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Processo nº 79/2020 Data: 07.10.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Processo disciplinar.
Pena de demissão.
“Viabilidade da manutenção da situação jurídico- funcional”.



SUMÁRIO

1. A decisão de – concordância na – aplicação da pena de demissão a um funcionário público proferida a final do procedimento disciplinar faz seus os argumentos de facto e direito expostos no relatório final e (posterior) parecer onde se propunha tal pena.

2. Assim, se no dito parecer se consignou que em virtude da conduta disciplinar do arguido “inviável era a manutenção da situação jurídico-funcional”, adequado não é considerar que na decisão punitiva proferida se não ponderou e assumiu o assim considerado.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 79/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No âmbito dos Autos de Recurso Contencioso n.° 970/2018, interposto por A (甲), e tendo como recorrido o (então) SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão datado de 12.03.2020, julgando procedente o recurso e anulando o acto administrativo recorrido que aplicou à recorrente a pena disciplinar de demissão; (cfr., fls. 146 a 159 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada com o decidido, a aludida entidade administrativa recorreu para este Tribunal de Última Instância, alegando que o acto administrativo recorrido não padecia de nenhum vício e assacando ao Acórdão recorrido “erro na aplicação da lei”; (cfr., fls. 168 a 172).

*

Oportunamente, após resposta, (pugnando pela improcedência do recurso, cfr., fls. 174 a 176), vieram os autos a esta Instância, onde, em sede de vista, juntou o Exmo. Magistrado do Ministério Público douto Parecer, pugnando no sentido da procedência do recurso; (cfr., fls. 186 a 186-v).

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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal de Segunda Instância foram elencados como “provados” os factos seguintes:

“- Segundo o relatório do Chefe Substituto da Divisão Administrativa e Financeira de 29 de Dezembro de 2017 n.º XXXXXX/DAF/GL/2017, em 15 de Dezembro de 2017 a divisão recebeu o atestado médico apresentado pelo arguido A, mostrando que ele deu falta de 13 de Dezembro de 2017 a 15 de Dezembro de 2017 (no total 3 dias) por doença dos familiares (nos termos do art.º 97.º, n.º 3 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau vigente, as faltas dadas por motivo de doença dos familiares não podem ultrapassar 15 dias em cada ano civil.)
- Segundo o registo das faltas do arguido, até 13 de Dezembro de 2017, já tinha dado 15 faltas por doença dos familiares; portanto, os dias de 14 a 15 de Dezembro de 2017 não são considerados como faltas por motivo de doença.
- B já notificou o arguido em 13 de Dezembro, em 15 de Dezembro e em 18 de Dezembro de 2017 respectivamente, através do SMS das faltas dele e pediu-lhe contactar quando antes o pessoal da Divisão Administrativa e Financeira para tratamento.
- De 14 de Dezembro de 2017 a 29 de Dezembro de 2017 quando o Chefe Substituto da Divisão Administrativa e Financeira redigiu o relatório n.º XXXXXX/DAF/GL/2017, o arguido nunca voltou ao posto de trabalho nem apresentou qualquer justificação por falta à DSAL.
- Segundo o anexo 1 do relatório n.º XXXXXX/DAF/GL/2017 - as informações da presença do arguido, mostra-se que de 14 de Dezembro de 2017 a 19 de Dezembro de 2017, o arguido não tinha qualquer registo de presença.
- Segundo o auto de declaração feito pelo chefe funcional do arguido em 16 de Janeiro de 2018, quanto às faltas dele, o arguido notificou o chefe funcional em 18 de Dezembro de 2017 através de SMS da situação pessoal dele e dos seus planos; porém, não apresentou ao chefe funcional qualquer documento comprovativo para justificar as faltas.
- No auto de declaração, o chefe funcional afirma: a situação da falta injustificada do arguido durou até 16 de Janeiro de 2018, i.e., o próprio dia da redacção do auto de declaração.
- Segundo as informações de presença do arguido fornecidas pela Divisão Administrativa e Financeira em 31 de Janeiro de 2018, a situação de falta injustificada iniciou em 14 de Dezembro de 2017; daquela data até 31 de Janeiro de 2018, não existe qualquer registo de presença.
- A partir dos registos de presença acima mencionados, o arguido deu totalmente 18 dias de falta seguidos em Dezembro de 2017, deu totalmente 31 dias de falta seguidos em Janeiro de 2018; na totalidade o arguido deu 49 dias de falta seguidos.
- Em resumo do acima mencionado, segundo as informações obtidas através do inquisitório, há provas suficientes demonstrando que o arguido está suspeito de ter cometido a seguinte infracção:
De 14 de Dezembro de 2017 a 31 de Janeiro de 2018 (18 dias no total em Dezembro de 2017; 31 dias no total em Janeiro de 2018; foram 49 dias na totalidade), sem ter apresentado justificação pelas faltas nem documentos comprovativos, o arguido deu faltas.
- Como o arguido trabalhou por mais de 10 anos e a avaliação do desempenho dele eram sempre «Muito Bom», «Satisfaz» ou «Satisfaz Muito» (ou seja, «Bom» ou «Muito Bom»), ao caso do arguido é aplicável a circunstância atenuante prevista pelo art.º 282.º, alínea a) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
- Finda a respectiva instrução, foi proferida a respectiva decisão punitiva que foi notificada ao arguido/Recorrente, com o seguinte teor:
DIRECÇÃO DOS SERVIÇOS PARA OS ASSUNTOS LABORAIS
Aviso
Em cumprimento do disposto no artigo 353.º, n.os 2 e 4, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, com a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 62/98/M, de 28 de Dezembro, é notificado A, assistente técnico administrativo especialista principal, 1.º escalão, da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, com paradeiro desconhecido, na sequência de uma série de diligências que compõem o processo disciplinar, que, por despacho do Ex.mo Senhor Secretário para a Economia e Finanças, de 2 de Julho de 2018, lhe foi aplicada a pena disciplinar de demissão, podendo dele recorrer no prazo de sessenta dias, contados da publicação do presente aviso.
Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, aos 24 de Agosto 2018.
O Instrutor do processo, C”; (cfr., fls. 149-v a 150-v e 18 a 22 do Apenso).

Do direito

3. Feito que está relatório que antecede, e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

Como se viu, é a entidade administrativa ora recorrente de opinião que o Tribunal de Segunda Instância incorreu em “erro na aplicação da lei”.

Ora, antes de mais, vale a pena aqui recordar a síntese conclusiva pelo Tribunal de Segunda Instância exposta no seu Acórdão:

“I – O artigo 315º/2 do ETAPM prevê situações em que pode ser aplicada ao arguido de infracção disciplinar a pena de demissão, mas, não se impõe, uma vez que o legislador manda atender a um conjunto de factores, ao tomar uma decisão punitiva em processo disciplinar (artigo 337º do ETAPM).
II - A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar, não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas também no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções.
III - A aplicação de uma medida expulsiva de demissão só pode ter lugar quando a conduta do infractor atinge de tal forma grave o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte e que a sua não aplicação não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição, como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa.
IV – É do entendimento dominante que, em processo disciplinar, não bastam os factos objectivos apurados em si mesmo, é preciso ainda que seja especialmente ponderada pela entidade com poder de punir a sua gravidade concreta e feita pronúncia expressa acerca da inviabilidade ou não, da manutenção da relação funcional do funcionário em causa (cfr. Acs. do TUI, de 21/01/2015, Proc. Nº 26/2014; de 4/04/2019, Proc. Nº 11/2019; e do TSI, entre outros, de 10/03/2016, Proc. Nº 456/2015). A omissão deste elemento essencial traduz-se na insuficiente fundamentação da decisão punitiva, desrespeitando-se assim o disposto no artigo 115º do CPA e no artigo 315º/1 do ETAPM, o que é razão bastante para anular a decisão punitiva recorrida”; (cfr., fls. 158 a 158-v).

Resultando do transcrito excerto do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que o que o levou a decidir pela procedência do recurso contencioso foi o detectado vício de “insuficiente fundamentação da decisão punitiva” por omissão de “pronúncia expressa acerca da inviabilidade da manutenção da relação funcional” com a recorrente, (ora recorrida), quid iuris?

Sem prejuízo do muito respeito a entendimento em sentido diverso, cremos porém que não se pode confirmar o decidido no Acórdão agora recorrido, (muito não se apresentando necessário consignar para o demonstrar).

Na verdade, ainda que, em abstracto, censura não mereça o entendimento exposto quanto à necessidade de em “decisão disciplinar de aplicação da pena de demissão” (a trabalhador da Administração Pública) se dever ponderar sobre a “viabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional”, (cfr., art. 315°, n.° 1 do E.T.A.P.M. aprovado pelo D.L. n.° 87/89/M de 21.12), verifica-se que, in casu, (e certamente, por lapso na análise dos presentes autos), se incorreu em erro na apreciação da existência do referido “juízo”.

Com efeito, como resulta do Relatório (final) do Processo Disciplinar à ora recorrida instaurado, a mesma, no período de 14.12.2017 a 28.02.2018 incorreu num total de “77 faltas” pelo Instrutor consideradas “intencionais” e “muito graves”, (notando-se que a mesma nunca ensaiou sequer qualquer tentativa de justificação, tendo permanecido “incomunicável” e com “paradeiro desconhecido”), sendo de se atentar também que, em tal relatório, onde se propunha a aplicação da pena de demissão, e em sede de parecer, consignou (expressamente) o Director dos Serviços para os Assuntos Laborais que, em virtude da referida “conduta da arguida”, ora recorrida, era (totalmente) “inviável a manutenção da relação funcional” com a mesma, pugnando, assim, pela sua demissão, o que, por “despacho” concordante do Secretário para a Economia e Finanças se veio a decidir; (cfr., Processo Administrativo Instrutor, ora em Apenso, fls. 163).

E, dest’arte, tendo presente o referido “procedimento” que culminou com o “acto administrativo” objecto do recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância, adequado não se mostra de dizer que, aquando da sua prática se não terá ponderado na “viabilidade da manutenção da relação de trabalho” com a ora recorrida, pois que como se apresente óbvio, o “acto” em questão, sendo uma “decisão concordante”, não deixa de fazer seus (todos) os argumentos invocados do Relatório e Parecer que lhe antecedem, e, assim, do juízo neste último efectuado quanto à inviabilidade da manutenção da dita relação de trabalho; (no mesmo sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 31.07.2020, Proc. n.° 57/2020).

Assim, impõe-se a procedência do presente recurso.

Constatando-se que no Acórdão recorrido se considerou que prejudicadas ficavam as restantes questões colocadas no recurso contencioso, há que decidir em conformidade.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, devendo os autos voltar ao Tribunal de Segunda Instância para, nada obstando, conhecer das restantes questões colocadas no recurso contencioso aí interposto.

Custas do presente recurso pela recorrida, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 7 de Outubro de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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