o que demonstra arrependimento e vontade de reparar as consequências do crime. Também o facto de ser um agente toxicodependente atenua manifestamente a ilicitude da sua conduta.
35. Pelo que o douto Tribunal a quo, ao ter decidido manter a condenação do Recorrente pelo art.° 8.° da Lei n.° 17/2009, então teria necessariamente que tomar em conta as circunstâncias supra identificadas para atenuar especialmente a pena aplicada.
36. Tratando-se, aqui, de uma pena abstracta entre os 5 e 15 anos de prisão, a sua atenuação especial reduz a moldura para entre 1 e 10 anos de prisão.
37. Pelo exposto, deve a pena aplicada ao Recorrente ser especialmente atenuada, passando ele a ser condenado a uma pena especialmente atenuada, nunca superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, ainda que sujeita a um regime de prova adequado.
38. A Sentença recorrida violou assim os artigos 14° e 19º da Lei n.º 17/2009, ao aplicar uma pena que não podia ser aplicada in casu (artigo 8 da Lei n.º 17/2009), em virtude do Recorrente se tratar de um agente comprovadamente toxicodependente.
39. Finalmente, violou ainda a douta sentença recorrida os artigos 14º e 11° da Lei n.° 17/2009 e ainda o artigo 40° do Código Penal - ao ter punido o Recorrente ao abrigo do artigo 8º dessa Lei n.° 17/2009 - e ainda o art.° 66.° do Código Penal, ao não ter o Tribunal recorrido feito uso do instituto da atenuação especial da pena, e não tomar em conta as circunstâncias para atenuar especialmente a pena aplicada”; (cfr., fls. 564 a 587).
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Respondendo, e em síntese, diz o Ministério Público que:
“a) Só existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões cujo conhecimento lhe era imposto por lei apreciar ou que lhe tenham sido submetidas pelos sujeitos processuais.
b) Tal nulidade só ocorre quando não há pronúncia sobre as questões e não já sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam para sustentar as questões que submetem à apreciação do tribunal.
c) No caso, a questão colocada pelo Recorrente ao Tribunal a quo foi a de saber se o artigo 14.°, n.° 2 da Lei n.° 17/2009 era ou não aplicável e sobre a dita questão, o douto acórdão recorrido emitiu pronúncia no sentido afirmativo, tendo decidido condenar o Recorrente pela prática do crime previsto naquele artigo 14.º, n.° 2 da citada Lei.
d) Não ocorre, portanto, a invocada nulidade do douto acórdão recorrido por omissão de pronúncia.
e) O crime praticado pelo Recorrente não está tipificado no artigo 14.º nem no artigo 15.° da Lei n.º 17/2009, mas, antes, no artigo 8.°, n.º 1 da mencionada Lei (sem prejuízo, em todo o caso, da eventual aplicação do artigo 11.º do citado diploma legal), embora por referência ao limite quantitativo definido legalmente no n.º 2 do artigo 14.º e por isso não se verifica o pressuposto da aplicação do artigo 19.º, n.º 1 daquele diploma legal.
f) É possível a qualificação como crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea 1) em conjugação com o artigo 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, da conduta do agente que é detentor de estupefacientes em quantidade que excede em 5 vezes a quantidade de referência de uso diário, desde que, no caso, se verifiquem outras circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude.
g) Enquadrada a conduta do Recorrente como um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, a circunstância de toda a droga que o mesmo detinha se destinar, exclusivamente, ao seu consumo pessoal, consubstancia uma considerável diminuição da ilicitude.
h) Na verdade, é patente que, nesse caso, o perigo de lesão do bem jurídico que, como vimos, está associado ao risco de disseminação da droga na comunidade, é muito baixo, para não dizer nulo.
i) Mostrando-se a respectiva ilicitude consideravelmente diminuída, deve a conduta do Recorrente ser enquadrada no artigo 11.º, n.º 1, alínea 1) da Lei n.º 17/2009, e, portanto, ser punida com pena prisão que, dentro da moldura legal prevista, de 1 a 5 anos, esse Venerando Tribunal graduará como for de justiça.
j) Os recursos são remédios jurídicos que não servem, por isso, para discutir questões novas, isto é, questões que não foram invocadas perante o tribunal recorrido.
l) Não será de conhecer a questão da atenuação especial da pena se a mesma não foi, anteriormente, colocada pelo Recorrente ao Tribunal a quo”; (cfr., fls. 596 a 606-v).
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Admitido o recurso com o efeito e modo de subida adequadamente fixados, (cfr., fls. 607), e remetidos os autos a esta Instância, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer onde, acolhendo o teor da Resposta ao recurso, considerou que se devia dar parcial provimento ao recurso, revogando-se e substituindo-se a decisão recorrida por outra em que se condene o arguido pela prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1), em conjugação com os art°s 8°, n.° 1 e 14°, n.° 2 da Lei n.° 17/2009, com a redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016; (cfr., fls. 614 a 615-v).
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Efectuado o exame preliminar, e colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base, (e com relevo para a decisão a proferir), foi dada como “provada” a factualidade seguinte:
“1. Em 2011, o 1º arguido A começou a ter o hábito de consumir droga “ice”.
2. Num dia de 2014, o 1º arguido começou a comprar droga “ice” junto da 2ª arguida B.
3. Na noite do dia 27 de Março de 2017, o 1º arguido perguntou à 2ª arguida se tinha droga “ice” para vender, a 2ª arguida disse que o preço da droga “ice” era de MOP$400 por pacote, e os dois combinaram um encontro no [Hotel(1)] na [Praça(1)] . Durante o período, o 1º arguido disse que queria comprar 2 pacotes da droga “ice”, e entregou à 2ª arguida MOP$800.
4. Depois, a 2ª arguida saiu. Mais tarde, a 2ª arguida voltou ao [Hotel(1)], e entregou ao 1º arguido dois pacotes da droga “ice”.
5. O 1º arguido comprou drogas junto da 2ª arguida por mais de 10 vezes.
6. Os agentes da PJ receberam informações de que um homem africano e uma mulher indonésia praticaram actividades de tráfico de droga na [Praça(1)] , e um homem português comprou, frequentemente, drogas junto desses indivíduos, pelo que os agentes da PJ procederam à investigação.
7. Em 28 de Março de 2017, os agentes da PJ deslocaram-se ao [Edifício(1)] para a vigilância.
8. Em 29 de Março de 2017, por volta das 01h00, os agentes da PJ descobriram que o 1º arguido saiu do [Edifício(1)] , e interceptaram-no.
9. Os agentes da PJ encontraram nos bolsos das calças do 1º arguido os seguintes objectos:
1). Um lenço de papel, no qual houve dois saquinhos plásticos transparentes contendo cristais transparentes, com peso de, respectivamente, 1,82g e 1,37g, em total de 3,19g;
2). Novecentas patacas (MOP$900);
3). Um telemóvel (de marca Philips, IMEI: XXXXXXXXXXXXXX);
4). Um telemóvel (de marca Samsung, IMEI: XXXXXXXXXXXXX);
5). Duas chaves. (vide o auto de revista e apreensão constante das fls. 7 dos autos)
11. Os agentes da PJ continuaram com a investigação, e interceptaram, nas proximidades da [Praça(1)] , a 2ª arguida e o 3º arguido.
12. Os agentes da PJ encontraram na posse da 2ª arguida um telemóvel de cor laranja e preto (de marca Microsoft, modelo: RM-1096) (vide o auto de apreensão constante das fls. 26 dos autos).
13. Os agentes da PJ encontraram na posse do 3º arguido um telemóvel de cor preta (de marca Samsung, IMEI: XXX/XXXXXX/X), um telemóvel (de marca Nokia, IMEI: XXXXXX/XX/XXXXXX/X), um telemóvel de cor preta (de marca Samsung, IMEI: XXXXXX/XX/XXXXXX/X), oitocentas e cinquenta patacas (MOP$850) e dois dólares americanos (USD$2,00) (vide o auto de apreensão constante das fls. 50 dos autos)
14. Submetidos a exame laboratorial, os supracitados cristais transparentes encontrados nos dois saquinhos plásticos transparentes nos bolsos das calças do 1º arguido, com peso líquido de 2,780g, continham “Metanfetamina”, substância abrangida pela tabela II-B anexa à Lei n.º 17/2009, e após análise quantitativa, a percentagem de “Metanfetamina” foi verificada em 71,8%, com peso de 2g (vide o relatório pericial constante das fls. 152 a 158 dos autos).
15. As referidas drogas “Metanfetamina” foram adquiridas pelo 1º arguido junto da 2ª arguida na noite de 27 de Março de 2017.
16. A 2ª arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária ao vender, dolosamente, drogas controladas pela lei a outrem.
17. O 1º arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária ao deter, dolosamente, drogas controladas pela lei, em quantidade superior a cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário.
18. O 1º arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária ao consumir, dolosamente, drogas controladas pela lei.
19. As supracitadas condutas dos 2ª e 1º arguidos não foram autorizadas por lei.
20. Os 2ª e 1º arguidos conheciam bem da natureza da droga acima referida.
21. Os 2ª e 1º arguidos sabiam bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
- De acordo com o CRC, o 1º arguido A tem antecedentes criminais:
1) No âmbito do Processo n.º CR4-17-0155-PCC, o TJB condenou, em 27 de Outubro de 2017, o 1º arguido pela prática dum crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, na pena de 2 meses de prisão; pela prática dum crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, p. p. pelo art.º 15.º da Lei n.º 17/2009, na pena de 2 meses de prisão; e em cúmulo jurídico, numa pena de 3 meses de prisão, suspensa na execução por 2 anos. Durante o período da suspensão da execução da pena, o 1º arguido tem que ser sujeito ao regime de prova, no sentido de se submeter ao tratamento de toxicodependência, e se viver em Portugal, também precisar de entregar, pontualmente, as situações e informações de tratamento em Portugal à autoridade competente em Macau. O acórdão proferido naquele processo transitou-se em julgado no dia 16 de Novembro de 2017, e ainda não se extingue a pena aplicada; a pena aplicada naquele processo foi concorrida no Processo n.º CR3-17-0003-PCC, e posteriormente, no Processo n.º CR2-18-0277-PCS;
2) No âmbito do Processo n.º CR3-17-0003-PCC, o TJB condenou, em 27 de Julho de 2018, o 1º arguido pela prática dum crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 17/2009 (alterada pela Lei n.º 4/2014), na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, sob condição de ser sujeito ao regime de prova, no sentido de receber aconselhamento de assistente social e internar-se nos lares para tratamento de toxicodependência. Em cúmulo jurídico com a pena aplicada no Processo n.º CR4-17-0155-PCC, foi o 1º arguido condenado numa única pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, sob condição de ser sujeito ao regime de prova, no sentido de receber aconselhamento de assistente social e internar-se nos lares para tratamento de toxicodependência. Essa pena foi concorrida no Processo n.º CR2-18-0277-PCS;
3) No âmbito do Processo n.º CR1-18-0210-PCS, o TJB condenou, em 28 de Setembro de 2018, o 1º arguido pela prática dum crime de ofensas simples à integridade física, p. p. pelo art.º 137.º, n.º 1do CPM, na pena de multa de 90 dias, à taxa diária de MOP$100, no valor total de MOP$9.000,00, multa essa que é convertível em 60 dias de prisão se não for paga ou substituída por trabalho. O arguido já pagou a multa, e a pena já se extinguiu.
4) No âmbito do Processo n.º CR2-18-0277-PCS, o TJB condenou, em 23 de Outubro de 2018, o 1º arguido pela prática dum crime de ameaça, p. p. pelo art.º 147.º, n.º 2 do CPM, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na execução por 2 anos. Em cúmulo jurídico com as penas aplicadas nos Processos n.º CR4-17-0155-PCC e n.º CR3-17-0003-PCC, foi o 1º arguido condenado numa pena de 10 meses de prisão, suspensa na execução por 2 anos, sob condição de receber aconselhamento de assistente social e internar-se nos lares para tratamento de toxicodependência. A sentença foi transitada em julgado em 12 de Novembro de 2018, e a pena aplicada ainda não se extingue.
- De acordo com o CRC, a 2ª arguida e o 3º arguido não têm antecedentes criminais.
- O 1º arguido declarou que tinha como habilitações académicas o 12º ano de escolaridade, recebia tratamento de toxicodependência, não tinha rendimento, era suportado pela família, e não tinha encargos familiares e económicos.
(…)”; (cfr., fls. 554 a 555-v e 20 a 25 do Apenso).
Seguidamente, e em sede de “factos não provados”, foi como tal indicado que resultou “não provado” que:
“(…)
- O numerário acima referido foi dinheiro obtido pelos 1º e 2ª arguidos através da prática das actividades de tráfico de droga.
(…)”; (cfr., fls. 556 e 26 do Apenso).
Do direito
3. Atenta a transcrita factualidade dada como provada, e em sede da apreciação do anterior recurso do arguido, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:
“Na sua motivação do recurso, entendeu o arguido que conforme os factos provados, o tribunal a quo incorreu no erro na aplicação da lei ao condenar o arguido pela prática do crime de tráfico de droga, quando apenas ficou provado que o arguido deteve droga para consumo próprio, e não se verificou qualquer acto de cedência. Depois, o recorrente emitiu parecer sobre o próprio art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, alterada pela Lei n.º 10/2016, entendendo que este artigo, por um lado, violou o art.º 29.º da Lei Básica, o princípio da legalidade e o princípio da presunção da inocência, e por outro, o n.º 2 desse artigo aplicou ao consumidor uma moldura penal igual à do traficante, violando os fins das penas e o princípio da culpa. Segundo o recorrente, ele devia ser condenado pela prática do crime de consumo de droga, e quanto muito, do crime de tráfico de menor gravidade, p. p. pelo art.º 11.º.
E subsidiariamente, entendeu o recorrente que conforme o art.º 19.º da Lei n.º 17/2009, a pena de prisão lhe aplicada devia ser suspensa na sua execução.
Vejamos.
(I) Alteração ao art.º 14.º da Lei n.º 17/2009
Dispõe-se nos artigos 8.º e 14.º da Lei n.º 17/2009, alterada pela Lei n.º
10/2016:
Artigo 8.º:
“1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 6 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 1 a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 2 a 8 anos, no caso do n.º 2.”
Artigo 14.º:
“1. Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de 3 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias, salvo o disposto no número seguinte.
2. Caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente referido no número anterior cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º.
3. Para determinar se a quantidade de plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém excede ou não cinco vezes a quantidade a que se refere o número anterior, são contabilizadas as plantas, substâncias ou preparados que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais.”
Como referimos em vários acórdãos1, a nova redacção dada pela Lei n.º 10/2016 alterou a quantidade de droga detida pelo agente que o “crime de consumo” nunca tinha regulamentado, e em consequência, aditou e introduziu um limite da quantidade de droga para consumo. Mesmo para “seu exclusivo consumo pessoal (art.º 14.º, n.º 1)”, desde que a droga detida pelo agente “exceda a quantidade de referência de uso de 5 dias (art.º 14.º, n.º 1)”, constitui-se o crime de tráfico (aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º). Quer dizer, o acto do agente de deter mais duma certa quantidade de droga para consumo, independentemente de se destinar a outros fins, já é suficiente para constituir o “crime de tráfico de droga”, sem necessidade de provar, designadamente, se o agente cedeu droga a outrem ou praticou outras actividades de tráfico.
De acordo com a Nota justificativa elaborada pela Assembleia Legislativa sobre a Lei n.º 16/2016 – Alteração à Lei n.º 17/2009, e o Parecer N.º 4/V/2016 emitido pela 3ª Comissão Permanente, podemos ver que o legislador constituiu a respectiva Lei porque:
“A Lei n.º 17/2009 (Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícitos de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas) (adiante designada por “Lei de combate à droga”) entrou em vigor há mais de seis anos. Desde a entrada em vigor desta Lei, verifica-se que a prática de crimes transfronteiriços relacionadas com a droga tende a ser cada vez mais grave e frequente, o que constitui uma significativa preocupação que ameaça a segurança social internacional, levando muitos países a dedicar esforços para a prevenção e combate aos crimes relacionados com a droga.
…
As orientações concretas para a revisão da “Lei de combate à droga” são essencialmente as quatro seguintes: … 3) reforço da regulamentação e do controlo dos actos de consumo de droga para evitar que os traficantes utilizem o “crime de consumo de droga” para fugir a uma responsabilidade penal mais grave; …”
Além disso, o legislador salientou e reiterou que o objecto legislativo foi de combater às condutas de utilizar o “crime de consumo de droga” para fugir à responsabilidade penal do “crime de tráfico de droga”:
“(3) Introdução do limite da quantidade de droga no “crime de consumo de droga” (o artigo 1.º da Proposta de lei alterou o artigo 14.º da “Lei de combate à droga”) … nos termos da “Lei de combate à droga” em vigor, no “crime de consumo de droga” não se regulamenta a quantidade de droga que o agente possui, pelo que, mesmo que o agente possua uma grande quantidade de droga e esta seja utilizada, de facto, para tráfico, a não ser que tenham sido recolhidas provas suficientes para provar que este praticou o tráfico de droga, o agente declara, geralmente, que a droga é para consumo pessoal, esquivando-se a ser acusado pelo “crime de tráfico de droga”.
…
No sentido de preencher a lacuna que permite que os traficantes fujam a uma responsabilidade penal mais grave … a Proposta de lei sugere que seja introduzido um limite relativo à quantidade de droga no “crime de consumo de droga”, isto é, mesmo que se preencha o pressuposto do “crime de consumo de droga”, desde que o agente cultive, produza, fabrique, extraia, prepare, adquira ou detenha ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV da “Lei de combate à droga” e que a sua quantidade exceda cinco vezes a quantidade constante do mapa relativo à quantidade de referência de uso diário (isto é, a quantidade para cinco dias) anexo a esta lei, já não se aplica o “crime de consumo de droga”, considerando-se assim que se trata do crime de produção ou tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas…”
Dura lex ser lex.
A revisão da lei em causa teve por objecto o combate mais eficaz ao tráfico de droga em sentido amplo (incluindo a simples detenção de grande quantidade de droga). O potencial perigo causado à sociedade e à saúde pública pela detenção de “grande quantidade” de droga já ultrapassa de longe as influências trazidas para a “saúde individual” do agente, quer dizer, a detenção de grande quantidade de droga também trazem graves influências negativas para o bem jurídico de “saúde pública”. Por isso, não se deve considerar que o art.º 14.º da Lei n.º 17/2009 é apenas relacionado com o bem jurídico de “saúde individual” do agente. É certo que, através dos novos n.ºs 2 e 3 do artigo, o legislador considerou, de propósito, a detenção da quantidade excedente a cinco vezes a quantidade de uso diário como o critério da alteração da “qualidade” de tal conduta, e alterou directamente a qualificação da mesma com fundamento em que a quantidade de droga excedeu a de uso normal, transmudando a questão simplesmente relacionada com a saúde individual, para um novo bem jurídico relacionado com a “saúde pública”.
Quando a lei decidiu punir a detenção de droga em quantidade superior à de uso de 5 dias pelo crime de tráfico de droga, limitou-se a agravar a punição dos actos de deter droga em quantidade excedente, sob condição de continuar a punir o crime de consumo de droga, visando a repressão mais eficaz dos crimes relacionados com droga.
Devemos saber que, a lei não adoptou a presunção de culpa (como a presunção no n.º 2 do art.º 16.º da Lei n.º 6/2004 – presume-se existir relação de trabalho sempre que um indivíduo é encontrado em obras de construção civil a praticar actos materiais de execução das mesmas), quer dizer, a lei não presumiu que a detenção de droga em quantidade excedente à de uso de 5 dias tinha como objecto o tráfico, isso porque, por um lado, o crime de tráfico de droga punido pelo art.º 8.º também é uma concepção em sentido amplo, e a punição abrange todos os actos incluindo a detenção, não exigindo o tráfico. Por outro lado, o art.º 8.º pune todos os actos fora dos casos previstos no n.º 1 do art.º 14.º, e o n.º 2 do art.º 14.º apenas delimite o âmbito da punição do n.º 1 do art.º 14.º, mesmo que a quantidade detida que não se encontre no âmbito do art.º 14.º seja destinada ao consumo próprio.
Quando a quantidade de droga exceda cinco vezes a quantidade de referência de uso diário, a lei dispõe, na verdade, que deixa de ser aplicável o n.º 1 do art.º 14.º, e consoante as circunstâncias (ou seja os factos concretos), considera-se a aplicação dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º. Não podemos concordar que tal técnica legislativa viola o art.º 29.º da Lei Básica ou qualquer princípio fundamental no direito criminal. Isso porque, nos artigos 7.º, 8.º e 11.º, são diferentes e bem claros os elementos constitutivos de cada tipo de crime, não se verificando qualquer influência negativa causada ao princípio da legalidade.
Sobre a questão de se o art.º 14.º da Lei n.º 17/2009 em vigor viola o art.º 29.º da Lei Básica, o TUI entendeu, no seu Acórdão de 16 de Janeiro de 2019, no Processo n.º 112/2018, que o art.º 14.º “limita-se a punir severamente o consumo de estupefacientes, quando a detenção dos produtos em causa seja de quantidade relativamente elevada. Trata-se de uma opção do legislador, não vedada pela Lei Básica, que não cabe aos tribunais discutir. A desproporção de um acto discricionário da Administração é fundamento legal para anulação pelos tribunais. A desproporção de um acto legislativo, não.”. Por outra palavra, o art.º 14.º da Lei n.º 17/2009 não viola o art.º 29.º da Lei Básica.
E em relação ao crime pelo qual deve ser punido o acto de deter, exclusivamente para consumo pessoal, droga em quantidade superior à de uso de 5 dias, já é outra coisa, e deve ser determinado em conformidade com os factos provados e os princípios da constituição de crimes.
Para o efeito, o TUI também teve o seguinte entendimento no seu Acórdão (de 26 de Fevereiro de 2020) no Processo n.º 11/2020:
“Como revelou o título do art.º 14.º, este pune actos de consumo ilícito de estupefacientes. E de acordo com o n.º 2 do art.º 14.º, caso a quantidade da droga que o agente consume, ou para seu exclusivo consumo pessoal, ilicitamente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém, exceder cinco vezes a quantidade de referência de uso diário, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º”.
A lei exige expressamente a “aplicação das disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º”. Afigura-se-nos que a interpretação correcta dessa expressão não é de punir o agente pelos crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, mas sim, adoptar, conforme os casos, as penas previstas nesses artigos para punir o agente.
O n.º 2 do art.º 14.º prevê o crime de consumo ilícito de estupefacientes, e não o crime de tráfico ilícito de estupefacientes.2
In casu, a droga detida pelo recorrente destinou-se apenas ao seu consumo pessoal, pelo que ele praticou o crime de consumo ilícito de estupefacientes, mas devia ser condenado na pena prevista pelo n.º 1 do art.º 8.º.”
Por isso, o tribunal a quo violou o princípio da legalidade ao condenar o recorrente pela prática do crime de tráfico de droga previsto no art.º 8.º, pelo que é de julgar procedente o recurso nesta parte, e passar a condenar o recorrente pela prática do crime de consumo ilícito de droga, previsto pelo n.º 2 do art.º 14.º.
Continuemos a ver se é aplicável a pena prevista pelo art.º 8.º ou pelo art.º 11.º.
(II) Crime de tráfico de menor gravidade
Nos termos do art.º 11.º da Lei n.º 17/2009, alterada pela Lei n.º 10/2016:
“1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante.”
Segundo os “factos provados”, o peso da substância “Metanfetamina” detida pelo recorrente é de 2g, equivalente à quantidade de referência de uso de 10 dias.
Entendeu o recorrente que devia ser punido pelo crime previsto no art.º 11.º.
Como é sabido, a punição pelo crime de produção e tráfico de menor gravidade depende da consideração sobre a ilicitude dos factos de produção ou tráfico da droga se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta as circunstâncias apuradas no caso concreto, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade da droga, devendo o tribunal atender especialmente a quantidade da droga.3
Mesmo não sendo o único elemento a considerar na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída dos factos, a quantidade da droga é, sem dúvida, um factor relevante que merece a consideração especial pelo tribunal.
Na realidade, o facto de a droga detida pelo agente exceder cinco vezes a quantidade indicada no respectivo mapa não implica necessariamente a sua condenação pelo crime de tráfico ilícito de estupefacientes p. p. pelo art.º 8.º, não sendo de afastar necessariamente a punição pelo crime de produção e tráfico de menor gravidade p. p. pelo art.º 11.º.
E a punição pelo art.º 11.º depende da consideração sobre se a ilicitude dos factos ilícitos se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta as circunstâncias apuradas no caso concreto.
No caso sub judice, a factualidade assente revela que a droga detida pelo recorrente contém Metanfetamina, com peso líquido de 2g, que excede 10 vezes a quantidade indicada no mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à Lei n.º 17/2009 (0,2g), e o recorrente deteve a droga para seu consumo pessoal.
No seu Acórdão de 4 de Outubro de 2019, no Processo n.º 87/2019, o TUI teve o seguinte entendimento sobre a detenção de droga em quantidade pouco superior a cinco vezes a quantidade de referência de uso diário:
“a quantidade consumida ou detida para consumo, acrescida ou não, em parte, com as quantidades que “se destinem a outros fins ilegais” (n.º 3 do artigo 14.º), desde que acima das mencionadas cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, só pode revelar em sede de medida da pena, mas não, por si só, para efeitos de se considerar o agente como actuando com ilicitude consideravelmente diminuída, dado que o limite relevante da lei é a quantidade referente a cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário.
Ou seja, se se provar apenas que o agente detém para consumo pessoal uma quantidade de seis ou sete vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, pouco superior às cinco vezes, não é possível, sem prova de outras circunstâncias atenuantes, considerar que actuou com ilicitude consideravelmente diminuída, para efeitos de punição nos termos dos artigos 14.º e 11.º da Lei, sendo punido, portanto, nos termos dos artigos 14.º e 8.º. De outra forma estar-se-ia a desvirtuar a intenção legislativa, que fixou como limite cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário e não seis ou sete vezes.
O recorrente detinha para consumo pessoal ou para cedência a terceiros metanfetamina, com o peso líquido de 1,17g, quantidade que excede cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à mencionada Lei n.º 17/2009 (5,85 vezes).
Assim, face ao disposto nos artigos 8.º e 14.º, da mesma Lei, é punido nos termos do artigo 8.º e não nos termos dos artigos 11.º e 14.º.”
Concordamos com o aludido entendimento, e afigura-se-nos que a circunstância de a quantidade de droga ser pouco superior a cinco vezes a quantidade de referência de uso diário não é suficiente para apoiar a punição do agente pelo crime de tráfico de menor gravidade, sendo ainda necessárias outras circunstâncias atenuantes que diminuam consideravelmente a ilicitude dos factos, tais como os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, entre outras. Não se constata nos autos tais circunstâncias que permitem considerar que o recorrente actuou com ilicitude consideravelmente diminuída.
Daí que, ao abrigo do n.º 2 do art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, a conduta do recorrente deve ser punida com a aplicação do art.º 8.º da mesma Lei, e não do art.º 11.º.
(III) Excesso da medida da pena
Temos entendido que, ao determinar a medida a pena, o tribunal a quo tem uma margem de discricionariedade dentro da moldura penal, e só pode intervir o tribunal superior quando a medida da pena determinada pelo tribunal a quo não se corresponda ao crime, ou a pena se revele manifestamente desproporcional.
O crime praticado pelo recorrente é punível com pena de prisão de 5 a 15 anos.
O recorrente não é primário, e foi condenado judicialmente em Macau por 4 vezes, duas das quais pela prática de crime de natureza basicamente igual ao crime nos autos.
Por outro lado, tendo em conta as exigências da protecção de bens jurídicos e da expectativa pública, o crime de tráfico ilícito de droga tem sido frequentemente cometido na sociedade, sendo cada vez mais activas as respectivas actividades criminosas e mais jovens os agentes. Esses actos criminosos põem directamente em risco a saúde dos cidadãos, especialmente dos jovens, pelo que são prementes as exigências de prevenção deste tipo de crime.
Por isso, após análise dos factos e de todas as circunstâncias que depuseram a favor do recorrente e contra ele, o tribunal a quo condenou o recorrente numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva. Tal medida de pena está em conformidade com as exigências fundamentais da prevenção geral e especial de crime, não se verificando qualquer margem para a comutação de pena, e muito menos, para a suspensão da execução da pena exigida pelo recorrente”.
A final, em sede do dispositivo acordou-se “julgar parcialmente procedente o recurso do recorrente A, passar a condenar o 1º arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, dum crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. p. pelo art.º 14.º, n.º 2 e n.º 3, e art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, alterada pela Lei n.º 10/2016, e manter a pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva aplicada pelo tribunal a quo.
(…)”; (cfr., fls. 556 a 560-v e fls. 27 a 40 do Apenso).
3.1 Do assim decidido, traz o referido arguido o presente recurso, e, percorrendo a motivação e conclusões do mesmo, verifica-se que, (não impugnando a “decisão da matéria de facto”), coloca as questões seguintes:
- da “nulidade do Acórdão recorrido”;
- da “violação do art. 19° da Lei n.° 17/2009”;
- da “violação dos art°s 14° e 11° da Lei n.° 17/2009 e do art. 40° do C.P.M.”; e,
- da “violação do art. 66° do C.P.M.”; (cfr., conclusão n.° 4).
–– Mostra-se de começar, como se apresenta lógico, pela arguida “nulidade do Acórdão recorrido”.
Afirma o recorrente que:
“Um dos fundamentos em que o Recorrente alicerçou o seu recurso para o Venerando TSI foi o da proibição de se aplicar o artigo 14.°, n.° 2, da Lei da Droga (que pune os consumidores com as penas aplicadas aos traficantes), aos consumidores comprovadamente toxicodependentes, como o é o Recorrente nestes autos, devendo aplicar-se o disposto no artigo 19º, quanto à suspensão da pena. Tais fundamentos encontram-se no capítulo III (páginas 18 a 24 do Recurso interposto) e das conclusões 34 a 45 do seu Recurso”; e que,
“O Tribunal a quo, apesar de mencionar este como um dos fundamentos do recurso interposto, nada referiu a esse respeito na parte da fundamentação do Acórdão”; (cfr., conclusões 6ª e 7ª).
Não tem razão.
A invocada “nulidade”, no caso, por alegada “omissão de pronúncia” – tão só – ocorre quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre “questão” que lhe coubesse conhecer; (cfr., art. 571°, n.° 1, al. d) do C.P.C.M., aplicável aos presentes autos de natureza penal por força do art. 4° do C.P.P.M.).
Porém, (e como cremos ser sabido), tal nulidade (igualmente) apenas ocorre em relação a “questões”, e não quanto a todo e qualquer dos “fundamentos”, “razões”, “opiniões”, (ou mesmo doutrinas) que os sujeitos processuais invoquem para sustentar ou justificar o seu ponto de vista sobre as (verdadeiras) “questões” que colocam.
O vocábulo (legal) “questão” não pode ser entendido de forma a abranger (todos) os “argumentos”, invocados pelas partes.
Reporta-se, apenas, às (concretas) “pretensões” deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às “concretas controvérsias a dirimir”; (neste sentido, cfr., v.g., Oliveira Mendes in, “C.P.P. Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1180).
No caso, a “questão” consiste na pretendida “não aplicação ao recorrente do art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 17/2009”, com a consequente “suspensão da execução da pena” que lhe foi decretada.
E, em relação à mesma, inegável é que não deixou o Tribunal recorrido de emitir (expressa) pronúncia, afirmando que era aquela (suspensão) inviável; (cfr., vg., o § último do Acórdão antes do “Dispositivo”).
Assim, e ainda que se nos mostre de reconhecer que melhor seria que tivesse sido mais explícito, (justificando, mais detalhadamente, a sua posição, com o que se desloca então a “questão” para a sede da “fundamentação”, e que, de qualquer maneira, não foi sequer colocada), evidente se apresenta que não ocorre uma “omissão de pronúncia” em relação à referida “questão/pretensão” colocada, geradora de uma “nulidade do Acórdão”, como pelo ora recorrente vem alegado.
Claro nos apresentando o que se deixou consignado, e resolvida que nestes termos nos parece estar esta “questão” – e sem prejuízo de, ainda que por motivos diversos, a ela voltarmos mais adiante – continuemos.
–– E, continuando, confrontamo-nos com “3 questões”, todas elas relacionadas com a decisão que efectuou o “enquadramento jurídico-penal” da conduta do arguido, e, assim, com a aplicação de disposições da Lei n.° 17/2009, (com a redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), mais concretamente, dos seus art°s 19°, 14° e 11°, e com o art. 66° do C.P.M., e que, em consequência, tem implicações (directas) com a questão da “adequação da pena”.
E, então, identificada(s) que nestes termos fica(m) a(s) “questão/questões” a tratar, mostra-se-nos desde já adequada uma nota prévia quanto à pelo recorrente alegada “toxicodependência”.
Analisados os presentes autos verifica-se que por impulso processual do ora recorrente, o Tribunal Judicial de Base solicitou aos Serviços de Saúde da R.A.E.M. que ao mesmo fosse efectuado um “exame médico-legal”, (o que sucedeu), cujo “relatório” se encontra junto aos autos – cfr., fls. 347 a 351 – e que é referido em sede da fundamentação do Acórdão daquele Tribunal; (cfr., fls. 407-v).
Porém, não obstante em sede da sua “contestação”, ter o recorrente alegado – expressamente – que era “toxicodependente”, e que se encontrava “internado no Centro de Reabilitação da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau, (A.R.T.M.), com o objectivo de tratar da sua toxicodependência”, (cfr., art°s 8° a 10° da contestação, a fls. 258 a 260), e, ainda que assim conste do aludido “relatório”, (onde, a título de diagnóstico se consignou padecer o recorrente do “síndrome de dependência de estimulantes-metanfetamina”), e tendo o depoimento do técnico do referido “Centro de Reabilitação” confirmado em audiência de julgamento realizada em 07.05.2019 que, (em conformidade com o documento deste Centro pelo recorrente junto aos autos), o recorrente se encontra aí “internado há cerca de 7 meses, e com resultados positivos”, constata-se que, ambas as Instâncias (recorridas) se limitaram a referir, em sede de “decisão da matéria de facto”, (que atrás se deixou transcrita), que o recorrente (apenas) tinha o “hábito de consumir droga, ice”; (cfr., ponto n.° 1 da matéria de facto).
Ora, afigura-se-nos que o “hábito de consumo de drogas”, e que se pode também apelidar de “consumo habitual”, (ou “com – alguma – regularidade”), por contraposição a um “consumo pontual”, (ou ocasional), não se equipara a uma situação de “consumo continuado e prolongado”, que origina no consumidor um “síndrome de dependência”, (vulgo, “toxicodependência”), ou “vício bioquímico”, que se caracteriza por um comportamento que cria uma “relação de dependência com a droga”, (pela Organização Mundial de Saúde) considerada como um estado de necessidade física e/ou psíquica do organismo face a um produto tóxico que resulta num conjunto de reacções decorrentes do seu uso contínuo e prolongado, e que faz com que a pessoa em questão possa experimentar “desejos incontroláveis de consumir”, e, cuja privação, pode acarretar situações de “transtorno” e “estados de incapacidade”.
Nesta conformidade, visto estando que o ora recorrente alegou, oportuna e expressamente, tal “circunstância”, sendo a mesma relevante para a decisão a proferir, e podendo esta Instância conhecer, oficiosamente, dos vícios do art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M., (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2001, Proc. n.° 11/2001, de 30.05.2002, Proc. n.° 7/2002, e mais recentemente, de 01.11.2017, Proc. n.° 47/2017), há que declarar que se detecta aqui um “vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” que, em face do que dos autos consta, (nomeadamente, o aludido “relatório de exame médico legal”, que para todos os efeitos tem o valor de um “perícia”, e atento o estatuído no art. 149° do C.P.P.M.), se julga de sanar, aditando-se, à matéria de facto dada como provada que o ora recorrente tem o “hábito de consumir droga «ice», padecendo do síndrome de dependência de estimulantes, (metanfetamina)”, o mesmo sucedendo quanto ao alegado “tratamento desta sua “toxicodependência” no atrás referido Centro de Reabilitação”, (factualidade esta que, assim, passa a integrar a “matéria de facto provada” para todos os efeitos legais).
Aqui chegados, voltemos à questão pelo recorrente colocada.
Vejamos.
Em causa estão os seguintes preceitos da Lei n.° 17/2009, com a redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016 e cujo teor se passa a transcrever para melhor se abordar a questão:
“Artigo 8.º
Tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 6 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 1 a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 2 a 8 anos, no caso do n.º 2.
Artigo 11.º
Produção e tráfico de menor gravidade
1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante.
Artigo 14.º
Consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
1. Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de 3 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias, salvo o disposto no número seguinte.
2. Caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente referido no número anterior cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º
3. Para determinar se a quantidade de plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém excede ou não cinco vezes a quantidade a que se refere o número anterior, são contabilizadas as plantas, substâncias ou preparados que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais”; e
“Artigo 19.º
Suspensão da execução da pena de prisão
1. Se o arguido tiver sido condenado pela prática dos crimes previstos nos artigos 14.º ou 15.º e tiver sido considerado toxicodependente nos termos do artigo 25.º, o tribunal suspende a execução da pena de prisão, sob condição, para além de outros deveres ou regras de conduta adequados, de se sujeitar voluntariamente a tratamento ou a internamento em estabelecimento adequado, o que comprovará pela forma e nas datas que o tribunal determinar.
2. Todavia, nos casos em que anteriormente tenha sido suspensa a execução da pena de prisão, aplicada pela prática dos crimes previstos nos artigos 14.º ou 15.º, o tribunal pode decidir aplicar ou não a suspensão da execução da pena.
3. Se durante o período da suspensão da execução da pena de prisão o toxicodependente culposamente não se sujeitar a tratamento ou a internamento ou deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos pelo tribunal, aplica-se o disposto no Código Penal para a falta de cumprimento desses deveres ou regras de conduta.
4. Quando revogada a suspensão, o cumprimento da pena de prisão terá lugar em zona apropriada do estabelecimento prisional.
5. A sujeição do toxicodependente a tratamento ou a internamento em estabelecimento adequado durante o período de suspensão é executada mediante mandado emitido, para o efeito, pelo juiz, com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, em articulação com os Serviços de Saúde ou com o Instituto de Acção Social.
6. Os serviços de reinserção social informam o juiz da evolução e termo do tratamento ou do internamento, podendo sugerir medidas que considerem adequadas à cura do toxicodependente.”
Pois bem, antes de se entrar na apreciação da pretensão do recorrente, mostra-se de aqui consignar desde já que, em conformidade com decisões recentemente proferidas por esta Instância, (e que são também citadas no Acórdão recorrido), da factualidade dada como provada se deve concluir que em causa está o tipo de crime de “consumo ilícito de estupefaciente (agravado)”, e não o de “tráfico ilícito de estupefacientes”; (cfr., v.g., o Ac. de 16.01.2019, Proc. n.° 112/2018, cujo teor aqui se dá como reproduzido).
Nesta conformidade, considerando que – para além de assente estar que o “arguido detinha 2 gramas de Metanfetamina para o seu “próprio” consumo”, se deve também considerar como adquirido que o mesmo “padece da síndrome de dependência de estimulantes – Metanfetamina”, mostrando-se de concluir, em ponderação desta mesma “circunstância”, que verificado se deve considerar o circunstancialismo previsto no art. 11°, n.° 1 do referido diploma legal, sendo assim de se aplicar ao arguido uma pena cuja moldura é de 1 a 5 anos de prisão; (cfr., alínea 1).
Atentando na “imagem global” resultante da matéria de facto dada como provada, (justificada não estando, de qualquer maneira, uma “atenuação especial” da pena por inverificados os seus pressupostos legais), tendo presente a referida moldura penal e o estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M. quanto aos critérios para a determinação da medida da pena, tem-se como justa e adequada a pena (concreta) de 1 ano e 9 meses de prisão.
Por fim, e quanto à pretendida “suspensão da execução da pena”, apresenta-se que inviável é tal pretensão dado que se mostra de considerar que tal medida é apenas aplicável a situações em que em causa esteja o crime de “consumo de estupefaciente (simples)”, do art. 14°, n.° 1, sendo, de qualquer forma de notar que, in casu, em face dos “antecedentes criminais” do ora recorrente, (em especial, considerando que já foi antes condenado pelo crime de “consumo ilícito de estupefacientes”), verificados também não se apresentam os pressupostos legais para tal decisão; (cfr., art. 19°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 17/2009 e 48° do C.P.M.).
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, ficando o arguido condenado na pena de 1 ano e 9 meses de prisão.
Pelo seu decaimento, pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários, (salientando-se que, em sede de execução da pena se deve atentar no estatuído no art. 44° do “Regime de execução das medidas privativas da liberdade” – D.L. n.° 40/94/M).
Macau, aos 31 de Julho de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) [Segue declaração de voto]
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Processo nº 51/2020
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Não obstante termos relatado o acórdão que antecede em conformidade com o entendimento dos meus Exmos Colegas, outro se nos mostra que devia ser o “enquadramento jurídico-penal” da factualidade dada como provada que, em nossa opinião, integra a prática pelo recorrente de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelos artigos 14°, n.° 2, e 8°, n.° 1, da Lei n.° 17/2009, (com a redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016).
Importa atentar que ao referido art. 14° – que nas anteriores versões à Lei n.° 10/2016 tinha como (único) objectivo tipificar o crime de “consumo ilícito de estupefacientes” – foram aditados “2 números”, e que, o primeiro destes, (o “n.° 2”), não se limita, (como acontece com o art. 10°), a remeter para as “penas” dos antecedentes artigos 7°, 8° (ou 11°), mas sim para as “disposições” destes preceitos, mostrando-se de notar, igualmente, que no segundo, (no “n.° 3”), se estatui que para determinar se a quantidade de estupefaciente excede, (ou não), cinco vezes a referenciada para uso diário, se deve contabilizar, não só, as que se “destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal”, mas, também, aquelas que “se destinem a outros fins ilegais”.
Com efeito, atenta a redacção – “letra” – dos aludidos normativos, e sob pena de ficar esvaziados de conteúdo útil, apresenta-se-nos de concluir que o que aí se regula (já) não diz respeito ao (tipo de) crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, (p. e p. no n.° 1 do art. 14°), pois que, com o (novo) “n.° 2”, pretendeu-se uma aplicação (em bloco) de “tudo” o que está estatuído nas “disposições dos artigos 7°, 8° ou 11°”, (e não só das “penas” aí previstas), e, o “n.° 3”, referindo-se (também), e contabilizando-a, à quantidade de estupefaciente para “outros fins ilegais”, (que não apenas para “consumo”), leva-nos a entender que implica a “qualificação” da factualidade provada nos termos que se deixou explanada, apresentando-se-nos constituir esta a leitura que em maior harmonia está com o estatuído no (próprio) art. 8°, que não obstante ter como epígrafe “tráfico ilícito de estupefacientes”, abrange um “conjunto de condutas”, aí incluindo como tal, (isto é, como “tráfico”), a “detenção fora dos casos previstos no n.° 1 do art. 14°”, (ou seja, a detenção, ainda que para consumo, desde que em quantidade que exceda “cinco vezes a referência para uso diário”), excluindo-se, precisamente, os (casos dos) “n°s 2 e 3” a que se fez referência, o mesmo sucedendo, ainda, com o estatuído no art. 11°, onde, (após no art. 10° se tratar, tão só, da agravação das “penas previstas nos artigos 7° a 9°”), se refere, expressamente, (já não às “penas”, mas) aos “factos descritos nos artigos 7° a 9°”, projectando – limitando – o seu campo de aplicação à “matéria” nestes artigos regulada e que corresponde aos tipos de crime de “produção ilícita de estupefacientes”, de “tráfico” e de “precursores”.
Nesta conformidade, e sem prejuízo do respeito devido a outros entendimentos, adequado não se nos mostra de considerar que em causa nos presentes autos esteja 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes (agravado)”, ao qual – por a quantidade de estupefaciente pelo arguido detida e exclusivamente destinada ao consumo exceder, (ligeiramente), “cinco vezes a referenciada para uso diário” – se passa a aplicar, (em resultado da referida “agravação”), a (mesma) pena prevista para o crime de “tráfico”, “saltando-se” de uma pena (alternativa) “de multa ou prisão até 1 ano” para a de “prisão de 5 a 15 anos”, em frontal desvio com o (anterior) “regime de agravação” previsto no aludido art. 10°, com o qual as penas para os crimes dos artigos 7° a 9° são agravadas de “um terço nos seus limites mínimo e máximo”, (o mesmo sucedendo no art. 12°, n.° 4).
Por sua vez, não se mostra de descurar o estatuído no art. 19° que, regulando a possibilidade de “suspensão da execução da pena (de prisão)”, e referindo-se, (somente), aos “crimes previstos no art. 14° ou 15°”, implica que se destine, tão só, aos tipos de crime de “consumo ilícito de estupefacientes” e de “detenção indevida de utensílio” que, (como condutas “menos graves” no âmbito da prevenção e combate aos crimes relacionados com a droga, e) sendo (ambos) puníveis com a pena (alternativa) de multa ou prisão até um ano – e, desta forma, em sintonia com o regime (geral) para esta matéria estatuído no art. 48° do C.P.M., “em pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos” – se apresentam (formalmente) passíveis desta medida, (de suspensão da execução da pena).
Daí, apresentando-se-nos (também) ser este o entendimento que melhor respeita a “ratio” das alterações introduzidas com a Lei n.° 10/2016 – cfr., o teor da respectiva “Nota Justificativa”, o Parecer n.° 4/V/2016, e posterior debate legislativo, in Diário da Assembleia Legislativa da R.A.E.M., I série, n.° V-73, pág. 13 e seguintes, onde se declarou, expressamente, que “a partir de agora, se a quantidade ultrapassar o limite de cinco dias, se deve condenar por tráfico ilícito de estupefacientes” – mas concordando com a pena ao arguido decretada, (por aplicação do preceituado no art. 11°), a presente declaração.
Macau, aos 31 de Julho de 2020
José Maria Dias Azedo
(*) Com declaração de voto.
1 Cfr. o Acórdão do TSI de 19 de Abril de 2018, no Processo n.º 178/2018.
2 Cfr. o Acórdão do TUI de 16 de Janeiro de 2019, no Processo n.º 112/2018.
3 Cfr. os Acórdãos do TUI de 22 de Janeiro de 2020, no Processo n.º 126/2019 e no Processo n.º 133/2019.
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Proc. 51/2020 Pág. 46
Proc. 51/2020 Pág. 45