打印全文
Processo n.º 300/2019 Data do acórdão: 2020-10-29
Assuntos:
– actos delinquentes praticados por croupier de casino
– turno de trabalho
– critério de contagem de crimes
– acórdão de 5 de Novembro de 2015 do Processo n.o 711/2014
S U M Á R I O

No presente recurso, é seguido o critério de contagem de crimes (por turno de trabalho) de croupier de casino já assumido materialmente e sobretudo no acórdão de 5 de Novembro de 2015 do Processo n.o 711/2014 do Tribunal de Segunda Instância.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 300/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
  – 1.a arguida e 1.a demandada civil A (A)
– 2.o arguido e 2.o demandado civil B (B)
  Não recorrentes:
– 3.o arguido e 3.o demandado civil C (C)
– assistente e demandante civil XX Macau, S.A.




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 340 a 360 do Processo Comum Colectivo n.o CR3-17-0361-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base:
– ficaram condenados a 1.a arguida A e o 2.o arguido B como co-autores materiais de 16 crimes consumados de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do Código Penal (CP), igualmente em sete meses de prisão por cada um desses crimes, em vez de inicialmente acusados 16 crimes consumados de peculato, p. e p. pelo art.o 340.o, n.o 1, do CP;
– ficaram condenados a 1.a arguida A e o 3.o arguido C (tendo este sido julgado na sua ausência, sob consentimento por ele prestado anteriormente) como co-autores materiais de 20 crimes consumados de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do CP, igualmente em sete meses de prisão por cada um desses crimes, em vez de inicialmente acusados 20 crimes consumados de peculato, p. e p. pelo art.o 340.o, n.o 1, do CP;
– em cúmulo jurídico das suas 36 penas parcelares acima referidas, ficou a 1.a arguida A condenada na pena única de dois anos de prisão efectiva;
– em cúmulo jurídico das suas 16 penas parcelares acima referidas, ficou o 2.o arguido B condenado na pena única de um ano e seis meses de prisão efectiva;
– e em cúmulo jurídico das suas 20 penas parcelares acima referidas, ficou o 3.o arguido C condenado na pena única de um ano e seis meses de prisão efectiva;
– e quanto ao pedido cível enxertado pela ofendida XX Macau, S.A., ficaram a 1.a arguida e o 2.o arguido condenados a pagar solidariamente a essa demandante a quantia total, indemnizatória de danos patrimoniais, de HKD111.000,00, equivalente à quantia de MOP114.330,00, com juros legais desde a data do próprio acórdão até integral e efectivo pagamento, e ficaram a 1.a arguida e o 3.o arguido condenados a pagar solidariamente à mesma demandante a quantia total, indemnizatória de danos patrimoniais, de HKD45.000,00, equivalente à quantia de MOP46.350,00, com juros legais desde a data do próprio acórdão até integral e efectivo.
Inconformados, vieram recorrer a 1.a arguida e 2.o arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Pretendeu a 1.a arguida, nos termos detalhadamente alegados na sua motivação apresentada a fls. 397 a 401 dos presentes autos correspondentes, a suspensão, sob a égide do art.o 48.o do CP, da execução da sua pena única de dois anos de prisão.
Enquanto alegou o 2.o arguido, na sua motivação apresentada a fls. 385 a 389 dos presentes autos, no seu essencial, o seguinte:
– as suas 16 vezes de actuação delinquente ocorreram nos seguintes cinco turnos de trabalho da 1.a co-arguida como croupier de casino da demandante civil:
– duas vezes, no turno de 3 de Novembro de 2016 (cfr. os factos provados 4 a 5);
– quatro vezes, no turno de 5 de Novembro de 2016 (cfr. os factos provados 6 a 9);
– duas vezes, no turno de 8 de Novembro de 2016 (cfr. os factos provados 10 a 11);
– três vezes, no turno de 8 de Dezembro de 2016 (cfr. os factos provados 32 a 34);
– e cinco vezes, no turno de 14 de Dezembro de 2016 (cfr. os factos provados 35 a 40);
– assim sendo, e na esteira do critério de contagem do número de crimes veiculado no acórdão do Processo n.o 711/2014 do TSI, os actos delinquentes praticados durante um mesmo turno de trabalho deveriam integrar um só crime em causa, daí que à luz do art.o 29.o, n.o 1, do CP, o 2.o arguido ora recorrente só deveria ser condenado pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de cinco (e não 16) crimes de abuso de confiança;
– e a nova pena única a achar em consequência do cúmulo jurídico das penas parcelares (a serem fixadas de novo) correspondentes a esses cinco crimes deveria ser inferior a um ano e seis meses de prisão, e susceptível da suspensão, por período não inferior a três anos, da sua execução em sede do art.o 48.o do CP.
Aos recursos, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 412 a 416v, no sentido de manutenção da decisão condenatória penal recorrida.
Subidos os recursos, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 442 a 444, opinou pela improcedência das pretensões dos dois recorrentes, embora tenha suscitado oficiosamente a devida alteração jurídica do tipo legal de abuso de confiança para o de peculato.
Notificados dessa observação oficiosa da Digna Procuradora-Adjunta, os dois arguidos recorrentes ficaram silentes – cfr. o processado de fls. 445 a 446v.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido na sua parte condenatória penal pela 1.a arguida e pelo 2.o arguido encontrou-se proferido a fls. 340 a 360 dos autos, cuja fundamentação fáctica se dá por aqui integralmente reproduzida;
2. O Ministério Público não chegou a interpor recurso do acórdão final da Primeira Instância no tangente à decisão judicial, aí tomada, de convolação do tipo legal de peculato para o de abuso de confiança;
3. Segundo a matéria de facto dada por provada em primeira instância, a 1.a arguida, na sua qualidade profissional de croupier de casino da XX Macau, S.A., em conluio com o 2.o arguido, entregou a este fichas de jogo que não devia entregar ao mesmo, por seguintes vezes, em seguintes turnos de trabalho dela em mesa de jogo:
– entrega de fichas de jogo, por duas vezes, no turno de 3 de Novembro de 2016, no valor total de HKD16.000,00 (cfr. os factos provados 4 a 5);
– entrega de fichas de jogo, por quatro vezes, no turno de 5 de Novembro de 2016, no valor total de HKD40.000,00 (cfr. os factos provados 6 a 9);
– entrega de fichas de jogo, por duas vezes, no turno de 8 de Novembro de 2016, no valor total de HKD15.000,00 (cfr. os factos provados 10 a 11);
– entrega de fichas de jogo, por três vezes, no turno de 8 de Dezembro de 2016, no valor total de HKD21.000,00 (cfr. os factos provados 32 a 34);
– e entrega de fichas de jogo, por cinco vezes, no turno de 14 de Dezembro de 2016, no valor total de HKD19.000,00 (cfr. os factos provados 35 a 40);
– tendo causado, assim, à mesma sociedade comercial ofendida, um total de HKD111.000,00 de prejuízo patrimonial.
4. De acordo com a matéria de facto dada por provada em primeira instância, a 1.a arguida, na sua qualidade profissional de croupier de casino da XX Macau, S.A., em conluio com o 3.o arguido, entregou a este fichas de jogo que não devia entregar ao mesmo, por seguintes vezes, em seguintes turnos de trabalho dela em mesa de jogo:
– entrega de fichas de jogo, por 15 vezes, no turno de 17 de Novembro de 2016, no valor total de HKD26.000,00 (cfr. os factos provados 12 a 26);
– entrega de fichas de jogo, por duas vezes, no turno de 18 de Novembro de 2016, no valor total de HKD5.000,00 (cfr. os factos provados 27 a 28);
– entrega de fichas de jogo, por duas vezes, no turno de 19 de Novembro de 2016, no valor total de HKD13.000,00 (cfr. os factos provados 29 a 30);
– e entrega de fichas de jogo, por uma vez, no turno de 8 de Dezembro de 2016, no valor total de HKD1.000,00 (cfr. o facto provado 31);
– tendo causado, assim, à mesma sociedade comercial ofendida, um total de HKD45.000,00 de prejuízo patrimonial.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
No caso dos autos, apesar da decisão judicial da Primeira Instância de convolação do tipo legal de crime de peculato inicialmente acusado para o tipo legal de crime de abuso de confiança, o Ministério Público não chegou a interpor recurso dessa decisão, e a Digna Procuradora-Adjunta suscitou a alteração oficiosa da qualificação jurídica em causa, para ser reposto o tipo legal de crime inicialmente acusado.
Ante a matéria de facto dada por provada, a 1.a arguida agiu na qualidade de croupier de casino da XX, S.A..
Assim, na esteira da posição jurídica já assumida por este TSI em diversos acórdãos de recurso sobre questão jurídica idêntica, inclusivamente no acórdão de 5 de Novembro de 2015 do Processo n.o 711/2014, seria de repor o tipo legal de peculato, inicialmente acusado.
Entretanto, em concreto falando, não é de proceder a essa reposição, por causa do resultado da votação feita pelo presente Colectivo ad quem sobre a possibilidade da reposição do tipo legal de peculato inicialmente acusado – cfr. as posições jurídicas veiculadas nas declarações de voto abaixo apendiculadas.
Portanto, há que ficar o tipo legal de crime de abuso de confiança.
Há, pois, que decidir agora do número de crimes de abuso de confiança como questão principal colocada na motivação do recurso do 2.o arguido.
Sobre essa questão, procede a pretensão deste recorrente, em face do critério de contagem de crimes (por turno de trabalho de croupier) já assumido materialmente por este TSI em caso fáctico congénere – cfr. sobretudo o acórdão de 5 de Novembro de 2015 do Processo n.o 711/2014 deste TSI, então relatado pela ora M.ma Primeira Juíza-Adjunta.
A procedência do recurso do 2.o arguido nesta questão da contagem dos crimes de abuso de confiança aproveita à 1.a arguida, por causa do nexo de comparticipação criminosa (no caso, em co-autoria material), e não deixa de aproveitar ao 3.o arguido (então julgado na sua ausência sob consentimento seu prestado anteriormente), por este ser co-autor da 1.a arguida – cfr. o art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Por isso, ante as circunstâncias fácticas provadas em primeira instância e especialmente referidas nos pontos 3 e 4 da parte II do presente texto decisório, é de passar a condenar:
– o 2.o arguido e a 1.a arguida como co-autores materiais de apenas cinco crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do CP (nota-se que embora o valor total de fichas de jogo em causa no turno de trabalho da 1.a arguida do dia 5 de Novembro de 2016 seja de valor elevado na acepção do art.o 196.o, alínea a), do CP, não se pode aplicar o tipo legal de abuso de confiança de valor elevado do art.o 199.o, n.o 4, alínea a), do CP, em desfavor dos arguidos);
– o 3.o arguido e a 1.a arguida como co-autores materiais de apenas quatro crimes de abuso de confiança do art.o 199.o, n.o 1, do CP.
E agora da medida da pena desses crimes:
Ponderadas em conjunto todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância (levando em especial conta o valor total de fichas de jogo em causa em cada um dos crimes em questão), com pertinência à medida da pena de prisão do tipo legal de abuso de confiança simples (dentro da moldura penal de um mês a três anos de prisão), aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, com consideração também das prementes necessidades da prevenção geral do crime de abuso de confiança cometido em co-autoria em casino, não se pode aplicar pena de prisão inferior a sete meses de prisão para todos esses crimes, com excepção do crime cometido durante o turno de trabalho da 1.a arguida do dia 8 de Dezembro de 2016, em co-autoria com o 3.o arguido, crime concreto este que deve passar a ser punido somente com quatro meses de prisão, por estar em causa tão-só HKD1.000,00 de ficha de jogo.
Assim sendo, e por força do princípio da proibição da reforma para pior, todos os crimes em causa só ficam punidos igualmente com sete meses de prisão, com excepção do cometido no referido turno de 8 de Dezembro de 2016, em comparticipação criminosa entre a 1.a arguida e o 3.o arguido.
Em sede de cúmulo jurídico, a operar nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, cabe observar o seguinte:
Do acima analisado quanto à contagem do número de crimes e à medida concreta das penas parcelares respectivas, resulta que a moldura penal da pena única de prisão a aplicar à 1.a arguida é de sete a 60 meses de prisão, a aplicar ao 2.o arguido é de sete a 35 meses de prisão, e a aplicar ao 3.o arguido é de sete a 25 meses de prisão.
Portanto, e em ponderação inclusivamente da personalidade de cada um dos três arguidos como tal reflectida na prática dos factos provados, acha-se por justo e equilibrado passar a condenar:
– a 1.a arguida em 20 meses de prisão;
– o 2.o arguido em 14 meses de prisão;
– e o 3.o arguido em 12 meses de prisão.
Por isso, procede o pedido de redução da pena do 2.o arguido, formulado na sua motivação, o que aproveita também à 1.a arguida e ao 3.o arguido.
Quanto à questão de suspensão da execução da pena única de prisão, rogada pelos 1.a e 2.o arguidos, realiza-se que por causa das prementes necessidades da prevenção geral do crime de abuso de confiança praticado em co-autoria em casino, a simples censura dos factos e a ameaça da execução da prisão não sejam suficientes nem adequadas para assegurar a realização das finalidades da punição, pelo que não se pode conceder o benefício de suspensão da execução da pena em sede do art.o 48.o, n.o 1, do CP.
Em suma, há que passar a condenar:
– a 1.a arguida e o 2.o arguido como co-autores materiais de apenas cinco crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do CP, em sete meses de prisão por cada um desses crimes;
– a 1.a arguida e o 3.o arguido como co-autores materiais de apenas quatro crimes de abuso de confiança do art.o 199.o, n.o 1, do CP, em sete meses de prisão por cada um dos três primeiros desses crimes, e em quatro meses de prisão pelo último desses crimes (cometido em 8 de Dezembro de 2016);
– a 1.a arguida finalmente na pena única de 20 (vinte) meses de prisão efectiva (após operado o cúmulo jurídico das suas nove penas parcelares de prisão acima referidas);
– o 2.o arguido finalmente na pena única de 14 (catorze) meses de prisão efectiva (após operado o cúmulo jurídico das suas cinco penas parcelares de prisão referidas);
– e o 3.o arguido finalmente na pena única de 12 (doze) meses de prisão efectiva (após operado o cúmulo jurídico das suas quatro penas parcelares de prisão).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso da 1.a arguida e parcialmente provido o recurso do 2.o arguido, passando a condenar:
– o 2.o arguido e a 1.a arguida como co-autores materiais de apenas cinco crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do CP, em sete meses de prisão por cada um desses crimes;
– o 3.o arguido e a 1.a arguida como co-autores materiais de apenas quatro crimes de abuso de confiança do art.o 199.o, n.o 1, do CP, em sete meses de prisão por cada um dos três primeiros desses crimes, e em quatro meses de prisão pelo último desses crimes (cometido em 8 de Dezembro de 2016);
– a 1.a arguida finalmente na pena única de 20 (vinte) meses de prisão efectiva;
– o 2.o arguido finalmente na pena única de 14 (catorze) meses de prisão efectiva;
– e o 3.o arguido finalmente na pena única de 12 (doze) meses de prisão efectiva.
Custas do recurso da 1.a arguida tudo a cargo dela, com duas UC de taxa de justiça e mil e oitocentas patacas de honorários do seu Ex.mo Defensor Oficioso, enquanto o 2.o arguido pagará um terço das custas do seu recurso, com duas UC de taxa de justiça.
Macau, 29 de Outubro de 2020.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator) (com o entendimento de que não se pode, na situação concreta dos autos, proceder à restauração do tipo legal de crime de peculato inicialmente acusado, por falta de interposição do recurso pelo Ministério Público em desfavor dos arguidos sobre esta questão).
_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto) (opino que é possível alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos, nos termos promovidos pela Digna Procuradora-Adjunta).
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta) (entendo que no caso dos autos os factos dados por provados em primeira instância não devem integrar o tipo legal de crime de peculato, tal como entendi na declaração de voto apresentada ao acórdão do TSI, de 5 de Novembro de 2015, do Processo n.o 711/2014).



Processo n.º 300/2019 Pág. 2/14