Processo nº 155/2020 Data: 23.09.2020
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “detenção ilícita de estupefacientes (agravado)”.
Atenuação especial da pena.
(Art. 66° do C.P.M. e art. 18° da Lei n.° 17/2009).
SUMÁRIO
1. A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
Com efeito, a figura da atenuação especial da pena surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses “especiais”, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
2. Para efeitos de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser relevantes e capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento.
3. Na ausência de qualquer “circunstância” que permita considerar a situação em questão como “excepcional” ou “extraordinária”, e provado não estando que a colaboração do arguido permitiu o desmantelamento de qualquer “organização” que se dedicava ao crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” ou à captura do(s) seu(s) responsável(veis), vista está a inviabilidade da reclamada “atenuação especial”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 155/2020
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede dos Autos de Recurso Penal n.° 627/2020 proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão seguinte:
“I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 325 a 333 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0428-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 2, em conjugação com o art.o 8.o, n.o 1, ambos da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na sua redacção vigente, dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), na pena de cinco anos e seis meses de prisão, e de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, na pena de sete anos e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas parcelares, finalmente na pena única de oito anos e três meses de prisão.
Inconformado, veio esse arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 387 a 422 dos autos, o seguinte:
– ele não deveria ter sido condenado na qualidade de traficante de estupefacientes, mas sim somente por um crime de consumo ilícito de estupefacientes, nos termos do art.o 14.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009 (na sua redacção nova), devendo a respectiva pena fixada, consoante as circunstâncias verificadas, dentro da moldura penal abstracta prevista no n.o 1 do art.o 11.o (e não no n.o 1 do art.o 8.o) da dita Lei (na redacção nova), concretamente entre dois anos e dois anos e meio de prisão;
– e no caso de se entender haver crime de tráfico de estupefacientes, deveria ser especialmente atenuada a respectiva pena, nos termos do art.o 18.o da mesma Lei, para passar a ser aplicada uma pena não superior a seis anos de prisão ao crime de tráfico, isto porque o próprio recorrente chegou a colaborar efectivamente com a Polícia na identificação e investigação do indivíduo que lhe forneceu droga;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de reduzir a pena do crime de tráfico, nos termos gerais do art.o 65.o do Código Penal (CP), atenta mormente a circunstância de o próprio recorrente não ter recebido qualquer recompensa por guardar os estupefacientes daquele indivíduo, para passar a ser de cinco anos e meio a seis anos e meio de prisão.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 431 a 435 dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 451 a 453, opinando, a final, pelo carácter não excessivo das penas parcelares e única aplicadas no acórdão recorrido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Não sendo impugnada a matéria de facto dada por provada no texto do acórdão recorrido, é de tomar essa factualidade (como tal descrita nas páginas 5 a 8 desse texto decisório, a fls. 327 a 328v dos autos) como fundamentação fáctica do presente acórdão de recurso.
Segundo essa factualidade, o arguido ora recorrente, um delinquente primário, deteve, dentro de um carro, um total de 15,448 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços, em dois embrulhos), para o seu consumo pessoal, e um total de 131,063 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços, em 17 embrulhos), previamente fornecido por um indivíduo chamado B para o próprio recorrente o guardar e entregar a outrem (cfr. sobretudo os factos provados 6, 7, 10, 11 e 12).
Por outro lado, o Tribunal recorrido afirmou, no acórdão recorrido, que não ficou provado que o arguido, ao adquirir e deter os 17 embrulhos acima referidos, estava com o intuito de os vender a outrem, para obter interesse ilegítimo para ele próprio (cfr. o segundo facto especificado como não provado nas linhas 12 a 13 da página 8 do texto do aresto recorrido, a fl. 328v dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido ora recorrente começou por assacar à decisão condenatória penal recorrida erro de qualificação jurídico-penal dos factos.
Pois bem, o art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, prevê o seguinte:
– «1. Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de 3 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias, salvo o disposto no número seguinte.
2. Caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente referido no número anterior cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º
3. Para determinar se a quantidade de plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém excede ou não cinco vezes a quantidade a que se refere o número anterior, são contabilizadas as plantas, substâncias ou preparados que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais.» (com sublinhado só agora posto).
No caso dos autos, o arguido deteve, de modo ilícito, dentro de um carro, dois embrulhos de Canabis (em forma de planta em pedaços, contentores, ao total, de 15,448 gramas de quantidade líquida dessa substância) para o seu consumo pessoal, e 17 embrulhos de Canabis (em forma de planta em pedaços, contentores, ao total, de 131,063 gramas de quantidade líquida dessa substância) previamente fornecidos por um indivíduo chamado B para o próprio recorrente os guardar e entregar a outrem.
Assim sendo, já estão provados dois fins (e não apenas um) na conduta ilícita do recorrente de detenção desses 19 embrulhos de Canabis, em forma de planta em pedaços: (dois embrulhos) para consumo exclusivo do próprio recorrente, e (17 embrulhos) para fins de entrega a outrem (embora não fosse para obter vantagem ilegítima para ele próprio – cfr. o segundo facto não provado).
Por isso, por comando da parte final do n.o 3 do acima transcrito art.o 14.o, é de considerar que o recorrente acabou por deter ilicitamente, ao total, 146,511 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços), o que já ultrapassa muito o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário dessa substância (em forma de planta), fixada legalmente em um grama, de maneira que, manifestamente, à conduta dele dessa detenção total de 146,511 gramas de quantidade líquida de Canabis (em forma de planta em pedaços) não é aplicável a moldura correspondente à do crime de tráfico de menor gravidade previsto na alínea 1) do n.o 1 do art.o 11.o da mesma Lei (na redacção vigente à data dos factos), mas sim a moldura de cinco a 15 anos de prisão correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do seu art.o 8.o.
Entretanto, o Tribunal recorrido condenou o recorrente em dois crimes, o que não é adequado à luz da parte final do n.o 3 do art.o 14.o acima transcrito, pelo que é de passar a condenar o recorrente apenas como autor material de um crime de detenção ilícita de estupefacientes, previsto pelo art.o 14.o, n.os 2 e 3, e punível com a moldura penal correspondente à do crime de tráfico de estupefacientes do n.o 1 do art.o 8.o.
Quanto à medida da pena, frisa-se desde logo que no entender do presente Tribunal, a atenuação especial da pena prevista no art.o 18.o da mesma Lei deve ser aferida de modo cauteloso, por causa das elevadas exigências da prevenção geral, pelo que só é de considerar a activação dessa cláusula especial de atenuação da pena quando tiver havido desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga, o que não é o caso dos autos, já que a identificação concreta de um só indivíduo para efeitos da sua captura não atinge ao grau de desmantelamento de grupos ou organizações de tráfico de droga.
Resta decidir de qual a pena concreta a aplicar ao único crime, acima constatado, de detenção ilícita de estupefacientes do arguido recorrente, dentro da moldura, aplicável, de cinco a 15 anos de prisão.
Vistas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, e tendo em conta as prementes exigências da prevenção geral, seria de aplicar ao recorrente oito anos e meio de prisão. Contudo, para afastar a reforma, para pior, da espécie e do quantum da pena finalmente aplicada no acórdão recorrido (cfr. o art.o 399.o, n.o 1, do Código de Processo Penal), essa pena de oito anos e meio de prisão tem que ser reduzida aos oito anos e três meses de prisão, já imposta finalmente pelo Tribunal recorrido ao recorrente (embora com diferente qualificação jurídico-penal dos factos provados).
Em suma, procede o recurso apenas parcialmente na questão de erro de qualificação jurídica dos factos, sem mais indagação, por estar prejudicada pela análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, passando a condenar o arguido como autor material, na forma consumada, de um só crime (de detenção ilícita de estupefacientes), previsto pelo art.o 14.o, n.os 2 e 3, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), e punível com a moldura penal correspondente à do crime de tráfico ilícito de estupefacientes do n.o 1 do seu art.o 8.o, em oito anos e três meses de prisão.
Pagará ele um terço das custas do recurso, e duas UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao Ministério Público (com referência ao seu Ofício de fl. 466).
(…)”; (cfr., fls. 457 a 460-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado com o decidido, traz o arguido o presente recurso.
Motivou para em conclusões dizer o que segue:
“1.ª Veio o ora Recorrente acusado de praticar um crime de tráfico ilícito de estupefacientes p. e p. pelo art.° 8.° da Lei n.° 17/2009 e um crime de tráfico de ilícito de estupefacientes p. e p. pela conjugação dos artigos 8.°, n.° 1 e 14.°, n.° 2, do mesmo diploma legal.
2.ª Provou-se que o Recorrente detinha, no seu carro, 15,448 gramas de planta de canábis para seu consumo pessoal e um total de 131,063 gramas de canábis que guardava para um seu conhecido.
3.ª Provou-se ademais que o Recorrente não tinha qualquer intuito de obter interesses ilegítimos com a guarda dos estupefacientes, e ademais que ele colaborou com as autoridades policiais e judiciárias na identificação de outros suspeitos
4.ª Resultando ainda dos autos que o Arguido confessou os factos da acusação e colaborou com as autoridades judiciárias na investigação.
5.ª Após recurso para o TSI, passou o Recorrente a ser condenado por uma só conduta criminosa: a detenção ilícita de estupefacientes, e a ser punido por um só crime ao abrigo do art.° 14.°, n.°s 2 e 3, com a moldura penal do art.° 8.°, n.° 1, todos da lei n.° 17/2009, na mesma pena de 8 anos e 3 meses.
6.ª O arguido colaborou activamente com a investigação criminal, identificando um outro agente do crime, havendo tal colaboração sido fundamental para a evolução de um outro processo-crime actualmente em fase de recurso.
7.ª O Tribunal a quo considerou não haver aplicação da atenuação especial da pena ao abrigo do art.° 18.° da lei n.° 17/2009, fazendo uma interpretação restritiva desse artigo, no sentido de que só é aplicável aquando da identificação de suspeitos envolvidos em grupos dedicados ao tráfico de estupefacientes.
8.ª Tal interpretação restritiva da norma colide com as regras gerais da interpretação que norteiam o nosso Direito Penal, bem como com os seus sentidos literal e teleológico.
9.ª O facto de o legislador assinalar a circunstância em que tal identificação suceda no âmbito de “grupos, organizações ou associações”, não significa que a norma restrinja todos os outros casos em que o agente auxilia na recolha de provas decisivas.
10.ª O facto de o normativo poder levar a duas atenuações díspares (por um lado à mera atenuação especial e por outro à dispensa de pena) é indicativo de que está intrinsecamente pensado para abarcar um amplo leque de colaboração por parte dos agentes.
11.ª Tendo em conta que o Recorrente colaborou proactivamente com a investigação, auxiliando na recolha de provas contra outros responsáveis, provas essas essenciais para um outro processo crime, estão verificados, no caso dos autos, os pressupostos para a activação da atenuação especial do art.° 18.° da Lei n.° 17/2009.
12.ª A colaboração do arguido resulta patentemente dos autos, havendo sido confirmada em audiência por agentes da Polícia Judiciária, tratando-se de uma colaboração directa, patente e ampla.
13.ª Saliente-se, nomeadamente, o facto de o arguido, aquando já preso preventivamente e já após ter sido condenado a uma pena de prisão efectiva, ter colaborado com a Polícia Judiciária na identificação de Un Wai Kai, no dia 12 de Junho de 2020, nas instalações da PJ (no âmbito do inquérito n.° 14004/2019), através da prova de reconhecimento, o que levou à prisão preventiva do mesmo e, naturalmente, levará ao seu julgamento e responsabilização efectiva caso venha a ser condenado.
14.ª Facto esse de que foi dado conhecimento ao Venerando TSI por via de requerimento entregue em 12 de Junho de 2020.
15.ª Ainda que se entendesse que a atenuação especial ao abrigo do art.° 18.° da Lei n.° 17/2009 não tivesse aplicação in casu, sempre se diga que se impunha atenuação especial ao abrigo do art.° 66.° do Código Penal.
16.ª Resulta dos autos que o arguido (i) é primário (ii) confessou plenamente os factos (iii) colaborou desde o início com a justiça não só através da confissão do crime como na identificação e recolha de provas contra outros responsáveis e (iv) demonstrou arrependimento através de actos concretos.
17.ª Circunstâncias que impunham que o arguido tivesse beneficiado do instituto da atenuação especial da pena previsto no art.° 66.°, n.° 1, do CP.
18.ª Sendo certo que o instituto da atenuação especial da pena não é de aplicação automática, a verdade é que a conduta processual do arguido nos autos foi ela própria excepcional, altamente salutar e irrepreensível sob o ponto de vista de colaboração para da descoberta da verdade material.
19.ª O arguido, mesmo aquando já preso preventivamente e já após ter sido condenado a uma pena de prisão efectiva disponibilizou-se a colaborar activamente com os órgãos de polícia criminal.
20.ª A conduta do arguido conduz não só a uma atenuação destacada da sua culpa como das próprias exigências de prevenção especial e geral subjacentes.
21.ª A atenuação especial da pena, apesar de se tratar de uma medida excepcional, quando verificados os respectivos pressupostos, é de aplicação obrigatória.
22.ª O Tribunal recorrido, ao ter negado a atenuação especial a operar ao abrigo do art.° 18.° da Lei n.° 17/2009, devia ter atenuado especialmente a pena aplicada ao arguido nos termos do art.° 66.° do CP.
23.ª Sempre se diga que manifestamente exagerada é a pena global de 8 anos e 3 meses aplicada, havendo sido desconsiderados pressupostos que impunham a aplicação de uma pena menos severa.
24.ª Tratando-se de arguido primário, que confessou os factos, que colaborou efectivamente com a justiça na recolha de provas, que demonstrou arrependimento e que não tinha com a detenção de estupefacientes o objectivo de obter benefícios ilegítimos, devia ter sido aplicada uma pena mais perto do limite mínimo da moldura penal.
25.ª Não só a prevenção geral norteia a escolha da pena concretamente aplicável, sendo que diversos dos factores a avaliar na determinação da medida da pena abonam fortemente a favor do arguido.
26.ª A conduta processual do arguido, aliada ao facto de se tratar de arguido primário e de não se dedicar ao tráfico de estupefacientes para proveito próprio, tratam-se de factores que diminuem as exigências de prevenção bem como o seu grau de culpa.
27.ª As exigências de prevenção geral não podem ser, aquando da escolha da pena concreta, analisadas de forma abstracta, mas sim tendo em conta, nomeadamente, toda a conduta do agente durante após o cometimento do facto.
28.ª Resultou inequivocamente demonstrado que tanto as exigências de prevenção como o grau de culpa do arguido se encontram amplamente diminuídas.
29.ª Mesmo que não seja decretada a atenuação especial da pena, ainda assim deve ser corrigida a pena aplicada, determinando-se uma pena efectivamente condizente com as circunstâncias apuradas nos autos, nunca superior a 7 anos de prisão.
30.ª O douto Acórdão recorrido incorreu em violação dos artigos 18.° da Lei n.° 17/2009 e 66.° do Código Penal, por terem sido desaplicados num quadro que impunha a sua aplicação, ainda do artigo 65.° do Código Penal, na determinação da medida da pena”.
A final, pede que seja “consequentemente revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro no qual se passe a condenar o arguido em pena especialmente atenuada nunca superior a 6 anos de prisão, ou, subsidiariamente, em pena não superior a 7 anos de prisão, por condizente com os factos apurados, assim se fazendo a tão costumada,
JUSTIÇA”; (cfr., fls. 469 a 488)
*
Após resposta do Ministério Público, pugnando pela integral confirmação do decidido, (cfr., fls. 490 a 492-v), e remetidos os autos a esta Instância, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, opinando, também, pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 560).
*
Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão do Tribunal Judicial de Base de 15.05.2020, (Proc. n.° CR3-19-0428-PCC), a fls. 327 a 328-v, e agora sumariamente referenciados no Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância que atrás se deixou transcrito na sua íntegra.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, considerando que “excessiva” é a pena que lhe foi aplicada, batendo-se pela sua “atenuação especial” e, subsidiariamente, pela sua “redução”.
Não questionando a “decisão da matéria de facto”, (cfr., fls. 327 a 328-v), e da mesma se constatando que verificados estão todos os elementos (objectivos e subjectivos) do tipo de crime de “detenção ilícita de estupefacientes para consumo”, (p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 3° e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção da Lei n.° 10/2016), pelo qual foi condenado pelo Tribunal de Segunda Instância, vejamos, então, se adequada é a pena aplicada.
Ao crime pelo recorrente cometido cabe a pena de 5 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016).
Como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.
Desde logo, há que ter presente que nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.
Por sua vez, nos termos do art. 66° do C.P.M.:
“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.
Porém, e como temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020 e de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020).
Com efeito, a figura da atenuação especial da pena surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses “especiais”, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
E, atento o que se deixou exposto, e tendo presente a “factualidade” dada como provada, comecemos por ver se adequada é a pretendida “atenuação especial da pena” ao abrigo do referido art. 66° do C.P.M..
Cremos que a mesma não se justifica.
Na verdade, na ausência de qualquer “circunstância” que permita considerar a situação em questão como “excepcional” ou “extraordinária”, (até mesmo porque “provado” não está que o recorrente “confessou integralmente e sem reservas os factos”, tendo tão só confessado “parte dos factos”; cfr., o Ac. do T.J.B., a fls. 328-v), motivos não existem para qualquer “atenuação especial da pena” ao abrigo do art. 66° do C.P.M..
Invoca também o ora recorrente o art. 18° da dita Lei n.° 17/2009, onde se estatui que:
“No caso de prática dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º e 11.º, se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado ou se esforçar seriamente por consegui-lo, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, de organizações ou de associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou haver lugar à dispensa de pena”.
Todavia, também aqui se mostra de consignar que inverificados estão os necessários pressupostos legais da pelo recorrente pretendida atenuação, pois que, como se tem vindo a entender: “Para efeito de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015).
In casu, e não se negando que o ora recorrente colaborou na “identificação” do indivíduo referenciado nos autos, (cfr., facto n.° 1), provado não está que a sua alegada colaboração permitiu o desmantelamento de qualquer “organização” que se dedicava ao crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” ou à captura do(s) seu(s) responsável(veis).
E, assim, vista cremos que está a inviabilidade da reclamada “atenuação especial”.
E quanto a uma (eventual) “redução da pena”?
Pois bem, aqui há que se ter também presente que se considera adequado o entendimento no sentido de que com o art. 65° do C.P.M. adoptou o legislador local a “teoria da margem da liberdade”, sendo igualmente de se consignar que, como temos afirmado, o recurso não deve servir para eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015 e de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020).
E, nesta conformidade, ponderando no que até aqui se expôs, na referida moldura penal – 5 a 15 anos de prisão – atentos os critérios para a determinação da medida da pena previstos nos transcritos art°s 40° e 65° do C.P.M., no que vem sendo entendido pelos Tribunais de Macau em matéria de pena em processos análogos, cremos que censura não merece a pena de 8 anos e 3 meses de prisão ao ora recorrente decretada, (a 3 anos e 3 meses do seu limite mínimo, e a 6 anos e 9 meses do seu máximo).
Com efeito, e sem se olvidar a atrás referida “colaboração” do ora recorrente, há que atentar que para além da “factualidade provada” (sumariamente) referida no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, e que revela que, em 10.12.2019, foi o ora recorrente surpreendido com 19 embalagens de “Canábis”, com um peso líquido total de 146,511 gramas, 17 das quais, com peso líquido de 131,063 gramas, para entregar a terceiros, importa ter em conta que, em causa, não está uma “situação pontual”, pois que provado está também que, meses antes, (em Agosto do mesmo ano), desenvolveu o ora recorrente “idêntica conduta”, com pelo menos 3 “entregas” de estupefaciente, (cfr., factos 1° a 3°, a fls. 327), tudo a demonstrar que muito intenso e directo foi o seu dolo, assim como elevado o grau de ilicitude, a reclamar alguma dureza na reacção penal.
Por sua vez, e como já se referiu, em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e só quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de apreciação livre reconhecida ao Tribunal julgamento.
Com efeito, de forma repetida e firme temos também vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., Ac. de 07.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020).
Dest’arte, imperativa é a decisão que segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 23 de Setembro de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) [Sem prejuízo do entendimento que assumi na declaração de voto que anexei ao Acórdão de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020].
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 155/2020 Pág. 22
Proc. 155/2020 Pág. 23