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Processo n.º 68/2020
(Autos de recurso cível)

Data: 22/Outubro/2020

Recursos interlocutórios
Recorrentes:
- A (Ré)
- B (Autor)

Recurso da decisão final
Recorrente:
- A (Ré)


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
B (autor) intentou acção declarativa comum sob a forma de processo ordinária contra A (ré), pedindo ao Tribunal a condenação desta no pagamento de MOP$74.572,34 ao autor, acrescidos de juros legais vencidos desde 26 de Junho de 2017 até 22 de Fevereiro de 2018, no valor de MOP$4.800,72, e os juros legais vincendos desde 23 de Fevereiro de 2018 até integral pagamento.
Foi proferido despacho saneador, tendo ambas as partes interposto recurso interlocutório contra o referido despacho.
Nas alegações, a ré apresentou as seguintes conclusões:
“基於上述,在沒有釐清共同財產的範圍及價值前,上訴人不以個人財產償還。原告應透過其他合適的程序來提出其訴求,而其起訴應基於形式不當而駁回。”

Ao recurso respondeu o autor nos seguintes termos conclusivos:
“I. A Recorrente entendeu que à presente acção devia aplicar-se o processo do inventário e da partilha conforme o regime do Código Civil de 1966.
II. Mas o entendimento da Recorrente é um erro de interpretação da lei por violação do artigo 8º do Código Civil em vigor.
III. Da comparação das redacções do artigo 1697º, n.º 1 do Código Civil de 1966, e 1565º, n.º 1 do Código Civil em vigor, resulta que do legislador alterou o pressuposto de pedir as compensações devidas entre os cônjuges pelo pagamento de dívidas do casal, já não sendo necessário fazer primeiro a partilha dos bens do casal como no passado.
IV. O crédito por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges previsto no artigo 1565º/1 do Código Civil de 1999 não se trata de um crédito apenas exigível no momento da partilha dos bens do casal, por dela não depender.
V. Porque a actual redacção do artigo 1565º/1 do Código Civil não impõe que este crédito só seja exigível no momento da partilha dos bens do casal, daí que o Recorrido possa pedí-lo na presente acção nos termos do artigo 92º do CPC – Lei reguladora da forma dos actos e do processo.
VI. E mais, como o Tribunal a quo entendeu que, 原告尚以不當得利為由提出補充請求,因此,不存在被告指稱的程序無效。
VII. O Recorrido moveu, com base nestes factos, o presente acção contra a Ré, pedindo o crédito no valor de MOP74.572,24, nos termos do artigo 1565º, n.º 1 do CC, e como pedido subsidiário, o mesmo valor, nos termos do artigo 467º do CC, a título de enriquecimento sem causa.
VIII. Nada obstará a que o Tribunal a quo aprecie o pedido subsidiário do Recorrido, nos termos do artigo 390º, n.º 3 ex vi do 65º, n.º 3, ambos do CPC.
IX. Pelo que, não existe o erro da forma do processo indicado pela Recorrente nesta acção.”
*
E quanto ao recurso interposto pelo autor, este formulou as seguintes conclusões alegatórias:
“I. Outro devia ter sido o sentido da decisão tomada no despacho-saneador de fls. 127 e 127v, que admitiu o pedido reconvencional da Ré, atenta a natureza incedível do crédito a alimentos.
II. O Tribunal a quo entendeu que o crédito invocado pela Ré contra o Autor resultou das despesas de alimentos que ela pagou em excesso.
III. Mas de facto, este crédito de que a Ré se arroga é uma mera fracção do crédito a alimentos cujos titulares só podem ser os alimentandos, neste caso, os filhos menores.
IV. Conforme o artigo 1849º, n.º 1 do Código Civil, os créditos a alimentos são incedíveis, ou seja, são insusceptíveis de transmissão a terceiros.
V. Neste sentido, a Ré não é, nem nunca será credora das despesas de alimentos que ela diz ter pago em excesso, não somente por não estar provado o facto de ela ter depositado aquela quantia de MOP$49.293,51 na conta bancária colectiva, mas também por os titulares e por isso credores do direito a alimentos de iure próprio serem apenas os filhos menores do Autor e da Ré.
VI. A Ré só poderia exigir do Recorrente o pagamento das despesas de alimentos a que ele estivesse obrigado, se ele estivesse em mora e ela o fizesse em representação e em nome dos filhos menores, seguindo a forma do incidente «pré-executivo» regulado no art.º 110º do Regime Educativo e de Protecção Social de Jurisdição de Menores ou a forma da execução especial por alimentos (artigos 958º a 962º ex vi do art.º 369º, n.º 2 do CPC, todos do CPC).
VII. Existe, pois, erro na forma do processo ora empregue pela Ré para realizar a cobrança coerciva do débito de alimentos.
VIII. Sendo evidente que o legislador não quis que nenhum dos pais se sub-rogasse no direito a alimentos dos filhos por se tratarem de direitos indisponíveis, logo intransmissíveis, tendo, ao invés, previsto meios coercitivos especiais simples e particularmente expeditos para assegurar o cumprimento da prestação alimentar vencida.
IX. Não obstante, Tribunal a quo admitiu o pedido da compensação da Ré em vez de o ter indeferido liminarmente por o mesmo se afigurar manifestamente inviável.
X. Isto por a lei não permitir à Ré livrar-se da sua obrigação com a obrigação que o Recorrente lhe deve em consequência de ela ter alegadamente pago despesas de alimentos para além do que lhe competia.
XI. Desde logo por não estar preenchidos os requisitos de reciprocidade dos créditos, nem o da exigibilidade judicial do contra-crédito (artigo 838º e 842º CC).
XII. A solução não seria diferente ainda que a Ré tivesse pedido a compensação em representação e em nome dos seus filhos menores.
XIII. Isto porque os créditos a alimentos foram excluídos pelo legislador do âmbito da compensação (artigos 844º, alínea b) e 1849º, n.º 2, in fine, todos do CC).
XIV. Em consequência, devia o pedido reconvencional ter sido indeferido liminarmente ou julgado inadmissível por não se enquadrar em nenhuma das hipóteses previstas na norma do artigo 218º, n.º 2 do CPC.
Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências. ”

Ao recurso respondeu a ré, pugnando pela negação de provimento ao recurso.
*
Feito o julgamento, a acção foi julgada parcialmente procedente.
Inconformada, recorreu a ré jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. 上訴人主張,應優先審理有關中間上訴,若然不成立的話,再行審理當前的上訴。
II. 上級法院應認定CC 1537,2適用於本案,同時基於當中的推定沒有被推翻,判處原告敗訴。
倘不如此認定,則:
III. 上級法院應認定CC 1565適用在本案,原告有舉證責任證明無或不足夫妻共同財產,然而舉證失敗,判處請求不成立。
倘不如此認定,則:
IV. 疑問列第2點,基於本身屬法律問題又或結論性問題,又或基於合議庭在證實該點疑問時依靠了法律問題的判斷,又或基於必須以文件證明下,合議庭對疑問列第2點的回答,按CPC 549,4應視為未經載錄。上級法院應因此廢此原審判決,並判處原告請求不成立。
倘不如此認定,則:
V. 原審法院按第271及272的文件,錯誤認定了疑問列第8點,上級法院應依上述人證及文件認定上訴人在:
2016年3月4日存放了MOP5,546.80
2016年3月14日存放了MOP17,630.00
2016年4月19日存放了MOP5,890.00
2016年5月17日存放了MOP11,752.60,同日出售了單位,而按銀行要求,同日上訴人再存入MOP8,474.11。繼而,判處當中一半即MOP24,646.75,應由原告向被告補償。
倘不如此認定,則:
VI. 要判處被告賠償利息的話,應先使原告成為被告的債權人,並經催告到期,方能主張利息賠償。也即是說,必須在明確沒有共同財產或不足時,方能向被告個人主張債權,再使之到期,而不是跳過審視共同財產這一步,直接對被告個人催告,並視之為到期。
基於此,原審法院對利息這賠償直接要求被告個人負責,錯誤適用CC 1565, 1的規定。上級法院應廢止這裁判。
倘不如此認定,則:
VII. 第二證人明確講出日子為2016年3月中,並提出佐證,指當時是由於第二證人在原告搬離後,改到原告的房間起居,所以記憶清楚。明顯地,第二證人的證詞更為可信。所以,上級法院應廢止此疑問列15點的回答,共認定原告在2016年3月中才搬離福成大廈單位。同時,
VIII. 由於證明了反訴人負擔了家庭開支,而原告有舉證責任證明其已履行其義務,但舉證失敗,而家中各人只有原告和反訴人有收入情況下,我們能安全地推論出,反訴人負擔了MOP8,000的家中使費,並負擔多於應負擔的部份。與疑問列第9點相呼應,應裁定由女方支付福成大廈每月MOP8,000的使費。
IX. 是故,上級法院應認定疑問列16點的事實為獲證,證實: “當時,福成大廈內有五人居住,家中的水電食物消耗品的使費為每月MOP8,000,該費用全由女方以個人財產支付,原告沒有分擔當中的五分之一開支,即MOP1,600。”同時,
X. 就不當得利,反訴人應證明原告的得益,是基於反訴人的損失。按上訴兩項事實,反訴人認為原告享用了單位,在單位內起居,應負擔MOP1,600卻沒有負擔,沒有合理理由之下,轉到由反訴人負擔了2014年11月18至2016年3月中,一共16個月,亦即負擔了MOP25,600。如此,結合疑問列9、15及16點,上級法院應廢此原審裁判,判處反訴人就家居使費原告應向反訴人支付MOP25,600。
XI. 基於97至107所指的理據與裁判相矛盾、雙重標準、突然決定decisão supresa,以及無說明理由而違反CPC 108,結合CPC 571,上級法院應認定原審判決無效,並產生應生之後果。”

Ao recurso respondeu o autor, tendo apresentado nas suas contra-alegações as seguintes conclusões:
“I. O recurso tem por objecto 4 questões:
- erro na determinação da norma aplicável por não aplicação do artigo 1537º, n.º 2 do CC;
- erro na interpretação da norma aplicável por não aplicação do artigo 1565º do CC no sentido por si propugnado;
- erro de julgamento na resposta aos quesitos 2º, 8º, 15º e 16º da Base Instrutória;
- nulidade prevista no artigo 108º ex vi artigo 571º do CPC por oposição entre os fundamentos e a decisão, dualidade de critérios, decisão surpresa, e falta de fundamentação.
II. Mas ressalvado o devido respeito que qualquer opinião contrária nos merece, não se verifica nenhum dos vícios apontados à sentença recorrida, nada obstando, pois, a que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. muito doutamente suprirão, deve o recurso a que ora se responde ser julgado totalmente improcedente, com as legais consequências.
Assim, mais uma vez, fará o Tribunal a habitual JUSTIÇA!”
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
O Autor B e a Ré A contraíram casamento no dia 8 de Maio de 2009, sob o regime de comunhão de adquiridos. (alínea a) dos factos assentes)
Autor e Ré divorciaram-se por sentença proferida no FM1-15-0177-CDL transitada em julgado no dia 16 de Janeiro de 2017, tendo a ora Ré sido declarada a única e exclusiva culpada (cfr. documento de fls. 10 a 14, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (alínea b) dos factos assentes)
Na constância do casamento, o Autor e a Ré compraram no dia 15 de Novembro de 2012 a fracção «DR/C» sita em Macau, na Rua de Francisco Xavier Pereira nº3A-3AC, Edf. Fok Seng, D do R/C. (alínea c) dos factos assentes)
No mesmo dia, o Autor e a Ré constituíram uma hipoteca sobre a referida fracção para garantir o empréstimo do “Industrial and Commercial Bank of China (Macau) Limited” (ICBC), no valor de MOP$1.959.000,00. (alínea d) dos factos assentes)
O Autor e a Ré obrigaram-se ainda a segurar contra incêndio a fracção acima referida que fora hipotecada ao banco para a garantia do reembolso do empréstimo, o prémio anual do seguro era de MOP$3.918,00. (alínea e) dos factos assentes)
Até ao dia 18 de Novembro de 2014, o saldo da conta n.º 0119100600002329280 do ICBC que as partes usavam para fazer o reembolso do empréstimo bancário e o pagamento do prémio do seguro de incêndio era de MOP$29.429,99. (alínea f) dos factos assentes)
Em 2 de Fevereiro de 2016, o Autor informou por whatsapp à Ré de que o saldo existente de MOP$6.210,66 na conta n.º 0119100600002329280 do ICBC não era suficiente para o reembolso da prestação referente ao mês de Fevereiro de 2016, e pediu-lhe que depositasse nessa conta a parte que lhe competia. (alínea g) dos factos assentes)
Em Fevereiro de 2016, o Autor manifestou à agência imobiliária por whatsapp que ele pretendia vender a fracção em causa, pelo que, o Autor pediu-lhe para perguntar a Ré se pretender a fracção à venda. (alínea h) dos factos assentes)
No mesmo dia, a agência respondeu ao Autor que a Ré concordava com fracção à venda e o Autor e a Ré podiam assinar o contrato de mediação imobiliária. (alínea i) dos factos assentes)
No dia 2 de Junho de 2017 e dia 26 de Junho de 2017, o Autor informou à Ré que a Ré tinha uma dívida ao Autor no valor de MOP$74.572,34 por causa de incumprimento da obrigação de reembolso da sua quota-parte do empréstimo bancário e dos prémios do seguro de incêndio (cfr. documento de fls. 40 a 46, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). (alínea j) dos factos assentes)
O Autor informou novamente à Ré por carta registada expedida no dia 9 de Janeiro de 2018, que a Ré lhe devia o valor de MOP$74.572,34, a que acresciam os juros legais, no valor de MOP$3.844,56, desde a data da carta de 26/06/2017 (cfr. documento de fls. 47, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). (alínea k) dos factos assentes)
A Ré recebeu no dia 11 de Janeiro de 2018 e a carta acima referida que fora expedida no dia 9 de Janeiro de 2018. (alínea l) dos factos assentes)
No dia 18 de Novembro de 2014, a Ré saiu definitivamente da casa em que vivia com o Autor. (alínea m) dos factos assentes))
Desde 15/02/2015, o Autor pagou sozinho o empréstimo bancário e o seguro de incêndio relativo à fracção em causa com o saldo por si depositado na conta referida em F). (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
O Autor e a Ré, no dia 17 de Maio de 2016, venderam a fracção em causa pelo preço de HKD$2.480.000,00 e pagaram o resto de empréstimo MOP$1.631.399,14. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
A Ré deixou de depositar o dinheiro na conta nº0119100600002329280 do ICBC desde o dia 18 de Novembro de 2014, excepto os valores indicados na resposta dada ao quesito 8º. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
No período entre o dia 18 de Novembro de 2014 e dia 15 de Fevereiro de 2016, o valor das prestações do reembolso do empréstimo bancário e dos prémios de seguro de incêndio foi de MOP$178.574,66. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
A Ré, chegou a depositar na conta conjunta de ambos, aberta no ICBCM, para reembolsar as amortizações do imóvel, as seguintes valores:
- em 04/03/2016, o montante de MOP$5.546,80;
- em 19/04/2016, o montante de MOP$5.890,00;
     - em 17/05/2016, o montante de MOP$11.752,00. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
A partir de 18 de Novembro de 2014, a Ré participou nas despesas familiares e nos alimentos dos filhos de ambos. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
O Ministério Público intentou, em 29 de Abril de 2016 acção de regulação do poder paternal contra o Autor e a Ré. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
Por sentença proferida em 09/12/2016, no processo nº FM1-16-0102-MPS, foi o Autor condenado a pagar uma quantia mensal de MOP$7.000,00 a título de alimentos, a contar a partir da data de propositura da acção, sem prejuízo da compensação ou suplemento na parte que tinha sido paga anteriormente pelos requeridos na pendência da respectiva acção. (resposta aos quesitos 11º e 12º da base instrutória)
Durante o período entre 18 de Novembro de 2014 e 17 de Outubro de 2015, o Autor residiu na fracção D, r/c, do Edf. “Fong Seng” envolvido neste processo. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
*
Comecemos por apreciar o recurso interlocutório da ré.
Defende a ré que o autor empregou mal a forma de processo, entendendo que a forma de processo correcta é o processo especial de inventário para partilha de bens comuns do casal.
Decidiu-se na primeira instância o seguinte:
“訴訟形式錯誤
被告又提出原告應採用財產清冊程序來解決有關本案爭議,然而,我們留意到現行《民法典》第1565條沒有像66年《民法典》般要求必須在財產清冊案中解決以一方個人財產支付共同債務所引致的債權問題,因此,未見所採用的通常宣告訴訟程序為錯誤的訴訟形式,此外,正如前述,原告尚以不當得利為由提出補充請求,因此,不存在被告指稱的程序無效。”

A nosso modesto ver, julgamos não merecer qualquer reparo a decisão recorrida.
Em primeiro lugar, ao contrário do que acontece com o artigo 1697.º do CC revogado, o artigo 1565.º do CC já não diz que a obtenção do crédito (por compensação de um cônjuge sobre o outro) só é exigível no momento da partilha.
Em segundo lugar, mesmo conforme o artigo 1697.º do CC, este previa apenas que o crédito do cônjuge sobrecarregado, a menos que entre os cônjuges vigorasse o regime da separação de bens, só era exigível no momento da partilha dos bens do casal, e não se colocava naquela disposição legal a questão de saber qual seria a forma de processo aplicável ao caso.
Em boa verdade, a previsão legal foi no sentido de que a exigibilidade do crédito era diferida para o momento da partilha dos bens do casal, e nunca exigia que a satisfação daquele crédito teria que seguir exclusivamente determinada forma de processo, nomeadamente a forma de processo especial de inventário para partilha de bens do casal.
Nesta conformidade, há-de negar provimento ao recurso.
*
Atento o disposto no n.º 2 do artigo 628.º do CPC, passemos agora a apreciar o recurso da decisão final interposto pela ré.
Alega a recorrente que o reembolso do empréstimo bancário foi um encargo da vida familiar e tendo o mesmo pago pelo autor, presume-se a renúncia ao direito de exigir do outro a correspondente compensação, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 1537.º do CC.
A norma dispõe o seguinte:
“Se a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar exceder a parte que lhe pertencia nos termos do número anterior, presume-se a renúncia ao direito de exigir do outro a correspondente compensação.”
Observam Francisco Coelho e Guilherme de Oliveira1, “o dever de contribuição para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges nos mesmos termos (de acordo com o princípio da igualdade dos cônjuges, não há uma atribuição estereotipada de funções ao marido ou à mulher) e pode ser cumprido por qualquer deles de duas formas: pela afectação dos seus recursos (rendimentos e proventos) àqueles encargos e através do trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos.”
Em boa verdade, estes encargos da vida familiar dizem respeito a despesas domésticas relacionadas com a habitação, a alimentação, a saúde, a educação ou o lazer dos membros da família, e não se deve confundir esses encargos com dívida comum do casal.
No caso dos autos, é bom de ver que o empréstimo foi contraído pelas partes na constância do matrimónio, sendo assim não deixava de ser uma dívida comum do casal conforme o previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1558.º do CC, não sendo aplicável ao caso o disposto no artigo 1537.º do CC.
Isto posto, improcede o recurso da ré quanto a esta parte.
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Alega ainda a ré recorrente que a dívida do autor devia ser paga, em primeiro lugar, pelo património comum, mas não se provando que não existiam bens comuns ou que estes não eram suficientes para pagar a dívida ao banco, a acção devia ser julgada improcedente.
Ora bem, consagra o n.º 1 do artigo 1565.º do CC que “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do património comum pela totalidade do montante da dívida; não existindo bens comuns ou sendo estes insuficientes, ele torna-se credor do outro cônjuge pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer.”
Efectivamente, o autor já provou que o saldo da conta não era suficiente para saldar a dívida do referido empréstimo contraído pelos cônjuges, conforme resulta dos factos constantes da alínea F) da matéria assente e da resposta dada ao quesito 7º da base instrutória, daí que improcedem as razões invocadas pela ré quanto a esta parte.
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A ré vem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 2º, 8º, 15º e 16º da base instrutória, com fundamento na suposta existência de erro na apreciação da prova.
O Tribunal recorrido respondeu aos quesitos 2º, 8º, 15º e 16º da seguinte forma:
Quesito 2º - “Desde 15/2/2015, o Autor passou a pagar sozinho o empréstimo bancário e o seguro de incêndio relativo à fracção em causa com o saldo por si depositado na conta referida em F)?”, e a resposta foi: “Provado que desde 15/02/2015, o Autor pagou sozinho o empréstimo bancário e o seguro de incêndio relativo à fracção em causa com o saldo por si depositado na conta referida em F).”

Quesito 8º - “A fim de reembolsar, atempadamente, as dívidas comuns, a ré, com o seu próprio dinheiro, efectuou depósitos na conta conjunta de ambos, aberta no ICBCM, para reembolsar as amortizações do imóvel, como se segue:
- em 4 de Março de 2016, depositou o montante de MOP5.546,80;
- em 14 de Março de 2016, depositou o montante de MOP17.360,00;
- em 19 de Abril de 2016, depositou o montante de MOP5.890,00;
- em 17 de Maio de 2016, depositou o montante de MOP11.752,00; no mesmo dia, vendeu a fracção e, a pedido do banco, depositou novamente, no mesmo dia, o montante de MOP8.474,11?”,
e a resposta foi: “Provado que a Ré chegou a depositar na conta conjunta de ambos, aberta no ICBCM, para reembolsar as amortizações do imóvel, os seguintes valores:
- em 4/3/2016, o montante de MOP5.546,80;
- em 19/4/2016, o montante de MOP5.890,00;
- em 17/5/2016, o montante de MOP11.752,00;.”

Quesito 15º - “Desde 18 de Novembro de 2014 até 17 de Maio de 2016, data em que foi vendido o imóvel, o autor ainda residiu, por um total de 18 meses, na fracção D, r/c, do Edf. “Fok Seng” envolvido neste processo?”, e a resposta foi: “Provado que durante o período entre 18 de Novembro de 2014 e 17 de Outubro de 2015, o autor residiu na fracção D, r/c, do Edf. “Fok Seng” envolvido neste processo.”

Quesito 18º - “Na altura, residindo cinco pessoas no edifício “Fok Seng”, as despesas com água, electricidade, alimentos, entre outros produtos consumíveis perfaziam MOP8.000,00 por mês; estas despesas foram, totalmente suportadas por bens próprios da ré, o autor não repartiu um quinto das respectivas despesas, correspondentes a MOP1.600,00?”, e a resposta foi: “Não provado.”

Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo Tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos, o depoimento de parte e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão à ré.
De facto, os documentos invocados pela ré são meros documentos particulares, não fazendo, em princípio, prova plena, enquanto o depoimento das testemunhas também está sujeito à livre apreciação do Tribunal.
Sendo certo que o Tribunal recorrido deu como provados e não provados, respectivamente, aqueles quesitos descritos com base não só na prova documental mas também nos depoimentos do autor e das testemunhas, a ré recorrente ao fim e ao cabo pretende apenas sindicar a íntima convicção do Tribunal recorrido formada a partir da livre apreciação e valoração global das provas produzidas nos autos.
A nosso ver, não vislumbramos qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do Tribunal recorrido na análise da prova nem na apreciação da matéria de facto controvertida, sendo que os dados trazidos aos autos permitam chegar à mesma conclusão a que o Tribunal a quo chegou, pelo que improcede o pedido de impugnação da matéria de facto.
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Conforme se demonstra na matéria de facto provada, autor e ré contraíram matrimónio em 8/5/2009 sob o regime de comunhão de adquiridos. Na constância do casamento, os dois compraram no dia 15/11/2012 a fracção autónoma identificada nos autos, tendo constituído na mesma data uma hipoteca sobre a referida fracção, para garantia de um empréstimo bancário no montante de MOP1.959.000,00.
Provado ainda que o autor pagou sozinho o empréstimo bancário e o seguro de incêndio relativos à fracção com o seu dinheiro, no período compreendido entre 18.11.2014 e 15.2.2016. Até 17.5.2016, data em que a fracção em causa foi vendida, o valor da dívida do empréstimo bancário e dos prémios do seguro de incêndio pago pelo autor cifrava-se em MOP172.333.57, sendo cada uma das partes responsável por metade da dívida, no valor de MOP86.166,79 cada.
Na medida em que a ré apenas tinha depositado MOP23.188,90 para reembolsar as amortizações do empréstimo, andou bem o Tribunal a quo ao condenar a ré a pagar ao autor a quantia de MOP62.977,89, ao abrigo do disposto nos artigos 1558.º, alínea a), 1561.º, 1562.º, alínea c) e 1565.º, todos do CC.
Quanto aos juros moratórios, prevê o n.º 1 do artigo 795.º do CC que “na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora”.
E diz o n.º 1 do artigo 794.º do CC que “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”.
Conforme se decidiu na sentença recorrida, demonstrado ficou que a ré recebeu a carta de interpelação enviada pelo autor para pagamento da dívida em 26.6.2017, pelo que é a partir dessa data que a ré ficou constituída em mora.
Improcede, pois, as razões invocadas pela recorrente quanto a esta parte.
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No que toca aos pedidos reconvencionais formulados pela ré, considerando que improcedente ficou o pedido de impugnação da matéria de facto, outra solução não resta senão julgar improcedente o recurso quanto a esta parte, confirmando o que foi decidido pela primeira instância no tocante àquela questão.
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Finalmente, suscitou a ré recorrente a nulidade da sentença, mas, a nosso ver, não lhe assistir qualquer razão.
No fundo, o que a ré queria é meter tudo num saco, isto é, meter todas as questões na figura da nulidade de sentença.
Efectivamente, sobre o âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 1565.º do CC, a recorrente já colocou oportunamente a questão conforme já acima explicitado, mas infelizmente voltou a questionar a mesma questão, mas desta vez põe a tónica na nulidade de sentença.
O mesmo acontece com a questão de interpretação do n.º 2 do artigo 1537.º do CC, a qual foi novamente suscitada mas agora a título da nulidade de sentença.
Pior ainda é dizer que o tribunal recorrido proferiu uma decisão surpresa quando se aplicou o disposto no n.º 2 do artigo 1537.º do CC.
A nosso ver, ou a ré recorrente está a agir de má-fé por querer protelar o andamento do processo, nomeadamente o trânsito em julgado da decisão, ou efectivamente não conhece da existência do artigo 567.º do CPC, em que se prevê o tribunal não estar sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Também não se verifica, sem margens para quaisquer dúvidas, que a sentença esteja inquinada de falta de especificação de fundamentos.
Por tudo quanto deixou exposto, há-de negar provimento ao recurso interposto pela ré recorrente.
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No respeitante ao recurso interlocutório interposto pelo autor, uma vez que foi confirmada a sentença recorrida, aquele não vai ser apreciado, nos termos consentidos pelo artigo 628.º, n.º 2 do CPC.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em:
- Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela ré;
- Negar provimento ao recurso de decisão final interposto pela ré;
- Não conhecer do recurso interlocutório interposto pelo autor, nos termos previsto no n.º 2 do artigo 628.º do CPC.
Custas do recurso interlocutório e do recurso de sentença final pela ré recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, 22 de Outubro de 2020
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Curso de Direito da Família, Volume I, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 360 e 361
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Recurso cível 68/2020 Página 25