Processo nº 892/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 19 de Novembro de 2020
ASSUNTO:
- Nulidade da sentença
- Omissão da pronúncia
SUMÁRIO:
- Se o Tribunal a quo se limitou a pronunciar-se simplesmente sobre uma questão suscitada, omitindo as outras, gera a nulidade da sentença nos termos da al. d) do nº 1 do artº 571º do CPCM, por omissão da pronúncia.
O Relator
Ho Wai Neng
Processo nº 892/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 19 de Novembro de 2020
Recorrente: A Caterers Limited (Parte Contrária)
Recorrida: Padaria e Pastelaria B Limitada
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 21/04/2020, julgou-se procedente o recurso interposto pela Padaria e Pastelaria B Limitada.
Dessa decisão vem recorrer a Parte Contrária A Caterers Limited, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. O Tribunal a quo não conheceu dos factos e questões suscitadas pela Recorrente em sede administrativa e de resposta a recurso interposto pela entidade ora Recorrida, os quais que se lhe impunha analisar.
B. O Tribunal a quo limitou-se a aferir da ocorrência de concorrência desleal, tendo considerado que se “encontrava provada toda a factualidade em que a DSE ancorou a sua decisão.” - cfr. páginas 83 dos autos.
C. Como foi dado por provado pela DSE - não tendo sido objecto de impugnação por parte da Recorrida - a Recorrente é titular, em Macau, das marcas registadas sob os n.ºs N/... “X-X”, N/… “X-X HONG KONG DAY”, N/… “X-X CATERING SERVICES”, N/… “X-X PEKING GARDEN”, N/… “X-X CHIUCHOW GARDEN”, todas na classe 30, as quais são constituídas, no todo ou em parte, pelas palavras “X-X”.
D. A expressão “X-X” consiste na romanização dos caracteres chineses “XX”, os quais, por sua vez, integram as marcas registadas a favor da Recorrente na classe 35 sob os n.ºs N/… “XX”, N/… “XXX-X”, N/… “XX香港地”.
E. A caducidade do registo de algumas marcas da Recorrente em nada afecta a notoriedade e prestígio que a Recorrente alcançou junto do público em geral - que face ao nosso ordenamento, deve ser protegido independentemente de qualquer registo.
F. A notoriedade e o prestígio das marcas da Recorrente em Macau, bastariam, por si só, para conceder a necessária protecção às mesmas em Macau - isto é, além de os Tribunais de Macau já terem reconhecido que a expressão “XX” pertence à Recorrente sendo tal indissociável da sua romanização “X-X” - impeditiva do registo da marca a favor da Recorrida.
G. A decisão em apreço desconsiderou a apreciação da notoriedade, tomando por base fundamentação que se assume como contraditória e errónea.
H. A própria DSE eximiu-se de decidir sobre a notoriedade da marca da ora Recorrente, pois assumiu a existência do registo prévio de marcas a favor da recorrente, para mais tarde concluir que esses direitos prévios não eram suficientes para sustentar a decisão administrativa...
I. O Tribunal a quo andou mal ao fazer tábua rasa da argumentação vertida no processo e submissões apresentadas pela Recorrente, porquanto tinha ao seu dispor todos os elementos factuais necessários para uma correcta apreciação da notoriedade da marca da Recorrente.
J. A Recorrente é titular desde 1971 da marca registada em Hong Kong sob o n.º …, na classe 30, que inclui os caracteres chineses “XX”.
K. As caracteres chineses “XX” correspondem ao nome e às marcas que a Recorrente utiliza para se identificar no âmbito da sua actividade há mais de 60 anos e pelos quais é reconhecida pelos consumidores - também em Macau.
L. A marca com os caracteres chineses “XX” goza de notoriedade e reconhecimento em Macau, alcançado através do esforço e da qualidade dos produtos da Recorrente - que iniciou a sua actividade em 1956 (!) e, desde então, recebeu inúmeros prémios e distinções, em Hong Kong e no estrangeiro - não restando dúvidas de que a marca notória pertence à Recorrente e de que lhe é associada pelos consumidores de Macau.
M. Os Tribunais de Macau há muito que têm vindo a reconhecer a Recorrente como legítima titular da marca “XX” .
N. A título de exemplo, a concessão da marca N/… (que contêm os caracteres “XX”) foi confirmada à Recorrente por acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 3 de Novembro de 2016.
O. A 13 de Fevereiro de 2012, a Recorrida apresentou pedido de registo para a marca nominativa “XX” (N/…), para assinalar serviços da classe 43, o qual foi recusado pela DSE, por despacho publicado no BO n.º 15/2015, II Série, de 15 de Abril de 2015.
P. A 23 de Abril de 2015, a Recorrida apresentou dois pedidos de registo - para a marca nominativa “XX” (N/…) e para a marca mista “XX…” (N/…) - ambos para assinalar serviços da classe 43, tendo o primeiro sido recusado pela DSE, enquanto o segundo foi, num primeiro momento, concedido pela DSE (por despacho publicado no BO n.º 14/2018, II Série, de 4 de Abril de 2018), decisão que foi revogada pelo Tribunal Judicial de Base (por sentença de 10 de Setembro de 2018).
Q. A Recorrente opera sob as marcas “XX” e “…”, as quais foram por si criadas em 1956 (concebidas por C, um dos seus fundadores).
R. A Recorrente possui no ramo da panificação, e desde a década de 1960 (muito antes da Recorrida), a maior cadeia de padarias de Hong Kong com mais de 170 postos de vendas (e cujos bolos lunares são líderes de vendas na região vizinha).
S. A Recorrente registou diversas marcas em Macau, Hong Kong e em muitas outras jurisdições, incluindo na região da Ásia-Pacífico (origem de grande parte dos consumidores de Macau) para assinalar produtos e serviços de diferentes classes, incluindo produtos da classe 30.
T. A marca “XX” é conhecida na região da Ásia-Pacífico como resultado do esforço e do investimento da Recorrente – além da qualidade dos respectivos produtos, a Recorrente tem realizado imensas campanhas publicitárias que divulgam as suas padarias.
U. A Recorrente conquistou notoriedade e prestígio não só em Hong Kong, mas também em Macau, o que se justifica por ambas as regiões partilharem uma proximidade geográfica, cultural e comercial, não seria possível que a notoriedade e o prestígio das marcas da Recorrente em Hong Kong não extravasassem para Macau (como reconhecido pelos Tribunais de Macau em várias instâncias).
V. O conceito de consumidor de Macau comporta não apenas os residentes ou habitantes de Macau, mas também os visitantes de Macau, incluindo turistas e excursionistas.
W. Não é lógico nem aceitável afirmar que a notoriedade da marca da Recorrente não tem relevância em Macau, porque aqui não está registada, uma vez que a notoriedade da marca da Recorrente derroga a prioridade do registo.
X. Não há possibilidade de existirem duas marcas “XX” notórias em Macau ou de a marca da Recorrida ter aqui alcançado notoriedade à revelia da marca da Recorrente.
Y. A Recorrida, sem qualquer pejo, tratou de copiar as marcas da Recorrente em Macau, bem sabendo da existência e reputação da Recorrente em Hong Kong.
Z. A Recorrida abriu pastelarias em Macau que são uma cópia fiel dos estabelecimentos que a Recorrente opera em Hong Kong desde os anos 50, usando inclusivamente o mesmo logotipo.
AA. A Recorrida copiou e usurpou o negócio e as marcas da Recorrente por conhecer a sua existência e sucesso - isto, numa região geográfica e culturalmente integrada com Macau (i.e. Hong Kong).
BB. A Recorrida copiou não só a marca da Recorrente mas também o tipo de produtos (de pastelaria e padaria), o desenho das lojas, a publicidade, etc..
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Padaria e Pastelaria B Limitada respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 132 a 141 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Fundamentação
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
“...
A recorrente requereu o registo do sinal “XX” como marca para assinalar produtos da classe 30ª da classificação de Nice. A DSE recusou o registo dizendo que a sua concessão possibilitaria ocorrência de concorrência desleal por haver o risco de os consumidores confundirem os produtos assinalados com a marca registanda com os produtos que a requerida comercializa na RAEM assinalados com marcas semelhantes à registanda mas que aqui não têm protecção por aqui não se encontrarem registadas nem aqui gozarem de notoriedade ou prestígio.
A DSE considerou que a concessão do registo iria permitir à requerente aproveitar a reputação de um agente do exterior da RAEM que aqui não usa marcas aqui registadas nem marcas que aqui sejam notoriamente conhecidas ou que aqui gozem de prestígio. E considerou que isso adviria da semelhança entre a marca registanda e as marcas apostas nos produtos comercializados pela parte recorrida que aqui não têm protecção por falta de registo, notoriedade ou prestígio. E considerou ainda que esse aproveitamento advindo da confundibilidade das marcas configura concorrência desleal. No mínimo, a DSE considerou que a concessão do registo poderia causar desvios de clientela confundindo-a, pois que, quando esclarecida, seguiria rumo diferente.
A recorrente não concorda com o entendimento da DSE e apresentou o presente recurso.
A questão de Direito que se coloca nos presentes autos é a seguinte: o aproveitamento da reputação que um agente económico do exterior goza junto do público consumidor da RAEM, feito através da utilização de uma marca que possibilita a confusão com os produtos do agente do exterior, configura concorrência desleal ao ponto de justificar a recusa de concessão de um registo de marca no caso de esse agente exterior não ter aqui sinais distintivos protegidos?
Este recurso coloca, pois, apenas uma questão de direito que pode ser solucionada em abstracto e independentemente de qualquer factualidade concreta. No entanto sempre se dirá que está assente nos autos que a firma da recorrente contém o sinal registando (“XX”); que a parte contrária comercializa na RAEM produtos assinalados com marcas semelhantes à marca registanda por conterem o sinal registando; que a recorrente tem actividade comercial na RAEM há vários anos e tem aqui registadas e usa marcas compostas com o sinal registando; que a utilização da marca registanda assinalando os produtos a que se destina é susceptível de levar o público consumidor a confundir os produtos da recorrente com os da recorrida assinalados com marcas que aqui não se encontram registadas nem aqui são notoriamente conhecidas ou gozam de prestígio e que a recorrida teve marcas registadas na RAEM semelhantes à registanda que caducaram por não uso.
Isto é, está provada toda a factualidade em que a DSE ancorou a sua decisão, pelo que cabe neste recurso apenas sindicar se a DSE aplicou correctamente o Direito aos factos ao concluir que eles mostram a possibilidade de ocorrência de concorrência desleal ao ponto de ocorrer motivo de recusa do registo pedido pela recorrente.
“É fundamento de recusa da concessão dos direitos de propriedade industrial o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal ou que esta é possível independentemente da sua intenção” (art. 9º, al. c) do RJPI). A concorrência não é mais que a tentativa de aumentar a clientela própria e de reduzir a clientela dos demais concorrentes. Em última instância, todos os concorrentes pretendem ficar monopolistas e eliminar os demais concorrentes. Concorrer comercialmente é um acto naturalmente agressivo. O Direito da RAEM admite a concorrência, isto é, admite a luta pela clientela e quer que a concorrência seja leal e livre, mas não exige que seja um acto angélico ou de cortesia, nem altruísta.
A concorrência é desleal quando a disputa de clientela decorre desrespeitando as normas e os usos honestos da actividade económica (art. 158º do Código Comercial), designadamente quando a disputa é feita através da confusão dos consumidores sobre a fonte ou origem comercial dos bens (art. 159º, nºs 1 e 2 do Código Comercial). Estas normas e usos honestos impõem aos comerciantes, designadamente, que respeitem os sinais distintivos dos outros concorrentes de modo que estes possam cumprir a sua função de distinguir, que é contrária a confundir.
Do Regime Jurídico da Propriedade Industrial resulta que os agentes económicos podem requerer livremente o registo de sinais distintivos como forma de adquirirem o direito de os utilizar em exclusivo para assinalar os respectivos bens de comércio. Foi o que a recorrente fez. Até aqui, nada a censurar. Os requerentes do registo devem escolher sinais que não imitem nem reproduzam outros aqui anteriormente registados para bens semelhantes, que não estando aqui registados, aqui gozem de notoriedade e se destinem a assinalar bens semelhantes e que aqui não estejam assinalados mas aqui gozem de prestígio. Foi o que a recorrente fez, pois provou-se que a parte recorrida não é titular de tais sinais distintivos. Até aqui, também nada a censurar à recorrente.
O mal que a DSE encontrou vem a seguir: a parte recorrida usa na RAEM para assinalar os seus produtos marcas semelhantes à registanda que aqui não são protegidas em termos de direito exclusivo de utilização, pois que a protecção só pode vir do registo, da notoriedade ou do prestígio. A conclusão da DSE está certa. Conclui a DSE que a utilização simultânea das marcas não protegidas da recorrida e a marca registanda podem confundir os consumidores sobre a origem dos produtos. A conclusão da DSE está certa. A DSE conclui que isso pode causar desvios de clientela em relação ao rumo que esta seguiria se não houvesse semelhança entre as marcas usadas pela recorrida e a marca registanda. A DSE está certa. A DSE conclui que tais desvios de clientela são contra as normas e usos honestos da actividade económica e que tal situação deve motivar a recusa do registo. A conclusão da DSE não está certa.
A conclusão da DSE contraria dois princípios do Regime Jurídico da Propriedade Industrial da RAEM: o princípio da territorialidade e o princípio da eficácia constitutiva do registo. A conclusão da DSE, invertendo os dois referidos princípios, concede aqui protecção com base no uso às marcas que a recorrida tem protegidas no exterior da RAEM para recusar protecção à marca da recorrente que pretende baseada no registo. Não se rejeita que por vezes o aproveitamento de marca alheia não protegida possa configurar concorrência desleal, mas não é o caso dos autos em que a recorrida deixou aqui caducar as suas marcas por falta de uso, as mesmas que agora são protegidas no seu uso pela via da concorrência desleal. Isto é, pode não ser honesto que um comerciante tente registar marca confundível com outra não protegida, mas usada, mas já não parece desonesto que alguém requeira o registo para uso exclusivo de sinal confundível com outro sinal que alguém abandonou e ficou livre, especialmente se esse sinal integra a firma da requerente. A conclusão da DSE não está correcta: não respeita o princípio da territorialidade (art. 4º do RJPI) e concede protecção à marca da parte contrária com base no uso e não no registo, o que contende com o regime jurídico dos direitos de propriedade industrial da RAEM que é claramente “registration-based system” e não “use-based system”.
A concorrência é permitida, sendo permitido tentar e conseguir desvios de clientela. Tais desvios não podem acontecer contra as normas e usos honestos da actividade económica, designadamente causando confusão com sinais distintivos merecedores de protecção. O que sejam as normas e usos honestos da actividade económica vem sendo definido pela doutrina como o que é ditado pela consciência ética de um empresário médio. Trata-se pois de um juízo de censura de ética comercial no âmbito do comércio de livre iniciativa. Tal juízo há-de censurar o comerciante que parasita as criações alheias, mas não o que aproveita as que ele próprio criou. No caso dos autos, o sinal registando consta na firma e em marcas da recorrente e consta em sinais distintivos que a recorrida não tem protegidos na RAEM e que teve mas abandonou. Não parece que possa ser objecto de censura jurídica moldada na ética comercial que a recorrente pretenda concorrer com o sinal registando que também a ela é associado. Não pode esquecer-se que a possibilidade de haver consumidores que optem por produtos da recorrente pensando serem da recorrida é semelhante à possibilidade de os haver que optem por produtos da recorrida pensando serem da recorrente.
Esta é já a terceira vez que se aprecia conflito entre sinais da recorrente e da recorrida perspectivado sob a óptica da concorrência desleal. Sempre se decidiu que um comerciante que tenta aproveitar os seus sinais distintivos num novo sinal não actua em concorrência desleal mesmo que o sinal distintivo novo possa contender com sinais alheios.
Já em outros dois processos que envolvem recorrente e a parte recorrida assim foi decidido por este mesmo Tribunal e Juízo. Numa das situações a aqui recorrente pretendia obstar ao registo de um desenho e modelo da aqui recorrida e foi decidido que a aqui recorrida não operava em concorrência desleal ao pretender aproveitar os seus sinais distintivos embora pudessem contender com a aqui recorrente. Na outra situação era a aqui recorrida que impugnava a concessão do registo à aqui recorrente.
Reproduz-se o que então se referiu no último dos referidos processos numa altura em que a aqui recorrida ainda não vira declarada a caducidade das suas marcas:
“3. Da possibilidade de concorrência desleal.
Dispõe o art. 9º, nº 1, al. c) que é fundamento de recusa da concessão dos direitos de propriedade industrial o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção.
Para ser recusado o registo com fundamento em concorrência desleal é necessário que se reconheça que o requerente do registo pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção (arts. 9º, nº 1, al. c) e 214º, nº 1, al. a)).
O acto de concorrência desleal é o acto de disputa de clientela que é contrário às normas e usos honestos da actividade económica, designadamente o que seja idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos e o que configure aproveitamento da reputação empresarial de outrem (cfr. Arts. 158º, 159º e 165º do Código Comercial). É comum na doutrina a indicação de 5 tipos de actos de concorrência desleal: actos de confusão, actos de descrédito, actos de apropriação, actos de desorganização e actos de concorrência parasitária. Porém é suficiente para qualificar um acto de concorrência desleal a cláusula geral inserta no art. 158º do Código Comercial: contrariedade objectiva às normas e usos honestos da actividade económica, normas e usos que a doutrina vem reportando aos que são ditados pela consciência ética de um comerciante médio e pelo princípio da prestação.
A técnica legislativa utilizada, recorrendo a uma cláusula geral e a exemplos, obriga o intérprete aplicador a procurar subsumir sempre os actos em apreciação à “cláusula geral”, mesmo que sejam também subsumíveis aos exemplos previstos. Isto quer dizer, por exemplo, que nem todo o acto susceptível de causar confusão ou aproveitamento de reputação alheia é automaticamente considerado objectivamente contrário às norma e usos honestos da actividade económica. Para ser considerado desleal o acto de concorrência, a confusão e o aproveitamento de reputação alheia têm de exceder os limites impostos por aquelas normas e usos. O exercício da concorrência é, por natureza, agressivo. Visa vencer os concorrentes. Não se trata de cortesia. A vida comercial respeitadora das normas e usos honestos da actividade económica não é apenas a que é angélica. A agressividade é conatural à concorrência comercial. Imprescindível para que não seja desleal é que se contenha dentro dos limites ditados pelas regras pertinentes.
“A ideia motriz da concorrência é a de que as prestações dos vários operadores económicos se devem defrontar no mercado com o mínimo de constrangimentos, para que vença o melhor. Fala-se da concorrência pelo mérito. Se a vitória for devida a outros factores, a concorrência é falseada. A este critério se chama o princípio da prestação”. A concorrência decide-se pelas prestações em presença do consumidor. Sendo a concorrência que se deseja uma concorrência de prestações, a empresa tem de vencer pela superioridade das suas prestações.
O exercício da concorrência visa aumentar a clientela própria e/ou reduzir a clientela alheia. Este exercício deve, nos termos da lei, ser livre e leal (arts. 153º e segs. do Código Comercial). As marcas de comércio são instrumentos de concorrência porque visam atrair a clientela e só podem ser utilizadas pelo seu titular e por quem este autorizar, excluindo todos os demais da sua fruição.
A atribuição à requerente do registo de um exclusivo sobre o sinal “…” para assinalar produtos da classe 29ª possibilitará concorrência desleal por lhe permitir um favorecimento na disputa de clientela que vai para lá da consciência ética de um empresário médio ou do princípio da prestação? Poderá tal exclusivo de utilização do sinal para assinalar produtos da classe 29ª converter-se num instrumento de concorrência que funciona para lá do limite das normas e usos honestos da actividade económica? Não podemos esquecer que o sinal registando faz parte da própria firma da requerente do registo, que está sedeada na RAEM onde pretende o exclusivo advindo do direito de marca.
A concorrência é permitida e protegida no nosso sistema jurídico. Em última análise, a concorrência visa eliminar concorrentes e tem um desígnio monopolista que não pode, apenas por pudor, ser omitido. A regulação da concorrência mais não visa que assegurar que tal desígnio seja perseguido de forma leal e livre. Mas a lealdade na concorrência não significa que esta tenha de ser dotada de uma pureza cândida. Os concorrentes, na tentativa de se eliminarem mutuamente, podem aproveitar-se validamente de todas as vantagens que não vão contra as normas e os usos honestos da actividade económica, actividade que não é, como se disse, angélica.
Não pode haver pruridos em afirmá-lo: são admitidos actos parasitários e de confusão em medida que não exceda o limite ditado pelas normas e usos honestos da actividade económica. Por exemplo, um comerciante que instala o seu estabelecimento comercial próximo de outro que tem sempre muita clientela ou junto a um local muito visitado por turistas e muito promovido pelas entidades públicas responsáveis pelo turismo para assim melhor se promover e que refere na sua publicidade que as suas instalações se situam junto ao estabelecimento alheio muito conhecido ou ao monumento turístico famoso está a aproveitar-se de reputação alheia e não de qualquer mérito seu. No entanto, tal aproveitamento está contido nos limites ditados pelas normas e usos honestos da actividade económica.
Voltemos ao caso dos autos. A requerente do registo deve prescindir de utilizar a sua firma, ou parte característica dela, nas suas marcas pelo facto de alguém poder associar as marcas à recorrente ou por haver risco de alguém poder convencer-se que os bens assinalados com tal marca provenham da recorrente? Crê-se que só no âmbito de outra disciplina da concorrência que não a que actualmente vigora na RAEM.
Em processo recente foi decidido da mesma forma sendo a aqui recorrente a pretender utilizar a sua firma em desenho e modelo e a aqui recorrida a opor-se alegando concorrência desleal. Ali se disse: “quer a recorrente, quer a requerente do registo em apreço têm “…” como sua denominação social.
Não parece merecer dúvidas que a utilização, … é susceptível de causar confusão com a recorrente e os seus produtos levando alguns consumidores a pensar que se trata de produtos da recorrente …. E também não parece merecer dúvidas que possa haver consumidores que escolham tais produtos devido à reputação da recorrente. Por outro lado, é a mesma, em abstracto, a possibilidade de os consumidores se convencerem que se trata da requerente do registo e dos seus produtos.
Seja a norma da referida cláusula geral perspectivada pela consciência ética do empresário médio, que não há-de querer prevalecer-se da reputação alheia, mas também não há-de querer desperdiçar a sua própria reputação que granjeou na sua actividade; seja aquela norma perspectivada pelo princípio da prestação reportada à … que a requerente do registo criou, a conclusão será a mesma: a utilização … com inclusão do sinal” registando “não contende com as normas e os usos honestos da actividade económica, nada se vendo que imponha à requerente do registo que se abstenha de utilizar a parte característica da sua denominação social no exercício da concorrência”.
Se ao incluir a sua firma na sua marca a requerente do registo beneficiar de um desvio de clientela pelo facto de a marca registanda poder ser associada à recorrente, tal desvio de clientela é assumido pela lei como decorrendo do regular jogo da concorrência e, como tal, aceite. Na verdade, é dos usos honestos e das normas da actividade económica o uso da própria firma noutros sinais distintivos do comércio, designadamente para assinalar produtos comercializados pelo detentor da firma (art. 21º do Código Comercial e arts. 214º, nº 2, al. e); 173º, al. b); 240º, nº 2, al. b) do RJPI)”.
Vale aqui a razão de decidir acabada de reproduzir, pelo que se conclui que não se verifica o motivo de recusa em análise, pois que se entende que a utilização que a recorrente possa fazer do sinal registando como marca para assinalar produtos da classe 30ª não é susceptível de configurar concorrência desleal.
Como não se vê que ocorram outros motivos de recusa do registo impugnado, além do que a DSE invocou, cabe concluir que procede o recurso.
*
DECISÃO
Pelo exposto decide-se julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida substituindo-a por outra que concede à recorrente o registo pretendido sobre o sinal “XX” para assinalar os produtos da classe 30ª para que foi requerido.
Custas pela parte recorrida.
Registe e notifique.
Oportunamente cumpra o disposto no art. 283º do RJPI.
…”
Salvo o devido respeito, não nos parece que a solução do presente litígio possa ser feita duma forma tão simples, “independentemente de qualquer factualidade concreta”, tal como é afirmada pela decisão recorrida.
Dispõe o artº 214º do RJPI que:
Artigo 214.º
(Fundamentos de recusa do registo de marca)
1. O registo de marca é recusado quando:
a) Se verifique qualquer dos fundamentos gerais de recusa da concessão de direitos de propriedade industrial previstos no n.º 1 do artigo 9.º;
b) A marca constitua, no todo em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória;
c) A marca, ainda que destinada a produtos ou serviços sem afinidade, constitua reprodução, imitação ou tradução de uma marca anterior que goze de prestígio em Macau, e sempre que a utilização da marca posterior procure tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca ou possa prejudicá-los.
2. O pedido de registo também é recusado sempre que a marca ou algum dos seus elementos contenha:
a) Sinais que sejam susceptíveis de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina;
b) Reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem, para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor, ou que compreenda o risco de associação com a marca registada;
c) Medalhas de fantasia ou desenhos susceptíveis de confusão com as condecorações oficiais ou com as medalhas e recompensas concedidas em concursos e exposições oficiais;
d) Brasões ou insígnias heráldicas, medalhas, condecorações, apelidos, títulos e distinções honoríficas a que o requerente não tenha direito, ou, quando o tenha, se daí resultar o desrespeito e o desprestígio de semelhante sinal;
e) A firma, nome ou insígnia de estabelecimento, ou apenas parte característica dos mesmos, que não pertençam ao requerente ou que o mesmo não esteja autorizado a utilizar, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou confusão;
f) Sinais que constituam infracção de direitos de autor ou de propriedade industrial.
3. O facto de a marca ser constituída exclusivamente por sinais ou indicações referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 199.º não constitui fundamento de recusa se aquela tiver adquirido carácter distintivo.
4. O interessado na recusa do registo da marca a que se refere a alínea b) do n.º 1 só pode intervir no respectivo processo quando prove já ter requerido em Macau o respectivo registo ou o faça simultaneamente com o pedido de recusa.
5. O interessado na recusa do registo da marca a que se refere a alínea c) do n.º 1 só pode intervir no respectivo processo quando prove já ter requerido em Macau o respectivo registo para os produtos ou serviços que lhe deram grande prestígio, ou o faça simultaneamente com a reclamação.
Por sua vez, o artº 215º do RJPI consagra que:
Artigo 215.º
(Reprodução ou imitação de marca)
1. A marca registada considera-se reproduzida ou imitada, no todo ou em parte, por outra, quando, cumulativamente:
a) A marca registada tiver prioridade;
b) Sejam ambas destinadas a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins;
c) Tenham tal semelhança gráfica, nominativa, figurativa ou fonética com outra que induza facilmente o consumidor em erro ou confusão ou que compreenda um risco de associação com marca anteriormente registada, de forma que o consumidor não as possa distinguir senão depois de exame atento ou confronto.
2. Considera-se reprodução ou imitação parcial de marca, a utilização de certa denominação de fantasia que faça parte de marca alheia anteriormente registada, ou somente do aspecto exterior do pacote ou invólucro com as respectivas cores e disposição de dizeres, medalhas e recompensas, de modo que pessoas analfabetas os não possam distinguir de outras adoptadas por possuidor de marcas legitimamente utilizadas.
Como se vê, a concorrência desleal, um dos requisitos gerais previstos na al. c) do nº 1 do artº 9º do RJPI, constitui simplesmente um dos fundamentos da recusa do registo da marca nos termos do artº 214º do RJPI.
No caso em apreço, a Parte Contrária A Caterers Limited, na sua resposta ao recurso judicial interposto pela Padaria e Pastelaria B Limitada, suscitou, além da concorrência desleal, ainda a notoriedade e prestígio das suas marcas, a marca registanda contém elementos que constituem imitação ou reprodução das suas marcas anteriormente registadas, bem como o risco da associação.
Para o efeito, alegou os factos para suportar a sua posição.
O Tribunal a quo limitou-se a pronunciar sobre a questão da concorrência desleal, quanto as demais questões, as omitiu completamente, o que viola o nº 2 do artº 563º, gerando assim a nulidade da sentença nos termos da al. d) do nº 1 do artº 571º, todos do CPCM.
Como não foi fixada a matéria de facto pertinente para a solução do caso, não resta outra alternativa senão baixar os autos ao Tribunal a quo para novo julgamento.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, declarando a nulidade da sentença recorrida, determinando a baixa dos autos para novo julgamento.
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Custas pela parte vencida no final.
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 19 de Novembro de 2020.
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
Rui Pereira Ribeiro
16
892/2020