打印全文
Processo nº 84/2020 Data: 21.10.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Autorização de residência na R.A.E.M..
Revogação.
Pressupostos.
Conceito indeterminado.
“Perigo para a segurança ou ordem pública”.
Crime de “Fuga à responsabilidade”.



SUMÁRIO

1. Nos termos do art. 11°, n.° 1, al. 3) da Lei n.° 6/2004:
“1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente:
(…)
3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM”.

2. A expressão “perigo para a segurança ou ordem pública” constitui um “conceito jurídico indeterminado.

3. A utilização pelo legislador de “conceitos indeterminados” constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários: para permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, e para permitir uma “individualização” da solução.

4. A consideração de que o recorrente constituía “uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau”, implica uma “decisão administrativa judicialmente sindicável”.

5. A “condenação penal decretada”, (ou melhor, a “espécie” da pena aplicada), pela prática de um ilícito criminal – no caso, o de “fuga à responsabilidade” – não pode servir de fundamento para se sindicar a decisão administrativa que, em juízo de prognose exercido no âmbito das atribuições e poderes que à entidade decisora legalmente competem, concluiu pela existência de tal “perigo para a segurança ou ordem pública”.

O relator,

José Maria Dias Azedo



Processo nº 84/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão de 05.03.2020 do Tribunal de Segunda Instância, (Proc. n.° 775/2018), negou-se provimento ao recurso contencioso aí interposto por A, confirmando-se o acto administrativo pelo SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA praticado que, em sede de recurso hierárquico, manteve a decisão de revogação da autorização de residência na R.A.E.M. como trabalhador não residente do recorrente; (cfr., fls. 103 a 117-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido, traz o referido recorrente o presente recurso, produzindo, a final das suas alegações as conclusões seguintes:

“I. Vem o presente Recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente o Recurso Contencioso Interposto pela Recorrente, confirmando e mantendo o acto administrativo recorrido, ou seja o acto que determinou a revogação da sua autorização de permanência na RAEM enquanto trabalhador não residente, nos termos do disposto nos artigos 11.º, n.º 1, alínea 3) da Lei n.º 6/2004 e 15.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010.
II. Em suma, o Recorrente pugnou, em sede de recurso contencioso e de alegações facultativas, pela anulação deste acto administrativo, por banda desse Venerando Tribunal de Segunda Instância, por entender que o mesmo se encontra inquinado dos seguintes vícios: violação de Lei, previsto no artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do CPAC, nas suas vertentes de erro manifesto e de total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários; e violação de lei por violação do princípio da proporcionalidade e da justiça
III. O douto Acórdão recorrido não deu razão ao Recorrente, decidindo pela inexistência dos invocados vícios, dando-se aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, a fundamentação do tribunal a quo.
IV. No essencial da fundamentação aduzida pelo douto Tribunal a quo, quanto ao julgamento dos vícios assacados pelo Recorrente ao acto recorrido, começou o douto Tribunal por analisar a lei em causa, concluindo que a mesma permite à Administração revogar a autorização de permanência, salientando que esta decisão já foi tomada no processo n.º 28/2014 do TSI.
V. Quanto à violação dos Princípios, nomeadamente da Proporcionalidade e da Justiça, de forma sucinta, esclareceu também o Tribunal a quo que a questão já foi igualmente decidida nos acórdão 38/2012 e 28/2014 do TSI, indicando igualmente quatro acórdãos deste Venerando TUI em que a questão já foi apreciada e decidida, a saber, acórdão 9/2000; 14/2002; 1/2006 e 36/2006.
VI. Concluindo que tendo o Recorrente sido condenado por um crime de fuga à responsabilidade, tendo colocado em causa a segurança e a ordem públicas, o Tribunal entende que não ocorreu, por parte da Administração, a violação de lei por erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, não existindo igualmente a violação dos princípios invocados pelo Recorrente.
VII. Salvo o devido respeito, o Recorrente não se conforma com a decisão recorrida, muito menos com a fundamentação invocada, perfilhando antes a posição que foi defendida e adoptada pelo Ministério Público da RAEM no seu parecer, entendendo que Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e violação de lei.
VIII. Com efeito, e como bem alega o Ministério Público, o legislador conferiu poderes discricionários à administração nesta matéria, ou seja, a norma em causa estabelece que "A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade penal e das demais sanções [previstas na lei, por despacho do chefe do Executivo, quando a pessoa não residente: 3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.
IX. Contudo, esse poder discricionário significa que a Administração, verificados que estejam os pressupostos, pode escolher uma de duas soluções alternativas, isto é, revogar ou não revogar a autorização de permanência n RAEM.
X. Mas acresce que o legislador, além de ter concedido esse poder discricionário à Administração, inseriu na norma um conceito indeterminado que deve e tem necessariamente e ser preenchido, ou seja, o conceito de "Perigo para a segurança ou ordem públicas da RAEM".
XI. Como alega ainda o Ministério Público, num parecer exímio e com o qual se concorda de forma plena, já este Venerando TUI decidiu que "a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade de actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação de lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
XII. Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma – e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente" (Ac. N.° 9/2000, de 3.5.2000).
XIII. E o Ministério Público vai mais longe, "Na discricionariedade, existe, na verdade, "um reduto de insindicabilidade por parte dos tribunais, face à obediência ao princípio da separação de poderes. Já na decisão que envolve a aplicação de conceitos indeterminados, o legislador não entregou à Administração poderes discricionários, mas antes lhe fixa um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento."
XIV. Para concluir que na verdade a interpretação de um conceito jurídico indeterminado é plenamente controlável pelo Tribunal, significando que o juiz também pode verificar se a norma foi aplicada em conformidade com essa interpretação.
XV. Na verdade, o preenchimento do conceito indeterminado "perigo para a segurança ou ordem públicas" apena pode ser efectuado com um juízo de prognose.
XVI. Como se alegou em sede de recurso contencioso, "A convicção que a Entidade Recorrida revela ter criado para sustentar a decisão que tomou e qualificar o Recorrente como perigoso para a ordem e segurança públicas da RAEM mais não é do que uma esforçada tentativa em fundamentar a decisão da mesma forma que os Tribunais fundamentam as decisões penais em diversos casos.
XVII. Contudo, a convicção dos Tribunais é formada e fundamentada após a audiência de julgamento e a criteriosa análise da prova aí produzida, pelo que, só assim, fica a Tríbunal apto a formar, ou não, uma convicção."
XVIII. Acresce que a jurisprudência da RAEM, debruçando-se sobre este tema, tem entendido que "o juízo sobre se o interessado constitui ou não ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau é um juízo de prognose, visto que envolve uma apreciação da hipotética conduta futura do interessado", devendo entender-se – como defende o Ministério Púbico – que o legislador conferiu à Administração uma margem de apreciação na sua aplicação, "com a consequência, em termos de possibilidade de sindicância Judicial"
XIX. De facto, e neste caso em apreço, em causa estava o preenchimento do conceito indeterminado supra referido por parte da Administração, num segundo plano, a forma como a administração acabou por exercer o poder discricionário que a própria lei lhe confere.
XX. O Tribunal a quo entendeu que a Administração preencheu bem, e sem qualquer vício, o conceito indeterminado, socorrendo-se de várias decisões dos tribunais superiores para fundamentar esta decisão, concluindo igualmente que a Administração não violou qualquer princípio de direito administrativo.
XXI. Daí que, não se concordando com esta decisão do tribunal a quo se entenda que o mesmo Tribunal cometeu erro de julgamento e violação de lei.
XXII. Isto porque, se não é legalmente possível e admissível ao tribunal pronunciar-se sobre o mérito da decisão tomada por parte da Administração, já a forma como a Administração preencheu o conceito jurídico indeterminado é, e sempre seria, sindicável pelo Tribunal a quo.
XXIII. No caso em apreço, entende-se que no preenchimento do conceito indeterminado a Administração cometeu um erro manifesto, violando princípios fundamentais do direito administrativo, nomeadamente, os princípios da proporcionalidade, imparcialidade e justiça, incorrendo assim a decisão que, agora é colocada em causa em erro de julgamento e violação de lei, sindicável per este Tribunal Superior,
XXIV. O preenchimento de um conceito indeterminado, bem como a violação de princípios de direito administrativo são questões de direito, tudo acrescido que o erro de julgamento e violação de lei também são uma questão de direito.
XXV. Ora, decidiu o Tribunal a quo em sentido contrário, entendendo que o acto recorrido não incorreu em erro manifesto ao enquadrar a situação em apreço no conceito jurídico indeterminado de "perigo para a segurança ou ordem públicas".
XXVI. Mas na verdade a Administração efectuou num juízo de prognose, tendo considerado e decidido de determinada forma, tendo por única base a condenação do aqui recorrente em processo-crime para formar esse juízo de prognose, e nada mais.
XXVII. Apesar de alegar o contrário, de que foi a conduta do recorrente e não a condenação penal que esteve me causa, uma coisa não se pode dissociar de outra, como bem esclarece o Ministério Público e como o recorrente já tinha alegado.
XXVIII. E partindo dessa condenação do aqui Recorrente, numa ligeira condenação, perante todo o quadro fáctico apresentado ao Tribunal a quo foi invocado que essa decisão padecia dos vícios supra descritos.
XXIX. Mesmo a censura penal sendo leve, apenas a pena de multa e inerente inibição de condução, concluiu a Administração, sem mais nem menos, que o recorrente era um perigo para a segurança e ordem públicas da RAEM.
XXX. Elaborou esse juízo de prognose, sem estabelecer mais nenhum facto para fundamentadamente poder sem qualquer reserva afirmar que o recorrente era um perigo para segurança e ordem públicas.
XXXI. É que a condenação penal, por si só, não é suficiente para se concluir que a presença do condenado na Região pode constituir um perigo para a segurança e ordem públicas da RAEM.
XXXII. Nesse sentido, ao ter decidido como decidiu o Tribunal a quo, considerando como considerou a forma como o conceito jurídico indeterminado foi preenchido, bem como a não violação de princípios fundamentais de direito administrativo, incorreu o venerando Tribunal de Segunda Instancia em erro de julgamento e violação de lei, porque na verdade, como concluiu o Ministério Público, existiu "um erro manifesto de apreciação; ou seja, um claro erro de avaliação cometido na concreta aplicação de um conceito indeterminado com margem de livre apreciação e sobre o qual não pode existir qualquer dúvida por parte do julgador".
XXXIII. Tendo, assim, pugnado o Ministério Público, tal como tinha pugnado o Recorrente, na anulação do acto recorrido.
XXXIV. Como se alegou supra, o Tribunal a quo assim não entendeu, indeferindo o recurso, e, no nosso modesto entendimento, cometeu um erro de julgamento e violação de lei.
XXXV. Erro de julgamento e violação de lei consubstanciados em erro manifesto no preenchimento do conceito jurídico indeterminado e na violação dos princípios da Proporcionalidade e da Justiça (cfr. artigos 21.°, n.° 1, al. d) do CPAC e artigos 5.° e 7.° do CPA”; (cfr., fls. 124 a 136).

*

Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 152 a 154-v).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância deu como “provada” a seguinte matéria de facto:

«O Recorrente é o titular do Título de identificação de trabalhador não residente da R.A.E.M. n.º XXXXXXXX, válido até 31 de Março de 2018.
Em 9 de Outubro de 2017, o TJB condenou o Recorrente, pela prática de um crime de fuga à responsabilidade, na pena de 45 dias de multa (no valor de MOP13.500,00), e ainda na pena acessória de inibição de condução por um período de 4 meses.
Em 6 de Dezembro de 2017, o Serviço de Migração do CPSP notificou o Recorrente da pretensão da revogação da autorização de permanência do mesmo na qualidade de trabalhador. (Vide fls. 87 do P.A.)
Por despacho de 21 de Fevereiro de 2018, o Comandante do CPSP determinou a revogação da autorização de permanência do Recorrente. (Vide fls. 89 a 91 do P.A.)
Em 23 de Março de 2018, o Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Segurança. (Vide fls. 93 a 113 do P.A.)
Em 11 de Abril de 2018, o CPSP elaborou a seguinte informação (vide fls. 114 a 117 do P.A.):
“Informação
Assunto: Recurso hierárquico necessário. Revogação de TITNR
Recorrente: A
1. A recorrente, titular do TITNR n.º XXXXXXXX, vem impugnar o despacho através do qual foi revogada a sua autorização de permanência na qualidade de trabalhador, invocando, o seguinte:
2. Que, o despacho recorrido padece dos vícios de falta de fundamentação e de violação da lei aos princípios de proporcionalidade e justiça, nos art.ºs 5º n.º 5 e 7º do CPA.
3. De falta de fundamentação, porque o despacho recorrido não identifica as razões de facto e de direito em que se baseia a decisão, como também não especifica por que razão o recorrente constitui perigo para a ordem e segurança públicas da RAEM, pois invoca simplesmente a prática de um crime, do qual aliás as autoridades judiciais aceitaram que a culpa e punição não foram graves, pelo que a polícia não devia substituir-se aos tribunais e decidir pela perigosidade do recorrente, e que, por que razão se revoga a autorização de permanência, quando a lei não tem de ser aplicada directa e imediatamente, pois a norma em questão fala que … pode ser revogada a autorização…, e não que … deve ser revogada, pelo que por este vício de falta de fundamentação o despacho deve ser anulado por insuficiência de fundamentos que motivaram a decisão.
4. E, quanto ao vício de violação de lei concretizado na violação aos princípios da proporcionalidade e justiça, de acordo com o n.º 2 do art.º 5º do CPA, … As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar, pelo que ponderados os interesses do recorrente e os da Administração, existe uma manifesta desproporcionalidade; que, o recorrente apenas foi condenado na pena de 45 dias de multa (300 pts por dia) e 4 meses de inibição de condução, sanções que já foram cumpridas, pelo que por estes factos não se pode concluir que o recorrente constitui perigo para a ordem e segurança públicas da RAEM; que, por outro lado, para o recorrente seria assim a terceira penalização, o que contraria o equilíbrio entre os interesses prejudicados; que, a revogação da autorização de trabalho trará custos gravosos para o recorrente e a sua família, como também para a empresa onde trabalha, pelo que ponderados os interesses em disputa, a decisão da Administração mostra-se desadequada, desnecessária e desproporcional, pois o recorrente não constitui perigo para a segurança da RAEM, nem para os que aqui residem e trabalham.
5. Pedindo, pelos fundamentos acima invocados, a suspensão da execução do acto recorrido, e a sua revogação.
***
6. Em primeiro lugar, deve-se referir que os trabalhadores não-residentes quando voluntariamente se deslocam dos seus locais de origem para virem trabalhar da RAEM, não só aceitam as condições laborais que lhes são prometidas como também as leis que regulam a sua permanência, e as do restante ordenamento jurídico.
7. E que esta, pode ser revogada quando se verifiquem os pressupostos previstos na lei, para a revogação de autorização de permanência – art.º 15º n.º 1, do RA n.º 8/2010.
8. Por sua vez, no art.º 11º n.º 1 alínea 3), da Lei n.º 6/2004, vem estipulado que a autorização de permanência pode ser revogada ao não residente que constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente, pela prática de crime ou mesmo por actos preparatórias.
9. Por conseguinte, salvo melhor entendimento, a prática de crime constitui perigo para a segurança, ou ordem públicas da Região.
10. E, conforme vem descrito na sentença referente ao Processo n.º CR1-16-0836-PCT, que aqui por brevidade se dá por reproduzida (a fls. 39 a 43), no passado dia 13 de Novembro de 2015, o recorrente, conduzindo a viatura com a matrícula MM XX-XX, à entrada para a Ponte de Sai Van, em direcção à Taipa, não respeitou as regras de condução, guinou para a direita e embateu no veículo com a chapa de matrícula MG XX-XX, danificando o espelho retrovisor lateral, e o pára-choques do lado esquerdo dessa viatura.
11. Apesar de saber e ter a consciência que a sua conduta era contrária à lei, não se importou de parar para resolver o problema com o ofendido e eventualmente com as autoridades, antes continuou a sua marcha e uns cem metros mais adiante parou, saiu do veículo, inspeccionou-o no local da batida, tornou a entrar e seguiu de novo a marcha, esquivando-se a qualquer responsabilidade.
12. Mas toda a sua conduta ficou gravada pelas câmaras de segurança da ponte, elementos comprovativos que levaram à condenação criminal de uma pena de multa de 45 dias, à razão de 300 patacas por dia, e inibição de condução pelo período de 4 meses, por prática do crime de fuga à responsabilidade, constante no art.º 89º da LTR.
13. Pelo exposto, entendeu-se necessário revogar a autorização de permanência do recorrente na qualidade de trabalhador, ao abrigo das referidas normas conjugadas, pela falta de confiança na observância das leis da RAEM que tinha sido concedida no acto de autorização.
14. Assim, considera-se que o acto através do qual foi revogada a autorização de permanência do recorrente na qualidade de trabalhador, não se encontra ferido de qualquer vício que possa levar à sua anulabilidade, não devendo por isso ser concedido provimento ao presente recurso.
15. À superior consideração de V. Exa.”
Em 28 de Maio de 2018, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho: (vide fls. 119 a 120 do P.A.)
“DESPACHO
Assunto: Recurso hierárquico necessário – revogação de autorização de permanência
Recorrente: A
O cidadão não residente A recorre hierarquicamente do despacho de 2018.02.21, do Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que determinou a revogação da respectiva autorização de permanência, na qualidade de trabalhador.
Ora, compulsado o processo instrutor, verifico estar suficientemente comprovado que, em 2015.11.13, o Recorrente, quando conduzia um veículo automóvel, à entrada para a Ponte de Sai Van, em direcção à Taipa, não respeitou as regras de condução, guinou para a direita e embateu num outro veículo, danificando o espelho retrovisor lateral, e o pára-choques do lado esquerdo dessa viatura. Todavia, o Recorrente não se limitou a esta conduta infractora: muito mais censuravelmente, não imobilizou o seu veículo para resolver o problema com o ofendido e eventualmente com as autoridades, antes continuou a sua marcha e, cerca de cem metros mais adiante, parou, saiu do veículo, inspeccionou-o na parte danificada, tornou a entrar e seguiu de novo a marcha, esquivando-se a qualquer responsabilidade.
Esta conduta, merecedora de censura criminal, como foi confirmado em 2017.10.09, por sentença do Tribunal Judicial de Base, criou na entidade recorrida a convicção de que o Recorrente é pessoa que não se coíbe de infringir as regras mais importantes e fundamentais da sociedade (as consagradas nas leis penais) se tal lhe convier, e nessa medida, considerou que o mesmo constitui perigo para a segurança e ordem públicas da RAEM, cabendo a situação, portanto, na previsão da alínea 3) do n.º 1 do artigo 11º da Lei n.º 6/2004.
Por outro lado, no n.º 1 do artigo 15º do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, prevê-se que a autorização de permanência, na qualidade de trabalhador, pode ser revogada quando se verifiquem os pressupostos previstos na lei para a revogação da autorização de permanência de quaisquer não residentes.
Na sua petição de recurso, o Recorrente invoca um risco de “duplicação” ou “triplicação” da punição, mas este argumento não colhe, desde logo, porque a medida de revogação de autorização de permanência tem natureza administrativa preventiva, securitária; não constitui uma sanção.
Quanto ao mais, nenhum dos outros argumentos apresentados é procedente, designadamente quando refere que a conduta em causa é de “escassa ilicitude e censurabilidade” e quando alega a importância dos interesses pessoais em causa, pois estes interesses individuais não devem prevalecer sobre os interesses públicos que levaram à prolação do acto impugnado.
Deste modo, tudo ponderado, afigura-se que o acto administrativo impugnado tem bom fundamento de facto e de direito e está adequadamente motivado. Assim, ao abrigo do artigo 161º, n.º 1 do CPA, decido confirmá-lo, negando provimento ao presente recurso.”»; (cfr., fls.113-v a 116-v e 32 a 39 do Apenso).

Do direito

3. Como resulta do que se deixou relatado, o presente recurso tem como o objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a decisão do Secretário para a Segurança que, negando provimento a anterior recurso hierárquico pelo recorrente apresentado, manteve a decisão de “revogação da sua autorização de residência” na R.A.E.M. como trabalhador não residente.

E como igualmente se colhe das conclusões pelo recorrente produzidas, (em síntese), é o mesmo de opinião que o Tribunal recorrido incorreu nos vícios de “Erro de julgamento e violação de lei consubstanciados em erro manifesto no preenchimento do conceito jurídico indeterminado e na violação dos princípios da Proporcionalidade e da Justiça (cfr. artigos 21.°, n.° 1, al. d) do CPAC e artigos 5.° e 7.° do CPA”; (cfr., conclusão XXXV).

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

A decisão administrativa que revogou a autorização de residência do recorrente na R.A.E.M. – e que foi confirmada pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância agora objecto do presente recurso – teve em conta a sua condenação pela prática, como autor material e na forma consumada, de 1 crime de “fuga à responsabilidade”, p. e p. pelo art. 89° e 94°, n.° 2 da “Lei do Trânsito Rodoviário”, (Lei n.° 3/2007), assim como o preceituado no art. 11°, n.° 1, al. 3, da “Lei da Imigração Ilegal e da Expulsão”, (Lei n.° 6/2004).

Nos termos do art. 89° da referida Lei n.° 3/2007:

“Quem intervier num acidente e tentar, fora dos meios legais ao seu alcance, furtar-se à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tenha incorrido é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

E prescreve o art. 94° desta mesma Lei que:

“Sem prejuízo de disposição legal em contrário, é punido com inibição de condução pelo período de 2 meses a 3 anos, consoante a gravidade do crime, quem for condenado por:
1) Qualquer crime cometido no exercício da condução;
2) Fuga à responsabilidade, nos termos do artigo 89.º;
(…)”.

Por sua vez, nos termos do art. 11° da Lei n.° 6/2004, (que tem precisamente como epígrafe “revogação da autorização de permanência”):

“1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente:
1) Trabalhar na RAEM sem estar autorizada para tal;
2) Manifestamente se desvie dos fins que justificam a autorização de permanência, pela prática reiterada de actos que violem leis ou regulamentos, nomeadamente prejudiciais para a saúde ou o bem-estar da população;
3) Constitua perigo para a segurança ou ordem públicas, nomeadamente pela prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM.
(…)”; (sub. nosso).

Nesta conformidade, considerando-se que verificada estava a “situação” da referida “alínea 3, do n.° 1”, (do transcrito art. 11°), ou seja, que – em virtude da prática do dito crime de “fuga à responsabilidade” – o recorrente constituía “perigo para a segurança ou ordem pública”, decidiu-se pela revogação da sua autorização de residência nesta R.A.E.M..

Pronunciando-se sobre o assim decidido, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que nenhum reparo lhe cabia fazer, confirmando-se o decidido e negando-se provimento ao (anterior) recurso contencioso do ora recorrente.

Ponderando sobre a questão, e da reflexão que se nos foi possível efectuar, censura não parece merecer a solução a que se chegou.

Vejamos.

Apresenta-se-nos inquestionável que a expressão “perigo para a segurança ou ordem pública” vertida na referida “alínea 3 do n.° 1 do art. 11°”, constitui um “conceito jurídico indeterminado”.

Sobre o seu “sentido” e “alcance”, teceram-se já considerações abundantes, valendo a pena aqui lembrar o que este Tribunal já teve oportunidade de sobre o mesmo explanar:

“Como refere ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA1 a expressão conceito indeterminado pretende referir aqueles conceitos que se caracterizam por um elevado grau de indeterminação. A estes opõem-se os conceitos determinados, sendo os relativos a medidas (metro, litro, hora) ou a valores monetários (pataca, dólar norte-americano) os conceitos mais determinados.
Quase todos os conceitos jurídicos contêm algum grau de indeterminação, de tal sorte que PHILLIP HECK2 sublinhou que os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito.
A utilização pelo legislador de conceitos indeterminados constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários, como para «permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, ou para facultar uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, ou para permitir levar em conta os usos do tráfico, ou, enfim, para permitir uma “individualização” da solução3».
ROGÉRIO SOARES4 acentua que o legislador utiliza prodigamente os conceitos indeterminados perante as complexidades da sociedade moderna.
Pois bem, a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação da lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma – e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente.
Por isso, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA5referiu que «a discricionariedade começa onde acaba a interpretação».
Deste modo, quando se conclua que a tarefa a efectuar é apenas a de interpretar a lei, o tribunal pode fiscalizar a aplicação do direito feita pela Administração.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.05.2000, Proc. n.° 9/2000, com vasta doutrina sobre a questão).

In casu, apresenta-se-nos ser exactamente o que sucede, pois que a consideração no sentido de que o ora recorrente constituía “uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau”, implica uma “decisão administrativa”, mas “judicialmente sindicável”.

E, nesta conformidade, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, cremos que ao ora recorrente não assiste razão.

Na verdade, não se pode olvidar que em questão está uma conduta pelo recorrente livre e intencionalmente desenvolvida que integrou a prática de um “tipo de crime”, o de “fuga à responsabilidade”, (cfr., art. 89° da “Lei do Trânsito Rodoviário”, Lei n.° 3/2007), e que, como se observa no Parecer do Ministério Público:

“Não se afigura que a condenação concreta do recorrente numa pena de multa, situada aquém do meio da moldura abstracta, e num período reduzido de inibição de conduzir, represente um argumento essencial para alicerçar um juízo desfavorável sobre a decisão administrativa, ao ponto de a catalogar de ostensiva ou manifestamente errada.
Tal como consignado no acto, o recorrente começou por cometer uma infracção de trânsito, do tipo contravencional, que foi causal do embate entre a viatura que tripulava e uma outra. Em vez de parar, prosseguiu a sua marcha, e, apesar de ter parado cerca de 100 metros depois, limitou-se a verificar o estado da sua viatura e voltou a retomar a marcha, assim se afastando e furtando à colaboração na resolução do sinistro e à assunção da sua eventual responsabilidade, o que, convenhamos, pode ser revelador de uma personalidade algo avessa à observância de elementares regras de coexistência e convivência social.
(…)”.

Não se ignora que se possa considerar que a “pena” (de multa) aplicada possa significar que a conduta do recorrente, embora com relevância criminal, tenha, quer do ponto de vista da “acção” quer do ponto de vista do “resultado”, um desvalor “baixo”.

Todavia, importa ter presente que se trata de um tipo de ilícito com especial relevância a nível da “paz jurídica e estabilidade social”, pois que tutela, em primeiro plano, a “realização da justiça”.

Por sua vez, adequada se nos mostra igualmente a consideração tecida no referido Parecer no sentido de que “são diferentes as finalidades que presidem ao julgamento penal e à intervenção administrativa, avultando ali razões de protecção do bem jurídico realização da justiça e de ressocialização do agente, e aqui motivos de índole preventiva e securitária aliados à defesa da ordem e da segurança públicas”, sendo assim de se concluir que a “condenação penal decretada”, (ou melhor, a “espécie” da pena aplicada), não pode servir de fundamento para se sindicar a decisão administrativa que, em juízo de prognose exercido no âmbito das atribuições e poderes que à entidade decisora legalmente competem, concluiu pela existência de “perigo para a segurança ou ordem públicas”.

Como salienta Pedro J. Lopes Clemente: “a ordem pública representa o ponto de equilíbrio entre a desordem suportável e a ordem indispensável, pois que a liberdade não sobrevive na anarquia …”, (in “Da Polícia de Ordem Pública”, Lisboa, Governo Civil do Distrito de Lisboa, 1998), sendo de se ter em consideração dois princípios fundamentais intrinsecamente ligados à matéria da “ordem pública”: o da “legalidade” e o da “proporcionalidade” (ou, “proibição do excesso”), necessário sendo um permanente e são equilíbrio entre as “razões” e os “meios utilizados” e os “resultados” que se pretendem obter, não se podendo olvidar igualmente que o tema da “ordem pública” tem vindo a desempenhar um papel cada vez mais relevante, exigindo uma redobrada atenção (e responsabilidade) na sua abordagem por parte do Legislador, da Administração, dos Órgãos Judiciários e da própria Opinião Pública.

Da mesma forma, (e relacionada com a questão), mostra-se de reconhecer que, como o salienta G. Marques da Silva, a questão da “prevenção criminal” é de sobeja importância, podendo-se considerar que até suplanta a ideia de punir os que prevaricam: “o que importa à colectividade, (…), não é tanto punir os que transgridem, mas evitar, pelo adequado uso dos meios legais de dissuasão, que transgridam”; (in “A Polícia e o Direito Penal”, 1993).

No caso, atenta a matéria em questão, e pelos motivos que se deixaram expostos, não se mostra de considerar que a entidade recorrida tenha incorrido em “erro manifesto ou ostensivo, grave e grosseiro”, pelo que, de igual forma, não se vislumbra qualquer “violação aos princípios da proporcionalidade e da justiça”.

Dest’arte, há que julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrido com a taxa que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 21 de Outubro de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

1 ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, «Conceitos Indeterminados» no Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1994, p. 23.
2 Citado por F. AZEVEDO MOREIRA, Conceitos Indeterminados: Sua Sindicabilidade Contenciosa Em Direito Administrativo, Revista de Direito Público, Ano I, n.º 1, Novembro de 1985, p. 34.
3 J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 114.
4 ROGÉRIO SOARES, Administração Pública e Controlo Judicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, ano 127.º, p. 230.
5 ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, ob. cit., p. 217.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Proc. 84/2020 Pág. 10

Proc. 84/2020 Pág. 9