Processo nº 1212/2019
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 29 de Outubro de 2020
ASSUNTO:
- Vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto.
SUMÁRIO:
- Não constando da decisão que aplica a pena disciplinar os factos;
- Acção e elemento subjectivo – que permitam concluir que a funcionária violou o dever de zelo, enferma aquela de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto sendo anulável.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 1212/2019
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 29 de Outubro de 2020
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Economia e Finanças de 27.09.2019 que condenou a Recorrente por infracção disciplinar na pena de multa de 15 dias de vencimento e outras remunerações certas e permanentes (mas não incluem o subsidio de família e o subsídio de residência), formulando as seguintes conclusões:
1. A recorrente mantém a conclusão feita na petição inicial, entendendo que no respectivo acto administrativo verificam-se vícios dos erros nos pressupostos de facto e na aplicação da lei.
2. A anulação da queixa foi decidida pelo queixoso, de forma livre, voluntária e absolutamente nítida.
3. Apenas dependente de uma expressão que a recorrente chegou a proferir: “Então, vou ajudar-te a anulá-la?” e negligenciando totalmente os outros conteúdos do diálogo entre a recorrente e o queixoso, entendeu assim existir neste processo a indução da recorrente, tratando-se de uma interpretação fora do contexto e violando as regras de experiência comum.
4. Por outro lado, o objectivo de a recorrente ter exprimido ao queixoso a sua opinião jurídica individual não era para diminuir a sua análise individual e o trabalho de papelada.
5. Também como o que o Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças indicou, o acto de a recorrente ter dado explicações jurídicas ao queixoso e analisado o respectivo caso, tratava-se de uma maneira de fazer normal e do dever que devia ter.
6. Nestes termos, verifica-se erro notório na apreciação da prova por parte da entidade recorrida, não havendo prova suficiente para sustentar o acto administrativo acusado, fazendo com que haja o erro na definição dos pressupostos de facto.
7. A recorrente entende também que pela sua conduta, não violou o dever de zelo.
8. A recorrente, pelo seu acto, tinha por objecto para prestar o serviço ao cidadão com entusiasmo, assim cumpriu o princípio de desburocratização, evitando que o cidadão necessitasse de enfrentar os procedimentos complicados e prolongados para poder saber de um resultado que fosse fácil de ver, mas, não devido ao conflito de interesses com qualquer interessado ou ao alívio da sua pressão emergente do trabalho.
9. Nestes termos, por terem os supracitados vícios em relação ao acto em causa, deve, nos termos do artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, anular o acto administrativo praticado a 27 de Setembro de 2019 pelo Secretário para a Economia e Finanças.
Citada a entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Economia e Finanças contestar com os fundamentos constantes de fls. 23 a 34, traduzidos a fls. 31 a 59 do apenso, apresentando as seguintes conclusões:
1. Na parte em que a Recorrente entendeu que existe erro nos pressupostos de facto no acto recorrido, conforme os vídeos gravados entre 16h00 e 17h00 do dia 13 de Fevereiro de 2019 fornecidos pelo Grupo das Relações Públicas da “DASL” (cfr. discos compactos a fls. 1 e 13 do presente processo) e em conjugação com as declarações prestadas pelo queixoso, já se pode provar claramente que à tarde do dia 13 de Fevereiro de 2019, a Recorrente induziu o queixoso a retirar o seu processo de queixa.
2. O acto recorrido nunca truncou o texto para torcer o sentido como referido pela Recorrente, provando a existência da infracção disciplinar só com base numa frase dirigida pela Recorrente (Então ajudo você a retirá-la), mas sim o acto recorrido provou a infracção disciplinar da Recorrente em conjugação com todo o vídeo gravado durante a reunião entre a Recorrente e o queixoso em 13 de Fevereiro de 2019 e as declarações prestadas pelo queixoso.
3. O acto de a Recorrente induzir o queixoso a retirar a queixa também afectou a reputação da “DSAL”, pois a “DSAL” é um órgão que fiscaliza os direitos e interesses laborais, pelo que, o seu pessoal de inspecção (Recorrente) induziu o queixoso a retirar a queixa, isto levou os cidadãos a ter imagem e impressão negativas em relação à “DSAL”, e de facto, o presente incidente causou a queixa apresentada pelo queixoso contra a Recorrente junto da “DSAL”.
4. Na reunião realizada em 13 de Fevereiro de 2019, quando o queixoso disse à Recorrente que “faça como o proposto por você”, a Recorrente respondeu naturalmente que “então ajudo você a retirá-la”, isto reflecte exactamente o elemento psicológico-jurídico da Recorrente naquele momento, e após a explicação e a indução na reunião, o objectivo final ou o resultado que a Recorrente pretendeu alcançar foi que o queixoso retirasse a sua queixa.
5. No ponto 51 da petição do recurso contencioso e no ponto 22 da sua conclusão, a Recorrente indicou expressamente por duas vezes que no encontro com o queixoso, foi a Recorrente que propôs ao queixoso que retirasse a queixa, mesmo no recurso contencioso a Recorrente confessou que foi ela que propôs ao queixoso que retirasse a queixa, tal acto também é inadequado e ilegal. Além disso, na contestação escrita da instrução, a Recorrente declarou solenemente que nunca pediu ou propôs de forma expressa ou tácita ao queixoso que retirasse a queixa. Daí pode-se ver que as alegações no recurso contencioso e na contestação escrita são completamente diferentes. Obviamente, os esclarecimentos da Recorrente são contraditórios.
6. A Recorrente referiu que o acto de propor o queixoso que retirasse a queixa teve por finalidade evitar ter o mesmo resultado depois de decorrido um longo período do procedimento administrativo, porém, tal esclarecimento também é difícil de ser aceite.
7. A Recorrente alegou que mesmo que o queixoso retirasse a queixa, o seu volume de trabalho não se diminuiu, porém, isto evidentemente não corresponde à verdade e a Recorrente também não forneceu quaisquer provas para suportar a sua tese. Além disso, há provas precisas que comprovam que a Recorrente intentou aproveitar-se de que o queixoso retirasse a queixa por sua iniciativa para diminuir os seus trabalhos de análise e de expediente, e as declarações da Recorrente também revelam que ela sabia que não deve induzir o queixoso a retirar queixa, pelo que, a Recorrente agiu com dolo a praticar a referida conduta.
8. No recurso contencioso, a Recorrente invocou que a sua conduta teve por finalidade prestar serviços aos cidadãos com zelo e cumprir o princípio de desburocratização, porém, o que a Recorrente invocado e o que ela praticou são duas coisas diferentes, não podendo ser discutidas em conjunto.
9. Assim sendo, é muito óbvio que o acto recorrido não enferma do vício de erro nos pressupostos de facto que conduz à anulação nos termos do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
10. Na parte em que a Recorrente alegou que existe erro na aplicação da lei no acto recorrido, há provas precisas que comprovam que em 13 de Fevereiro de 2019 a Recorrente induziu o queixoso a retirar o processo de queixa já instaurado (n.º 280/2019), tal acto não corresponde à atribuição da Divisão das Relações Laborais prevista no artigo 7.º n.º 4 do Regulamento Administrativo que aprovou a organização e funcionamento da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, isto é, fiscalizar e proteger os direitos e interesses laborais, e as declarações da Recorrente também revelam que ela sabia que não deve induzir o queixoso a retirar queixa, pelo que, obviamente, o acto da Recorrente não corresponde à atribuição de fiscalizar e proteger os direitos e interesses laborais conferida por lei a esta Divisão e à Recorrente.
11. O acto de a Recorrente induzir o queixoso a retirar a queixa demonstra falta de conhecimento da atribuição de fiscalizar e proteger os direitos e interesses laborais conferida à Divisão das Relações Laborais pelo artigo 7.º n.º 4 da Organização e Funcionamento da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais e das normas essenciais reguladoras do seu serviço, e afectou a reputação da DSAL.
12. A conduta da Recorrente violou o artigo 279.º n.º 2 alínea b) e n.º 4 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
13. Assim sendo, é muito óbvio que o acto recorrido não enferma do vício e erro na aplicação da lei que conduz à anulação nos termos do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
14. Pelos acima expostos, não existem no acto recorrido o vício de erro nos pressupostos de facto e o vício de erro na aplicação da lei invocados pela Recorrente que conduzem à anulação nos termos do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas.
Pela Recorrente foram apresentadas alegações facultativas.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
Objecto do presente recurso contencioso é o despacho de 27 de Setembro de 2019, da autoria do Exm.º Secretário para a Economia e Finanças, que, em sede de recurso hierárquico, manteve a pena disciplinar de 15 dias de multa aplicada à recorrente A.
A recorrente imputa ao acto os vícios de erro nos pressupostos de facto e de errada integração dos factos na infracção ao dever de zelo.
Vejamos, começando pelo erro nos pressupostos.
A recorrente foi punida por ter induzido um queixoso, B, a desistir de uma queixa que havia formulado contra a sua entidade patronal, por via de despedimento e da inobservância das inerentes obrigações laborais.
Entende, porém, a recorrente que não induziu o queixoso a desistir da queixa, alicerçando, neste seu entendimento, o apontado erro nos pressupostos.
No fundo, está em causa saber se a prova produzida no processo disciplinar permite concluir pela referida indução, como sustenta a decisão proferida no processo disciplinar, ou se é insuficiente para alcançar essa conclusão, ou mesmo esclarecedora no sentido de a afastar, como pretende a recorrente.
Nos processos disciplinares vigora a chamada liberdade probatória, que a doutrina trata como discricionariedade imprópria, a qual, sendo conceptualmente diferente do poder discricionário, segue o mesmo regime deste, o que significa que só é sindicável judicialmente em caso de erro manifesto ou injustiça acentuada.
Pois bem, ponderando os elementos essenciais em que se baseou a decisão recorrida, afigura-se haver que admitir, por um lado, a inexistência de erro grosseiro na produção e na valorização das provas, que caucione a intervenção do tribunal. De outra banda, há que considerar a existência de elementos probatórios que apontam no sentido da ocorrência dos factos tal como a entidade recorrida os deu como provados. Com efeito, dos elementos probatórios recolhidos, documentais, por testemunho do queixoso, e mediante análise do atendimento gravado, resulta: um primeiro atendimento do queixoso, realizado em 25 de Janeiro de 2019 pela recorrente, onde esta se manifestou contra a possibilidade de sucesso da pretensão do queixoso, não sendo então aberto qualquer procedimento por infracção laboral; um novo atendimento, realizado por um outro inspector, no seguimento do qual foi aberto um procedimento por infracção laboral; a afectação à recorrente deste novo procedimento, no âmbito do qual ela pediu elementos à entidade patronal; a confrontação do queixoso, em 13 de Fevereiro de 2019, com os elementos provenientes da entidade patronal e a informação jurídica, prestada pela recorrente, de que, ante aqueles elementos, não lhe assistia o direito que reclamava, pelo que a sua queixa não tinha possibilidade de sucesso; a pergunta do queixoso sobre a viabilidade de recurso a outros elementos probatórios e a resposta da recorrente, no sentido de se tratar de uma possibilidade reduzida; a informação prestada pela recorrente ao queixoso de que devia ponderar a hipótese de uma apreciação negativa da sua pretensão por parte do superior hierárquico da recorrente, seguida da informação de que o ajudava a retirar a queixa; a apresentação pela recorrente, ao queixoso, de uma declaração escrita de retirada de queixa para ele assinar, e que ele de facto assinou.
Esta súmula de elementos não confere consistência à versão da recorrente, antes aponta no sentido da imputada indução do queixoso a retirar a sua queixa.
Soçobra, por isso, o invocado erro nos pressupostos.
Quanto à errada integração dos factos na infracção ao dever de zelo, a recorrente chama em seu auxílio o artigo 1º do DL 60/89/M, segundo o qual o Departamento da Inspecção do Trabalho ... no âmbito da inspecção do trabalho, é dotado de autonomia técnica e de independência, dispondo o seu pessoal, nos termos deste diploma e demais normas reguladoras, dos necessários poderes de autoridade.
A partir do texto desta norma, a recorrente acha que tinha o dever de explicar ao queixoso as normas da Lei das Relações de Trabalho e informá-lo sobre a falta manifesta de fundamento da sua queixa, acrescentando que lhe sugeriu, naquele momento, o cancelamento da queixa, para evitar que ele experienciasse um procedimento administrativo longo para, a final, ser confrontado com a mesma conclusão.
Crê-se, todavia, que a norma não cauciona a sugestão/indução-da retirada/cancelamento de queixa que a recorrente fez ao queixoso.
Uma coisa é prestar a informação, de cariz jurídico, sobre a falta de fundamento da queixa e sobre a sua provável improcedência. Isto caberá dentro da autonomia técnica de que fala aquela norma - embora deva salientar-se que a norma se reporta ao serviço de inspecção do trabalho, e não era isso o que estava em causa. Outra coisa, bem diversa, é persuadir ou induzir o queixoso a retirar a queixa laboral formulada contra a sua entidade patronal.
Esta última postura, além de não colher o apoio da citada norma - que, como referido, nem sequer vai dirigida à situação de instrução de processos por infracções laborais que estava em causa - também não encontra respaldo noutra qualquer disposição atinente às funções dos inspectores da DSAL, sendo que, como ficou esclarecido no processo disciplinar, também não havia instruções superiores a sugerir, aconselhar ou tolerar tal actuação.
Posto isto, haverá que concluir que o acto de induzir o trabalhador a desistir de uma queixa, que formulara por suposto atropelo aos seus direitos laborais, dificilmente se compagina com os deveres de velar objectivamente pelo cumprimento das leis e dos regulamentos no domínio das relações laborais, nomeadamente por violação da Lei das Relações de Trabalho, que cabem aos inspectores da DSAL (cf. artigos 7.° do Regulamento Administrativo 12/2016 e 4.° do Regulamento Administrativo 26/2008). Donde a integração da conduta na violação do dever de zelo, tal como definido pelo artigo 279.°, n.º 4, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
Daí que soçobre igualmente este vício imputado ao acto.
Termos em que, na improcedência dos suscitados vícios, o nosso parecer vai no sentido do não provimento do recurso.
Foram colhidos os Vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade considerada na decisão do recurso hierárquico objecto deste recurso consiste no seguinte:
1. Relativamente à conduta de “induzir o queixoso a cancelar a queixa”
(i) A recorrente negou ter cometido a conduta de induzir e, declarou solenemente na sua contestação escrita que nunca tinha pedido ou proposto ao queixoso, de forma expressa ou implícita, o cancelamento da sua queixa; e, indicou que desta gravação do encontro resulta claro que o queixoso, por sua iniciativa, pediu à recorrente para prestar assistência à elaboração de uma declaração de cancelamento, então, a recorrente, a pedido do queixoso e segundo a sua vontade, prestou assistência à colaboração de uma declaração de cancelamento (fls. 101 dos autos).
(ii) Mas, após o exame da gravação do encontro efectuado entre a recorrente e o queixoso, a partir do início da gravação até ao queixoso dizer à recorrente “faça o que sugere” (na gravação de 13 de Fevereiro, pelas 17:13:34 horas), tanto a recorrente como o queixoso, ambos não manifestaram a intensão de cancelamento da queixa, e durante o encontro, o queixoso perguntou, por várias vezes, se ainda existia outra maneira para reclamar; mas, naquela altura, quanto à resposta dada pela recorrente ao queixoso, disse naturalmente: “então, vou ajudá-lo a cancelar isto” (na mesma gravação, pelas 17:13:36 horas). Segundo este diálogo, há fundadas razões para fazer crer que a recorrente propôs ao queixoso o cancelamento da queixa. Mais, essencialmente com base neste diálogo, a DSAL deu como provado que a recorrente tinha cometido a conduta de induzir o queixoso.
(iii) Na sua declaração ou contestação escrita, a recorrente alegou ter sabido que o inspector não pode induzir o queixoso a cancelar a queixa (fls. 51 e 99).
(iv) As testemunhas, da carreira de inspector, não tinham certeza se existe orientações por escrito, mas, declaram que o tratamento de conflitos laborais é o dever devido dos inspectores, então, cada inspector deve saber que não pode induzir o queixoso a cancelar a queixa.
(v) Depois de analisados todos os pontos acima expostos, nomeadamente o diálogo da gravação e a declaração da recorrente, há fundadas razões para crer que a recorrente cometeu a conduta de “induzir o queixoso a cancelar a queixa”, e tal conduta violou os deveres que os inspectores devem cumprir. Sendo assim, a decisão da aplicação da pena de multa pelo Sr. Director da DSAL à recorrente é fundamentada na factualidade, ao invés do alegado pela recorrente que a DSAL não tem provas precisas para comprovar que a mesma cometeu o erro.
b) Do Direito
Nas suas alegações e conclusões de recurso imputa a Recorrente ao acto impugnado o vício de violação de lei, seja por violação dos pressupostos de facto em que assenta que entende que não correspondem à verdade seja porque entende que a sua actuação não violou o dever de zelo a que estava obrigada.
Vejamos então.
O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
«O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
(…)
A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
Quanto ao erro nos pressupostos.
Toda a factualidade que fundamenta a punição assenta no pressuposto de que a Recorrente informando o cidadão de que a sua pretensão dificilmente procederia induziu-o a desistir da queixa.
Do ponto (ii) da factualidade apurada consta que se concluiu que a agora Recorrente induziu o queixoso a desistir da queixa porque aquele disse “faça o que você sugere” (gravação 13.02 às 17.13.34) e a funcionária agora Recorrente responde “então, vou ajudá-lo a cancelar isto” (gravação 13.02 às 17.13.36).
Facto é uma acção ou acontecimento ocorrido.
A enumeração dos factos provados numa decisão deve conter/descrever as acções e os acontecimentos realizados de uma forma cronológica de modo a que um sujeito normal possa ter a percepção da situação real, isto é, a situação da vida e histórica, que fundamenta a decisão.
Salvo melhor opinião o elenco dos factos constantes do parecer que fundamenta a decisão recorrida não é bastante para o efeito.
Ali se haveria de ter descrito toda a situação - as acções e acontecimentos, subjacentes à situação dos autos -, nomeadamente que foi apresentada uma queixa, que no seguimento daquela foi realizada uma reunião que no decorrer dessa reunião foi dito isto e aquilo.
Dos factos deve também constar o elemento subjectivo, ou seja, a intenção com que se actuou.
Com base nesses factos se haveria depois de concluir se a Recorrente induziu o queixoso a desistir da queixa contra a vontade deste e se o fez com a vontade de não actuar como lhe era exigido ou admitindo que não estava a actuar como lhe era exigido – dolo ou negligência -.
Isto é, era necessário que fosse descrita a conduta – as acções e acontecimentos que historicamente ocorreram – e a intenção com que essa conduta foi realizada.
Induzir a praticar ou a consentir num resultado que não se desejava é uma conclusão que se retira dos factos descritos.
No caso em apreço havia que se ter descrito todos os factos que nos permitissem com a segurança jurídica necessária concluir que com a sua conduta a Recorrente induziu, constrangeu, o cidadão a desistir da queixa sem que fosse da sua vontade fazê-lo.
Da factualidade descrita remetendo-se para a gravação diz-se que às 17.13.34 o cidadão queixoso diz “faça o que você sugere”, às 17.13.36 a funcionária diz “então, vou ajudá-lo a cancelar isto” e depois diz-se que a conduta foi de induzir o queixoso a desistir da queixa. Mais se diz que tanto a Recorrente como o queixoso, ambos não manifestaram a intenção de cancelamento da queixa e que o queixoso perguntou várias vezes se ainda existia outra maneira para reclamar.
Ora, a factualidade descrita não é suficiente para se concluir que houve intenção de induzir o queixoso a desistir da queixa.
Basta atender ao pormenor de que até então ambos não falaram em desistência de queixa, pelo que, se até ali não se falou de desistência de queixa não houve qualquer indução ou sugestão da Recorrente nesse sentido.
Concluir a partir daqui que a atitude da funcionária foi a de pressionar, instigar, constranger à desistência da queixa não tem apoio na factualidade descrita.
Para se concluir pelo incitamento é preciso mais do que indagar “então vou ajudá-lo a cancelar isto?” em resposta a uma afirmação do “suposto” incitado que afirma espontaneamente “faça o que você sugere” e que vem a assentir no cancelamento.
Nas suas alegações e conclusões de recurso a Recorrente ataca a decisão recorrida indicando que o resulta da gravação às 17.13.34 e 17.13.36 não permite dar como provado que a Recorrente induziu o queixoso a desistir da queixa, o que se comprova, seja pelo visionamento da gravação nesse segmento, seja pelas razões supra expostas.
Da visualização e audição da gravação o que resulta é a interpretação dos factos agora indicada em que é o queixoso quem espontaneamente pede à funcionária para fazer o que entender uma vez que em face das explicações conclui não ter razão1.
Destarte, impõe-se concluir que a decisão recorrida não tem factos suficientes para inferir pelo alegado incitamento à desistência de queixa e subsequente violação do dever de zelo.
Assim sendo procede o invocado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto uma vez que não está provado que a Recorrente tenha instigado o cidadão queixoso a desistir da queixa.
Enfermando o acto impugnado do vício de violação de lei é o mesmo anulável nos termos do artº 124º do CPA.
Não se demonstrando a conclusão factual subjacente à decisão recorrida fica prejudicada a apreciação do demais que se alega quanto à subsunção da conduta relativamente ao dever de zelo.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso revoga-se a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isenta a entidade recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 29 de Outubro de 2020
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Mai Man Ieng
1 Opinião esta, veiculada pela funcionária que posteriormente e pelos seus superiores vem a ser confirmada como estando certa.
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1212/2019 REC CONT 1