Processo nº 140/2020 Data: 21.10.2020
(Autos de recurso jurisdicional)
Assuntos : “Residência temporária na R.A.E.M.”.
Autorização.
Pressupostos.
“Particular interesse para a R.A.E.M.”.
Conceito indeterminado.
Poder discricionário.
SUMÁRIO
1. Nos termos do art. 1°, n.° 3, do Regulamento Administrativo n.° 3/2005: “Podem requerer autorização de residência temporária na Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do presente diploma, as seguintes pessoas singulares não residentes:
(…)
3) Os quadros dirigentes e técnicos especializados contratados por empregadores locais que, por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau”.
2. E atento o art. 6°, n.° 1 deste mesmo Regulamento Administrativo n.° 3/2005, “É competência discricionária do Chefe do Executivo decidir os pedidos de residência temporária apresentados independentemente dos respectivos fundamentos”.
3. Nesta conformidade, em face do regime legal aplicável, mesmo que o interessado preencha os pressupostos do art. 1°, a “autorização da sua residência” pode, ou não, ser concedida.
4. A utilização pelo legislador de “conceitos indeterminados” constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários: para permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, e para permitir uma “individualização” da solução.
5. No âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição.
Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração.
O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 140/2020
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede dos Autos de Recurso Contencioso n.° 503/2018 proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte Acórdão:
“A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Chefe do Executivo que lhe indeferiu o pedido, formulado ao abrigo do Regulamento Administrativo nº 3/2005, da concessão da autorização temporária, para ele e o seu cônjuge, na modalidade de técnicos especializados considerados de particular interesse para a RAEM, alegando e pedindo:
1.ª - A decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação da al. 3) do art. 1.º do Regulamento Administrativo 3/2005 de 4 ABR.
2.a - Consequentemente, atento esse vício de violação de lei, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
3.ª - Ao ter sido postergada a consideração holística e global de todo o material hábil à tomada crítica da melhor e mais justa decisão possível no caso concreto, documentada e levada ao procedimento, o acto a quo mostra-se também ferido de dois vícios geradores da sua anulabilidade atenta a violação frontal dos princípios da imparcialidade na sua dimensão positiva e da justiça - cfr. art. 7.º e 122.º n.º 2 al. d) do C.P.A. -, invalidades que aqui se invocam como fundamentos específicos para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
NESTES TERMOS, deverá ser dado provimento a este recurso, determinando-se a anulação do acto recorrido, atentos os três vícios de violação de lei invocados geradores da sua anulabilidade.
Citado, veio o Senhor Chefe do Executivo contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 37 a 41 dos p. autos.
Por despacho do Relator, foi indeferido o pedido da inquirição da testemunha arrolada pelo recorrente.
Não foram apresentadas alegações facultativas
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público emitiu o parecer pugnando pela improcedência do recurso – cf. as fls. 53 a 54 dos p. autos.
Fica assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* O recorrente é titular do Passaporte da Austrália;
* Encontra-se contratado, em regime de trabalhador não residente, por [Empresa], para desempenhar as funções de piloto de helicóptero;
* Requereu, ao abrigo do disposto no artº 1º/-3) do Regulamento Administrativo nº 3/2005, a concessão da autorização temporária, na modalidade de técnicos especializados considerados de particular interesse para a RAEM;
* Requerimento esse que foi indeferido por despacho do Senhor Chefe do Executivo, datado em 23MAR2018; e
* De acordo com as informações fornecidas pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, na pendência do procedimento administrativo que culminou com a prolação do despacho ora recorrido, existiam 2 indivíduos com habilitações literárias idênticas às do recorrente e 1 indivíduo que se pretende candidatar ao posto de trabalho idêntico ao do recorrente – vide fls. 29 a 31 (conforme a numeração feita pela entidade administrativa) do processo instrutor.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexiste nulidades.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Inexistem excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143), são, de acordo com o alegado no petitório do recurso, as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Da violação da lei; e
2. Da violação dos princípios da imparcialidade e da justiça.
Então apreciemos.
1. Da violação da lei
O recorrente entende que a Administração fez errada interpretação e aplicação do artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005.
Diz este normativo que podem requerer autorização de residência temporária na Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do presente diploma, as pessoas singulares não residentes, contratadas por empregadores locais como quadros dirigentes e técnicos especializados, que por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau.
Na óptica do recorrente, dadas as suas experiências profissionais na pilotagem de helicóptero, a escassez de pilotos de helicóptero na RAEM, assim como a crescente necessidade de serviços de transporte aéreo por helicóptero na RAEM, ao decidir como decidiu indeferindo o seu pedido de autorização de residência temporária, a Administração fez errada interpretação e aplicação desse normativo do citado artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005.
Ora, atendendo à forma como foi redigido esse normativo, salta à vista que ele comporta a “discricionariedade” e “conceito indeterminado”, pois é bem óbvia a intenção do legislador de conferir à Administração o poder discricionário para decidir do pedido de autorização de residência temporária, depois de a mesma ter concluído pela verificação dos pressupostos de factos capazes de preencher o conceito indeterminado de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau.
Da redacção desse normativo resulta que a lei não impõe o deferimento necessário da autorização de residência temporária às pessoas que satisfizerem o exigido pelo conceito indeterminado, mais sim conferir à Administração uma certa margem de liberdade para decidir, em cada caso concreto, autorizar ou não a pretensão de residência temporária dos não residentes, depois de valorar as condições do requerente e avaliar a conveniência e a oportunidade da eventual autorização para a prossecução dos interesses públicos da RAEM.
Tradicionalmente falando, os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou “quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais; o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc..” – Freitas do Amaral, in Curso do Direito Administrativo, II, Almedina, pág. 392.
Tal como sensatamente destacou o Ministério Público no seu douto parecer emitido em sede de vista final, dado não ser posto em dúvida o argumento de “澳門特別行政區不乏從事航空領域而具有相關專業資格的人員”, não podemos deixar de concluir tranquilamente que o despacho em questão não eiva de erro grosseiro, intolerável injustiça ou total desrazoabilidade, por isso não infringe nem o preceito na alínea 3) do art.1º do Regulamento Administrativo n.º3/2005 nem os princípios da imparcialidade e de justiça.
Concordamos, pois a Administração limitou-se a agir dentro da margem de liberdade que lhe é legalmente conferida.
Na verdade, no tipo das situações idênticas à do caso sub judice, está sempre ao dispor da Administração a alterativa de autorização de permanência a título de trabalhador não residente.
Por outro lado, a lei exige que os requerentes, para além de serem os técnicos especializados, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional.
Doutrinariamente falando, estamos perante um conceito indeterminado.
Não se tratando de conceito consistente em descrições puramente fácticas, cujo sentido e alcance são facilmente captáveis por quem domina mais ou menos a língua utilizada para a redacção da lei, mas sim conceitos cujo preenchimento requer um juízo valorativo da situação concreta, feito pelo aplicador de direito, com vista à sua integração na previsão da norma.
A captação do sentido e do alcance e a integração desses requisitos previstos no citado artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005 pressupõe efectivamente um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor.
E ao contrário do que sucede com a discricionariedade, que é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução de entre várias soluções juridicamente admissíveis, o legislador, quando empregar conceitos indeterminados na previsão da norma, não está a conferir ao aplicador de direito qualquer liberdade de escolher de entre várias soluções legalmente admissíveis, mas sim fixar-lhe um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento.
O preenchimento do conceito indeterminado constitui portanto a actividade vinculada à lei, e consequentemente sindicável por via contenciosa.
Todavia, como já decidimos supra que, à Administração é legalmente conferida a margem de liberdade de decidir quanto à autorização de residência temporária e a Administração movem dentro da margem de liberdade, o que já nos dispensa de avaliar as condições pessoais do requerente para emitir o juízo, por ser desnecessário, quanto à satisfação ou não do exigido pelo conceito indeterminado, uma vez que o uso legal do poder discricionário já conduz, de per si, à improcedência desta parte do recurso.
2. Da violação dos princípios da imparcialidade e da justiça
O recorrente alegou no petitório do recurso que em face do que antecede, a decisão a quo violou de forma flagrante e intensa os princípios da imparcialidade na sua dimensão positiva e da justiça……
Todavia, conforme se vê nas alegações de recurso, o que antecede estes juízos conclusivos não é mais do que fundamento para tentar convencer o Tribunal da verificação do vício da violação da lei, de per si, não nos permite perceber o iter por via do qual o recorrente chegou à conclusão de que a decisão a quo violou de forma flagrante e intensa os princípios da imparcialidade na sua dimensão positiva e da justiça.
Assim, é de subscrever a sensata observação do Ministério Público no seu douto parecer, onde destacou que convém ter presente que a arguição da violação dos princípios da imparcialidade e de justiça é manifestamente vaga, pois o recorrente não alegou qualquer facto concretos para substanciar tal arguição. De outro lado, é flagrantemente despropositada a invocação violação da alínea d) do n.º2 do art.122º do CPA, visto que não se descortina, de todo em todo lado, a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental do recorrente.
Sem mais delonga, é de improceder in totum o presente recurso.
Em conclusão:
1. Os tribunais administrativos não podem sindicar as decisões tomadas pela Administração no exercício de poderes discricionários, salvo nos casos extremos de erro grosseiro ou manifesto ou quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais; o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc..
2. Ao exigir que os requerentes, para além de serem os técnicos especializados, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, o artº 1º/-1) do Regulamento Administrativo nº 3/2005 emprego um conceito indeterminado.
3. Não se tratando de interpretação de um conceito consistente em descrições puramente fácticas, cujo sentido e alcance são facilmente captáveis por quem domina mais ou menos a língua utilizada para a redacção da lei, a compreensão do sentido e do alcance do conceito indeterminado pressupõe um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor, com vista à sua integração na previsão da norma.
4. Ao contrário do que sucede com a discricionariedade, que é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução de entre várias soluções juridicamente admissíveis, o legislador, quando empregar conceitos indeterminados na previsão da norma, não está a conferir ao aplicador de direito qualquer liberdade de escolher de entre várias soluções legalmente admissíveis, mas sim fixar-lhe um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento.
5. O preenchimento do conceito indeterminado constitui portanto a actividade vinculada à lei, e consequentemente sindicável por via contenciosa.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Registe e notifique.
(…)”; (cfr., fls. 57 a 61 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado com o decidido, traz o recorrente o presente recurso, alegando para, em conclusões, dizer o que segue:
“1. O exercício de uma margem de apreciação e conformação por parte da Administração quando actue ao abrigo de poderes discricionários não pode em caso algum ser deixada derivar para um exercício de arbítrio.
2. Se é certo que compete à Administração definir in concreto e caso a caso o que seja o melhor interesse da R.A.E.M. certo é que a presença de circunstancialismos fácticos que se amoldam às necessidades reais, efectivas da R.A.E.M. e de que esta é lacunar, deve relevar para a aferição e sindicância judicial se tal exercício de discricionariedade redunda ou não no exercício estéril e caprichoso dos poderes-deveres funcionais que lhe foram confiados pelo legislador.
3. O dever de boa administração subjaz e aflora, designadamente, no sub-princípio da conformação da competência com o fim na base da sua concessão (art. 3.°, n.° 1, in fine, do C.P.A.), no princípio da prossecução do interesse público (art. 4.° do C.P.A.) e ainda no princípio da eficiência (art. 12.° do C.P.A.).
4. A Administração errou e o T.S.I., reflexamente, ao não ter cassado tal erro, igualmente errou quando, perante os altos desígnios da R.A.E.M. em se firmar como centro mundial do turismo e lazer e, tendo presente a patente falta de quadros locais no respeitante às viagens de helicóptero, se decidiu “discriocionariamente” negar - e, quanto ao T.S.I. - manter ou não cassar tal acto negatório - a fixação do direito de residência do recorrente em Macau.
5. Jamais basta dizer “não porque não e porque a ordem jurídica mo permite pois que se tratam de poderes discricionários”, sendo esse um equivocadíssimo - e ilegítimo e ilegal - exercício de uma competência por parte da Administração.
6. Mesmo em sede de discricionariedade, o fim activa e permanentemente prosseguido tem de ser o da melhor forma de satisfazer e acomodar o interesse público de acordo com as necessidades da R.A.E.M. e com as circunstâncias relevantes trazidas à apreciação da Administração.
7. A Administração meramente escudou-se formalmente sob a invocação de estar a manejar um poder discricionário mas em nenhum segmento enfrentou as questões aqui salientadas quanto às capacidades do recorrente face às carências de Macau.
8. A decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação da al. 3) do art. 1.° do Regulamento Administrativo 3/2005 de 4 ABR bem como do dever de boa administração subjacente verbi gratia no sub-princípio da conformação da competência com o fim na base da sua concessão (art. 3.°, n.° 1, in fine, do C.P.A.), no princípio da prossecução do interesse público (art. 4.° do C.P.A.) e ainda no princípio da eficiência (art. 12.° do C.P.A.).
9. Consequentemente, atento esses vícios de violação de lei, a decisão a quo configura-se como acto anulável, ex vi do art. 124.° do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.as, nos termos do art. 20.° e a al. d) do n.° 1 do art. 21.° do C.P.A.C.”; (cfr., fls. 73 a 91).
*
Respondendo, diz a entidade recorrida que:
“I. As alegações do recurso ordinário interposto por A do acórdão do TSI de 14.05.2020 constituem, no fundamental, uma reprodução da petição do recurso contencioso;
II. O RA 3/2005 concede ao CE o poder de julgar se os trabalhadores não-residentes requerentes de autorização temporária de residência são de particular interesse para a RAEM, bem como o poder discricionário de decidir esses requerimentos (art. 1, n. 3, e 6, n. 1);
III. Não se tendo provado erro manifesto ou total desrazoabilidade no preenchimento do conceito indeterminado de particular interesse, ou no exercício do poder discricionário, o tribunal a quo não errou no seu julgamento quando concluiu que o CE não violou a lei ao decidir que o recorrente não era de particular interesse para a RAEM (CPAC, art. 21, n. 1, al, d);
IV. O recorrente não explica devidamente porque razão entende que o tribunal a quo errou quando julgou que o acto administrativo impugnado no recurso contencioso não violou o disposto no art 7 do CPA;
V. Nomeadamente, no que toca à imparcialidade, não se provou que tenha havido falta de isenção da parte da Administração, ou que esta tenha actuado por motivos alheios ao interesse público especificamente visado pelo RA 3/2005, v.g. com o intuito de prejudicar o particular;
VI. O princípio da justiça não releva em situações, como é precisamente o caso, em que simplesmente se discorda dos critérios e da decisão da Administração;
VII. Os trabalhadores não-residentes, por muito qualificados que sejam, não têm um direito subjectivo ao estatuto de residentes da RAEM, e muito menos um direito fundamental;
VIII. O recorrente, aliás, não explicou que direito fundamental é esse cujo conteúdo essencial entende ter sido violado;
IX. O tribunal a quo decidiu correctamente, em suma, ao julgar que o acto administrativo impugnado não violou o art. 122, n. 2, al. d), do CPA;
X. O recorrente não pode levantar no recurso jurisdicional novos vícios do acto administrativo que não sejam de conhecimento oficioso;
XI. A alegada violação, pela Administração, dos art. 3, n. 1, in fine, art. 4 e art. 12 do CPA, a ter ocorrido, teria produzido a mera anulabilidade do acto administrativo, a qual não é de conhecimento oficioso (art. 123, n. 2, do CPA, a contrario).
XII. Em conclusão, o acórdão recorrido não incorreu em qualquer erro de julgamento ou outro vício”; (cfr., fls. 96 a 104)
*
Em sede de vista, e em douto Parecer, considerou o Exmo. Representante do Ministério Público que o recurso não merecia provimento; (cfr., fls. 113 a 117).
*
Cumpre apreciar.
Fundamentação
2. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, insurge-se o recorrente contra o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância (de 14.05.2020, e que atrás se deixou transcrito), com o qual se negou provimento ao recurso contencioso que tinha interposto do despacho do Chefe do Executivo que lhe indeferiu um pedido de “autorização de residência temporária em Macau”.
Atento o teor das “conclusões” pelo ora recorrente apresentadas, constata-se que – em síntese – coloca duas questões: a primeira, imputando ao decidido “errada aplicação do art. 1°, n.° 3 do Regulamento Administrativo n.° 3/2005”, e, a segunda, considerando que se incorreu em “violação dos princípios da imparcialidade e justiça”.
Porém, (e sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento), não se mostra de se lhe reconhecer razão.
Aliás, as ditas “questões” foram já objecto de clara análise e fundamentada e adequada decisão no veredicto agora recorrido, apresentando-se-nos de subscrever, na íntegra, o que aí se consignou, (notando-se, igualmente, que as questões suscitadas se apresentam análogas às apreciadas no âmbito dos Autos de Recurso Jurisdicional n.° 84/2020, julgado por Acórdão da mesma data deste, e cujo teor aqui se dá como reproduzido).
Seja como for, não se deixa de dizer o que segue.
–– Da alegada “errada aplicação do art. 1°, n.° 3, do Regulamento Administrativo n.° 3/2005”.
Este Regulamento Administrativo n.° 3/2005, decretado ao abrigo do art. 15° da Lei n.° 4/2003, (“Lei sobre os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência”), estabelece o “Regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados”.
Nos termos do referido art. 1°:
“Podem requerer autorização de residência temporária na Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do presente diploma, as seguintes pessoas singulares não residentes:
1) Os titulares de projectos de investimento, em apreciação nos competentes serviços da Administração, que sejam considerados relevantes para a Região Administrativa Especial de Macau;
2) Os titulares de investimentos que sejam considerados relevantes para a Região Administrativa Especial de Macau;
3) Os quadros dirigentes e técnicos especializados contratados por empregadores locais que, por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, sejam considerados de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau;
4) Os adquirentes de bens imóveis que cumpram os requisitos previstos no artigo 3.º”; (sub. nosso).
Por sua vez, nos termos do art. 6° deste mesmo Regulamento Administrativo:
“1. É competência discricionária do Chefe do Executivo decidir os pedidos de residência temporária apresentados ao abrigo do presente diploma, independentemente dos respectivos fundamentos.
2. A competência referida no número anterior pode ser delegada no Secretário que tutela a área da Economia”; (sub. nosso).
Em face do exposto, cabe desde logo salientar que em causa está o “exercício de um poder discricionário”, e, desta forma, atento o “procedimento” que levou à decisão da entidade recorrida, apenas por manifesto equívoco se poderá ter considerado que se incorreu em desvio ao estatuído no comando legal do art. 1° atrás transcrito.
Com efeito, importa ter presente que em face do regime legal aplicável, mesmo que o interessado preencha os pressupostos referidos nas diversas alíneas do art. 1°, (pois que, assim não sendo, nem se coloca a questão), a autorização de residência pode, ou não, ser concedida, ao Chefe do Executivo cabendo decidir.
No caso, em causa estando saber se a “situação do ora recorrente” integrava o “conceito indeterminado” (para efeitos de se considerar) de “particular interesse para a R.A.E.M.”, e sabendo-se que o que nesta matéria for decidido é passível de escrutínio judicial, (cfr., v.g., Ac. de 03.05.2000, Proc. n.° 9/2000 e o Ac. hoje tirado no Proc. n.° 84/2020), mostra-se de notar que, tal como se considerou na decisão do Tribunal de Segunda Instância, não se vislumbra nenhum “erro grave, grosseiro ou manifesto” na decisão da entidade administrativa ora recorrida, que, aliás, assenta, (também), na consideração de que, “no momento, a R.A.E.M. não tem falta de profissionais com as qualidades (técnicas) do ora recorrente”, (cfr., fls. 242 a 244 do Processo Administrativo Instrutor, ora em Apenso), tornando, assim, evidente, que nenhuma razão existia para que se não decidisse como se decidiu.
Com efeito, e como se referiu no aludido Proc. n.° 84/2020:
“A utilização pelo legislador de “conceitos indeterminados” constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários: para permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, e para permitir uma “individualização” da solução”.
Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações sobre a matéria em apreciação, vista está a solução para a “questão”.
Continuemos.
–– Da alegada “violação dos princípios da imparcialidade e justiça”.
Nos termos do art. 7° do C.P.A.:
“No exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação”.
Assim, independentemente do demais, e como – bem – se nota no douto Parecer do Ministério Público:
“O princípio da imparcialidade, consagrado no artigo 7.º do CPA, exige dos órgão administrativos «assumam uma posição isenta e equidistante em relação a todos os particulares, assegurando a ‘igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos através de um critério uniforme de prossecução do interesse público’, ocorrendo a sua violação quando a actuação daqueles titulares não seja ditada pela prossecução daquele interesse, mas influenciada pela intenção de favorecer ou prejudicar interesses privados» (assim, na jurisprudência comparada, entre outros, o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal de 27.01.2010, processo n.º 551/09, disponível em linha no sítio www.dgsi.pt).
Por outro lado, de acordo com a doutrina mais autorizada, o princípio da justiça constitui «uma última ratio da subordinação da Administração ao Direito, permitindo invalidar aqueles actos que, não cabendo em nenhuma das condicionantes jurídicas expressas da actividade administrativa constituem, no entanto, uma afronta intolerável aos valores elementares da Ordem Jurídica, sobretudo aos plasmados em normas respeitantes à integridade e dignidade das pessoas, à boa-fé e confiança no Direito» (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA – PEDRO COSTA GONÇALVES – J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, Coimbra, 1998, p. 106)”.
Na verdade, dúvidas cremos que não existem que – justo e adequado é o entendimento no sentido de que – “No âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 22.05.2019, Proc. n.° 104/2014, de 10.07.2020, Proc. n.° 41/2020 e de 31.07.2020, Proc. n.° 59/2020, podendo-se também sobre o tema, e de forma desenvolvida, ver L. Ribeiro e J. C. Pinho in, “C.P.A. Anotado e Comentado”, pág. 90 e segs.).
In casu, nem o recorrente concretiza “como”, “de que forma” ou “em que termos” foram os referidos princípios desrespeitados, e, assim, nenhum motivo havendo para se dar por verificada a aludida “violação”, manifesto se apresenta que procedência não merece o presente recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 10 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 21 de Outubro de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
Proc. 140/2020 Pág. 20
Proc. 140/2020 Pág. 19