Processo nº 166/2020 Data: 11.11.2020
(Autos de recurso jurisdicional)
Assuntos : Interdição de entrada na R.A.E.M..
Recurso contencioso.
Errada identificação do acto recorrido.
Omissão de pronúncia.
Excesso de pronúncia.
Nulidade do acórdão.
SUMÁRIO
Incorre-se em nulidade se, em sede de recurso contencioso interposto de acto administrativo que “interditou o recorrente de entrar na R.A.E.M.” (por três anos), se vier a identificar e analisar como “objecto do recurso”, um outro acto administrativo, nenhuma referência e apreciação se fazendo ao “acto – efectivamente – recorrido”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 166/2020
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, titular do passaporte do Reino Unido com o n.° XXXXXXXXX e com os restantes sinais dos autos, recorreu do despacho proferido pelo SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA, datado de 19.05.2017, que lhe interditou a entrada em Macau por 3 anos; (cfr., fls. 2 a 37 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão (de 14.05.2020, Proc. n.° 642/2017), julgando improcedente o recurso; (cfr., fls. 188 a 197-v).
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Inconformado com o decidido, traz o recorrente o presente recurso, alegando para, a final, concluir nos termos seguintes:
“A. O presente recurso vem interposto do douto Acórdão, que julgou improcedente o recurso contencioso interposto pelo ora Recorrente do despacho proferido por Sua Excelência o Secretário para a Segurança, exarado na Comunicação n.° XXXX/2017-P.°.229.01., através do qual foi imposta ao ora Recorrente a interdição de entrada no território da RAEM pelo período de três anos.
B. O Tribunal a quo não apreciou todos os vícios alegados pelo ora Recorrente na petição de recurso e nas alegações facultativas, padecendo o Acórdão recorrido de nulidade por omissão de pronúncia relativamente ao vício de nulidade da decisão de revogação da autorização de permanência e do acto em crise nos presentes autos, nulidade que se arguiu nos termos do disposto no artigo 571.°, n.° 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.° do CPAC.
C. O Acórdão recorrido é igualmente nulo por não especificar os fundamentos de Direito da decisão, nos termos do artigo 76.° do CPAC e alínea b), do n.° 1, do artigo 571.° do CPC, conjugados com o n.° 2 do artigo 562.° do mesmo Código, aplicáveis ex vi do artigo 1.° do CPAC: o Tribunal a quo não especifica as normas legais em que se baseia para decidir como decide, limitando-se a citar jurisprudência, nem se reporta tão pouco aos princípios jurídicos ou à doutrina jurídica pelos quais se norteia na decisão.
D. O Acórdão recorrido é ainda nulo por não especificação dos fundamentos de facto da decisão, nos termos do disposto no artigo 76.° do CPAC e na alínea b) do n.° 1 do artigo 571.° do CPC, ex vi do artigo 1.° do CPAC.
E. O Acórdão recorrido não segue uma linha argumentativa lógica e perceptível, pelo que não permite conhecer dos seus motivos ou razões, quer no que diz respeito ao juízo crítico sobre a matéria de facto, quer no que diz respeito à aplicação do Direito.
F. Incompreensivelmente, o Tribunal a quo enumera como factos provados uma sequência do próprio procedimento administrativo e, bem assim, os factos enunciados pela Administração na fundamentação.
G. Quanto aos factos mais relevantes para a boa decisão da causa e assentes entre as partes ao abrigo do artigo 54.° do CPAC, o Tribunal a quo não os valora nem os releva no Acórdão em crise.
H. A decisão ínsita no Acórdão não está suportada por uma base factual idónea nos termos legalmente impostos, o que implica a sua nulidade.
I. Em relação ao vício de anulabilidade por ausência total de exame crítico das provas que serviram de base para formar a convicção do tribunal, dir-se-á que o Acórdão recorrido se apresenta em claro desvio dos ditames essenciais de fundamentação.
J. Em face do exposto, conclui-se, necessariamente, pela verificação do invocado vício de nulidade da sentença, por flagrante violação do dever de fundamentação, nos termos e em conformidade com o disposto no artigo 76.° do CPAC e na alínea b) do n.° 1 do artigo 571.° do CPC, ex vi artigo 1.° do CPAC.
K. Em suma, sobre a falta de fundamentação, dir-se-á que não é, enfim, possível, pelos dados disponíveis no Acórdão recorrido, conhecer os motivos de facto que levaram o Tribunal a quo a decidir no sentido em que o fez.
L. A argumentação explanada no Acórdão recorrido não é idónea para evidenciar o iter cogniscitivo que encaminhou o Tribunal para esta decisão, em detrimento de outra.
M. Não se fundamentando no Acórdão recorrido, em matéria de facto, na sua apreciação crítica, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu no sentido decidido e não noutro, é o mesmo anulável, por deficiente fundamentação da decisão, equiparada à sua falta por inviabilizar o objectivo legal, nos termos do artigo 76.° do CPAC e n.os 2 e 3 do artigo 562.° do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.° do CPAC, consequência que prejudica a apreciação das demais questões.
Relativamente à errada aplicação do Direito pelo Tribunal a quo,
N. Ainda que os vícios invocados não procedam, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, sempre será de reconhecer que o Acórdão a quo padece de um outro vício - ilegalidade - na medida em que faz uma errada aplicação do Direito.
O. O Acórdão recorrido julgou improcedente o vício de erro nos pressupostos de facto com o fundamento de que "não nos parece que faltem pressupostos de facto para tomar a decisão em causa, pelo contrário, foi justamente por motivo destes factos ilícitos imputados ao ora Recorrente é que a Entidade Recorrida formou o juízo negativo sobre a continuada permanência do Recorrente em Macau".
P. Salvo o devido respeito, o Recorrente discorda desta conclusão vertida no Acórdão recorrido, na medida em que entende que, in casu, não se verificam os fortes indícios de o Recorrente ter praticado qualquer crime, uma vez que apenas existe a mera suspeita da prática de um crime pelo Recorrente, e, em qualquer caso, este não praticou quaisquer factos a que seja atribuída relevância penal.
Q. Acresce que, quanto ao fundo da questão, a prestação dos serviços de consultaria e apoio técnico pelo Senhor B está abrangida pela norma excepcional prevista no artigo 4.°, n.° 1, alínea 1), e n.os 2, 3 e 4 do Regulamento Administrativo n.° 17/2004;
R. No âmbito da prestação dos serviços de consultadoria, o Senhor B nunca esteve sujeito nem obedeceu a ordens e/ou instruções por parte do Recorrente;
S. o Senhor B não constituiu qualquer relação de trabalho com a C Macau, tendo apenas prestado serviços de consultoria e apoio técnico naquela sociedade, ao abrigo do contrato de prestação de serviços celebrado entre as duas partes;
T. Quanto ao Senhor D, este nunca prestou qualquer tipo de serviços e/ou actividade por conta e a mando dos funcionários e/ou responsáveis da C Macau;
U. Com efeito, o Senhor D limitava-se a aprender a forma como funcionava o novo sistema informático adquirido pelo Grupo C;
V. Nesta medida, impõe-se concluir que os serviços prestados pelos Senhores B e D não constituem a prestação de trabalho ilegal - ou, dito de outra forma, que estes indivíduos não necessitavam de autorização específica para prestar os referidos serviços -, pelo que não se mostra preenchido (pelo menos) um dos elementos objectivos do crime previsto no artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, pelo qual o Recorrente vem indiciado;
W. É forçoso concluir que o Recorrente não praticou o crime de emprego ilegal em causa nestes autos,
X. Pelo que, ao ter como pressuposto de facto a alegada prática do crime de emprego ilegal pelo Recorrente, o acto recorrido enferma do vício de violação de lei e é, por isso, anulável nos termos do artigo 125.º do CPA.
Y. Nestes termos, o Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento por assim não ter entendido e deverá ser revogado”; (cfr., fls. 205 a 232).
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Sem contra-alegações da entidade recorrida, vieram os autos a esta Instância.
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer onde, suscitando uma “questão prévia”, e pugnando pela sua procedência, opina pela devolução dos autos ao Tribunal recorrido para efeitos de reforma da decisão; (cfr., fls. 244 a 245).
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Em observância do contraditório, foram, recorrente e entidade recorrida notificados do teor do dito Parecer, na sequência do qual aos autos veio o recorrente aderir ao aí considerado; (cfr., fls. 246 e 252 a 253).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. No que toca à “matéria de facto”, o Tribunal de Segunda Instância elencou no seu Acórdão como “provado” que:
“1. O Recorrente é sócio da C Grupo Limitada (“C Macau”), sociedade comercial matriculada na Conservatória dos Registos Comerciais e de Bens Móveis, sob o nº XXXXX(SO).
2. Numa operação policial realizada no dia 14/06/2016, pelas 10H45, foram encontrados dois indivíduos de nome B e D, ambos não residentes da RAEM, a trabalharem na C Grupo Limitada (“C Macau”).
3. O B declarou perante o agente da PSP que era assessor-gerente, contratado pelo A, com o vencimento mensal no montante de USD$9,500.00, prestando serviço semanalmente 4 ou 5 dias, com a carga horária diária por volta de 3 horas.
4. Em 08/03/2017, foi determinada a recusa de entrada do Recorrente pela PSP.
5. Em 14/03/2017, o Recorrente interpôs o recurso hierárquico necessário contra a decisão da sua recusa de entrada.
6. Em 06/04/2017, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho:
“…
Em 18 de Janeiro de 2017, guarda policial deste CPSP interceptou o interessado no Posto Fronteiriço do Terminal Marítimo de Passageiros da Taipa. Conforme os elementos obtidos na investigação deste CPSP, o interessado é arguido dum caso de “emprego” e o referido caso já foi encaminhado ao Ministério Público. Segundo as circunstâncias do caso, em 14 de Junho de 2016, guardas policiais deste CPSP realizaram uma operação de inspecção em XXXX (Companhia de Logísticas C) na Taipa, durante a qual foram encontrados dois trabalhadores ilegais que confessaram que eram, respectivamente, assessor-gerente da referida companhia, com o vencimento mensal de USD$9.500,00, e formando da mesma que não recebia vencimento extraordinário mas a referida companhia lhe oferecia subsídios de alojamento, transporte e refeição. O interessado é dono da Companhia de Logísticas C, e conforme os depoimentos prestados pelas testemunhas do processo, um dos trabalhadores ilegais foi contratado directamente pelo interessado. Tendo em conta que o referido acto constitui perigo para a segurança ou a ordem pública desta Região, decido, nos termos do artigo 11.º n.º 1 alínea 3) da Lei n.º 6/2004 e no uso dos poderes subdelegados conferidos pelo Despacho do Comandante do CPSP n.º 3/CPSP/2016P, revogar a autorização de permanência do interessado e ordenar a sua saída da Região Administrativa Especial de Macau até ao dia 21 de Janeiro de 2017 (…)”; (cfr., fls. 192 a 192-v e 4 a 5 do Apenso).
Do direito
3. Como se deixou relatado, ao abrigo do estatuído no art. 157°, n.° 3 do C.P.A.C., pelo Exmo. Representante do Ministério Público vem suscitada uma “questão prévia”.
Importa, assim, sobre a mesma emitir pronúncia.
Vejamos.
Em abreviada síntese que temos como adequada, diz o Ministério Público que o Tribunal de Segunda Instância laborou em equívoco na identificação do “acto administrativo objecto do recurso contencioso” aí interposto, e que, nesta conformidade, incorreu em “nulidade” por “excesso de pronúncia”, dado que se acabou por conhecer da legalidade de um acto administrativo que não tinha sido impugnado, e, simultaneamente, por “omissão de pronúncia”, por falta de conhecimento relativamente à decisão administrativa que tinha sido (efectivamente) impugnada.
Quid iuris?
Pois bem, cabe consignar que se constata o assinalado equívoco e consequente vício.
De facto, o “acto administrativo objecto do recurso contencioso” interposto para o Tribunal de Segunda Instância é o praticado pelo Secretário para a Segurança, datado de 19.05.2017, que – como se referiu – interditou a entrada do recorrente em Macau por um período de 3 anos; (cfr., fls. 77 do P.A. em apenso).
Porém, no Acórdão recorrido – e tanto na sua decisão de facto como de direito – identifica-se como “acto administrativo recorrido”, a “decisão que revogou a autorização de permanência do recorrente na R.A.E.M.”, datada de 19.01.2017, e proferida pelo Chefe do Departamento dos Serviços de Migração do C.P.S.P.M.; (cfr., “ponto 6” da matéria de facto e fls. 8 do dito P.A.).
E, assim sendo, outra solução cremos que não existe, pois que se impõe a anulação do Acórdão proferido e agora recorrido para a sua reforma em conformidade.
Com efeito, as atrás referidas “decisões”, para além de proferidas por entidades administrativas (hierarquicamente) diferentes, (constituindo decisões totalmente autónomas e distintas), assentam em pressupostos de facto e de direito diversos, incidindo sobre matéria que não obstante próxima ou relacionada, não é equivalente, produzindo também, (necessariamente), efeitos que não se identificam: num, no acto considerado como recorrido que, revogando a autorização de permanência em Macau do recorrente, lhe retira a possibilidade de cá estar, (implicando a sua saída de Macau), e, no outro, no acto efectivamente recorrido, que interditando a sua entrada em Macau, (e tendo aquele como pressuposto), lhe impede que venha a Macau, (ou seja, que aqui entre, ainda que como mero turista).
E, nesta conformidade, a referida errada identificação do acto impugnado no Acórdão em questão, com a consequente incorrecta “análise” e “pronúncia da sua legalidade”, (fazendo-se referência não ao acto efectivamente recorrido, mas ao indevidamente considerado como tal), não pode deixar de acarretar a sua “nulidade por excesso e omissão de pronúncia”, (cfr., art. 571°, n.° 1, al. d) do C.P.C.M., aplicável por força do art. 1° do C.P.A.C.), que aqui se impõe declarar sob pena de, em consequência do aludido “desfasamento”, não ter o presente recurso (adequado) objecto, inviável se apresentando assim uma pronúncia por parte desta Instância.
Decisão
4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam anular a decisão recorrida, devendo os autos voltar ao Tribunal recorrido para, nada obstando, proceder-se à sua reforma nos exactos termos consignados.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Macau, aos 11 de Novembro de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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