Processo nº 90/2020 Data: 31.07.2020
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa simples à integridade física agravada pelo resultado”.
Morte do ofendido.
”Crime preterintencional”.
Dolo e negligência.
Qualificação jurídico-penal.
“Motivo fútil”.
Pena.
SUMÁRIO
1. Nos chamados “crimes preterintencionais” ou “agravados pelo resultado”, identificam-se, normalmente, três elementos essenciais:
- um “crime fundamental”, praticado a título de “dolo”;
- um “(crime de) resultado”, mais grave do que se intencionava, (portanto, para além do dolo), imputado a título de “negligência”; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa.
2. É indispensável que entre a “acção do agente” e o “resultado” da mesma haja uma “conexão causal”, (imputação objectiva), necessário sendo igualmente que este mesmo resultado possa ser imputado ao agente a título de “negligência”, (nos termos do regime do art. 17° do C.P.M.).
Toda a pena tem de ter como suporte axiológico normativo uma culpa concreta: “nulla poena sine culpa”.
3. O motivo (totalmente) “gratuito”, “insignificante” e “desproporcional” para a prática de um crime integra a circunstância agravante – “motivo fútil” – prevista no art. 129°, n.° 2, al. c) do C.P.M..
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 90/2020
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão de 06.12.2019 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0216-PCC, do Tribunal Judicial de Base, foi, A (甲), arguido com os restantes sinais dos autos, condenado pela prática como autor material de 1 crime de “ofensa simples à integridade física agravada pelo resultado”, p. e p. pelo art. 137°, n.° 1, 139°, n.° 1, al. a), e 140°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 6 anos de prisão.
Em relação ao pedido de indemnização civil aí enxertado, decidiu-se condenar o mesmo arguido no pagamento de uma indemnização no montante total de MOP$2.379.814,00 e juros aos legais herdeiros do ofendido B (乙); (cfr., fls. 553 a 567-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 23.04.2020, (Proc. n.° 107/2020), negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 639 a 656).
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Ainda inconformado, recorreu para este Tribunal de Última Instância, e, limitando o seu recurso à “decisão crime”, assaca – em síntese – ao Acórdão recorrido, os vícios de “errada qualificação jurídica” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 670 a 676-v).
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Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que o recurso merecia parcial provimento, admitindo uma redução da pena; (cfr., fls. 681 a 689).
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Em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer mantendo a posição antes assumida; (cfr., fls. 701).
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Efectuado que foi o exame preliminar, e colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, é momento de decidir.
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A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Vem dada como provada a “matéria de facto” elencada nos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância que aqui se dá como integralmente reproduzida, (cfr., fls. 556 a 559-v e 645-v a 648, notando-se que, oportunamente, se fará adequada referência à mesma).
Do direito
3. Insurge-se o arguido contra o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a sua condenação como autor material da prática de 1 crime de “ofensa simples à integridade física agravada pelo resultado”, p. e p. pelo art. 137°, n.° 1, 139°, n.° 1, al. a), e 140°, n.° 1 do C.P.M., mantendo-lhe a pena de 6 anos de prisão.
Coloca duas questões:
- “errada qualificação jurídica”; e,
- “excesso de pena”.
–– Sem mais demoras, vejamos se tem o recorrente razão, começando-se, como se mostra lógico, pela questão da “qualificação jurídica”.
Colhe-se da aludida matéria de facto dada como provada que – por motivos relacionados com o seu filho, (menor), e que mais adiante cuidaremos de melhor explicitar – no dia 27.04.2019, o arguido, ora recorrente, dirigiu-se à casa do ofendido, com quem começou a discutir, passando, pouco depois, à agressão, atingindo, de forma livre, voluntária deliberada, a cara deste com mais que um soco, fazendo-o cair para o chão e bater com a parte de trás da cabeça, provocando-lhe lesões que causaram, (directa e necessariamente), a sua morte.
E dúvidas não havendo que, com tal “conduta”, cometeu o arguido, ora recorrente, em autoria material, (e com “dolo directo”), o crime de “ofensa simples à integridade física”, (pois que com a “agressão a soco na cara do ofendido”, “ofendeu o corpo” deste; cfr., art. 137°, n.° 1 do C.P.M.), questiona, porém, o mesmo arguido, a decretada “agravação” desta sua conduta com o “resultado da morte do ofendido”, por aplicação do estatuído no art. 139°, n.° 1, al. a) do referido código, (onde se preceitua que “1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido: a) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, no caso do artigo 137.º”).
Em síntese que se nos mostra adequada, diz que não se podia considerar a “morte do ofendido” – que entende ocorrer como um “acidente” em relação ao qual é “alheio” – como “resultado da sua conduta”.
Não se lhe assiste razão.
Recentemente, perante situação próxima – em que se tratou de um crime (de “sequestro”) “agravado pelo resultado da morte da vítima” (por suicídio) – tivemos oportunidade de consignar o que segue:
Tem-se vulgarmente vindo a considerar que em tais situações (de “agravação pelo resultado”) se identificam três elementos essenciais:
- um “crime fundamental”, praticado a título de “dolo”;
- um “(crime de) resultado”, mais grave do que se intencionava, (portanto, para além do dolo), imputado a título de “negligência”; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa.
Com efeito, dúvidas não podem (nem devem) existir que admissível não é que alguém seja criminalmente responsabilizado, (ainda que verificado o pressuposto da “causalidade adequada” da sua acção relativamente ao resultado), sem que se verifique que “agiu com culpa”.
Na verdade, não nos parece que suscite dúvidas o preceituado no art. 12° do C.P.M. – integrado no Capítulo dos “pressupostos da punição” – onde claramente se estatui que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, assim se consagrando um dos princípios basilares do direito penal, (o da “culpa”), segundo o qual toda a pena tem de ter como suporte axiológico normativo uma culpa concreta: “nulla poena sine culpa”, (cfr., v.g., a anotação feita ao referido art. 12° por M. L. Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. I, pág. 229 e segs., 2018, com relevantes e abundantes referências da doutrina sobre o tema).
Está assim tal matéria relacionada com aquilo que no âmbito do (anterior) C.P. de 1886 se apelidava de “crime preterintencional” ou “praeter intencionum”, como sucedia com o seu art. 361°, § único e, em relação ao qual, como “exemplo de escola” desta modalidade de crime, se citava o caso de o agente ofender corporalmente outrem sem intenção homicida, mas em que as consequências das lesões causadas lhe provocaram a morte.
Tal “agravação pelo resultado” chegou a ser justificada pela doutrina da “imputabilidade ou responsabilidade objectiva”, no sentido da desnecessidade de culpa relativamente ao evento agravante; (afigura-se-nos, assim ter, em tempos, entendido o Prof. Cavaleiro de Ferreira nas suas “Lições de Direito Penal”, 1941, pág. 231).
Contudo perante as distorções (e exageros) que tal posição originava em termos de resultados práticos, (identificando-se com o direito canónico mediaval, e em que o autor de um facto era, automaticamente, responsável por todos os “efeitos” pelo mesmo produzidos), desde cedo se começou também a pugnar pela erradicação desta “responsabilização automática”, (ou “responsabilidade objectiva” em direito penal), exigindo-se, em face do atrás citado princípio basilar da culpa, a negligência do agente quanto à produção do resultado; (cfr. ainda no âmbito do C. P. de 1886, o art. 1°, onde se faz referência a “facto voluntário” e o n.° 7 do art. 44° em que se declarava como “não punível” os agentes que tivessem “procedido sem intenção criminosa e sem culpa”, e, claramente, na doutrina, E. Correia in, “Direito Criminal”, Vol I, 1963, pág. 439 e segs.; F. Dias in, “Pressupostos da Punição”, Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., na sua dissertação “Responsabilidade pelo resultado e crimes preterintencionais”, 1961, pág. 123 e segs., assim como na anotação que fez ao Ac. do S.T.J. de 01.07.70, in R.D.E.S., Ano XVII, n°s 2-3-4, 1970, pág. 253 e segs.; Damião Cunha, no seu estudo “Tentativa e comparticipação nos crimes preterintencionais”, in R.P.C.C., Ano 2-4°, 1992, pág. 563 e segs.; Nicole da Costa Pacheco in, “A alegação e prova do dolo no direito processual penal: em especial, as consequências da falta da sua alegação na acusação”, podendo-se, também, sobre o tema, ver, entre outros, os Acórdãos desta Instância de 06.12.2006, Proc. n.° 41/2006, e o de 06.12.2011, Proc. n.° 58/2011).
Como, igualmente, salienta Paula R. de Faria – in Comentário Conimbricence ao Código Penal, Tomo I, pág. 245 – “a par do desvalor do resultado, terá de existir um desvalor da acção, no qual avulta a previsibilidade subjectiva e a violação do dever objectivo de cuidado”; (cfr., v.g., o Acórdão deste T.U.I. de 05.06.2020, Proc. n.° 43/2020, podendo-se, também, sobre o tema, ver o Ac. de 06.12.2006, Proc. n.° 41/2006 e o de 15.06.2018, Proc. n.° 16/2018).
In casu, invoca o recorrente o teor do depoimento em audiência de julgamento prestado pelo profissional de saúde que elaborou o relatório médico-legal junto aos autos, (cfr., o Ac. do Tribunal Judicial de Base, a fls. 560), com o mesmo pretendendo afastar a sua responsabilidade em relação à “morte da vítima”, (como resultado da sua conduta).
E, como – bem – decidiram as Instâncias recorridas, não se lhe pode reconhecer razão.
Desde já – e notando-se que a “questão” assim colocada não deixa de incidir (também) sobre a “decisão da matéria de facto” – porque o referido “depoimento” não tem o valor de uma “prova pericial”, (com o valor probatório previsto no art. 149° do C.P.P.M.), havendo, em qualquer das circunstâncias, (e independentemente do demais), que notar que adequadamente justificado e explicitado foi o motivo da divergência (e convicção) do Tribunal quanto ao mesmo.
Com efeito, impedido não estava o Tribunal de concluir que, sendo a vítima uma pessoa de idade, na altura dos factos, com 74 anos, (perfeitamente) possível e previsível era a sua queda e consequente morte em resultado de uma agressão como a que sofreu, e, nesta conformidade, tendo o arguido agido da forma que agiu, adequado era que fosse pela mesma responsabilizado a título de “negligência”.
Tal é, (aliás), o que, (com naturalidade), resulta de uma apreciação lógica e coerente, assente em regras de experiência e da normalidade das coisas, ponderando-se, em especial, as circunstâncias descritas na factualidade provada, e que, em síntese, se deixou retratada.
Na verdade, (e infelizmente), nenhuma “novidade” apresenta este tipo de “situações”, em que “pessoas idosas”, (e por isso, normalmente mais “frágeis” e limitadas na capacidade de reacção e de movimentos), vem a falecer em consequência (necessária e directa) de lesões ocorridas por “quedas desemparadas” (involuntárias), motivadas por desequilíbrios, escorregadelas ou tropeções, ou em consequência de encontrões, empurrões, ou outro tipo de agressões…
No caso, atenta a agressão que sofreu o ofendido – socos na cara – e sendo o mesmo, na altura dos factos, uma pessoa com 74 anos, (e assim, obviamente, com as fragilidades normais e típicas de uma pessoa com esta idade), censura não merece a decisão recorrida do Tribunal de Segunda Instância que, dando como verificado o indispensável “nexo de causalidade” entre a conduta do recorrente e o resultado da morte do ofendido, confirmou a condenação nos termos descritos no art. 137°, n.° 1 e art. 139°, n.° 1, al. a) do C.P.M..
Como (no atrás referido veredicto deste Tribunal) também já tivemos oportunidade de salientar, para a aqui em causa “agravação pelo resultado”, indispensável é que entre a “acção do agente” e o “resultado” da mesma haja uma “conexão causal”, (imputação objectiva), necessário sendo igualmente que este mesmo resultado possa ser imputado ao agente a título de “negligência”, (nos termos do regime do art. 17° do C.P.M.).
E, como se deixou relatado, tal é – inquestionavelmente – o que, in casu, resulta da factualidade dada como provada.
Porém, ainda em termos de “qualificação jurídico-penal” da sua conduta, entende o arguido ora recorrente que adequada também não foi a consideração de que as “circunstâncias” da prática do crime revelavam “especial censurabilidade ou perversidade do agente”, dando lugar à aplicação do art. 140°, n.° 1 do C.P.M., com a consequente agravação da pena aplicável nos termos aí previstos, (ou seja, “de um terço nos seus limites mínimo e máximo”).
Ora, também aqui, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Com efeito, importa ter conta que no n.° 2 do referido art. 140° se prescreve que “São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 129.º”, e que, deste art. 129°, n.° 2, resulta que o “motivo fútil” é uma destas circunstâncias; (cfr., n.° 2, al. c)).
Nesta conformidade, atenta a factualidade provada nos presentes autos, e se se atentar que a “reacção” do arguido ora recorrente, (dirigindo-se à casa e procurando pelo ofendido), teve (única e exclusiva) origem, (causa), num “pequeno arranhão” na face do seu filho, (que apenas deixou uma marca superficial na pele), causado pelo neto da vítima, ambos crianças, enquanto brincavam num espaço de diversões, e que na sequência de tal, o arguido insistiu e coagiu, (obrigou), o dito “agressor” a levá-lo à sua casa, (assim chegando ao contacto com o ofendido), evidente se apresenta que (totalmente) gratuito, insignificante e desproporcional – “fútil” – foi o “motivo” de tanta agressividade.
Assim, ponderando no que se deixou exposto, e daqui se mostrando de retirar possuir o arguido uma personalidade – “(algo) complicada” – que não olha a meios para satisfazer os seus impulsos (agressivos que tem dificuldade em controlar), mesmo que a outra pessoa com quem tiver que interagir seja (uma criança, inimputável) ou um idoso, (totalmente) alheio à situação, não se coibindo de, (sem qualquer razão ou motivo legítimo ou justificável) agredir, a soco, na cara, cremos pois que, também na parte em questão, se terá que negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão proferida; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 25.04.2018, Proc. n.° 18/2018).
–– Por fim, adequada se apresentando a “qualificação jurídico-penal” da conduta do arguido, ora recorrente, vejamos do alegado “excesso de pena”.
Ao crime em questão, (em virtude da aplicação do atrás referido art. 140°, n.° 1 do C.P.M.), cabe a pena de 2 anos e 8 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, (e não, o limite máximo de “11 anos” e 8 meses de prisão, como certamente por lapso de cálculo entenderam as Instâncias).
Ponderando na referida moldura penal, no preceituado no art. 40° e 65° do C.P.M. que regulam a matéria da “determinação da medida pena”, tendo presente a factualidade dada como provada, e atentando-se, agora, em (especial) que o recorrente, (nascido em 1982, portanto, com cerca de 37 anos à data dos factos), é delinquente primário, tendo vida familiar, profissional e económica estabilizada, e que, entretanto, após a prolação do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, efectuou o pagamento da indemnização em que foi condenado, demonstrando, assim, arrependimento pela sua conduta, assim como vontade de reparar, na medida do possível, o “mal” com a mesma causado, cremos pois que viável é uma redução da pena aplicada, preferível se nos mostrando uma outra, não tão próxima do meio da moldura penal, e algo mais junto do seu limite mínimo.
Dest’arte, tem-se como mais justa e adequada a pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, ficando o arguido condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
Pelo seu decaimento, pagará o recorrente a taxa de justiça de 5 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 31 de Julho de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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