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Processo n.º 767/2020 Data do acórdão: 2020-12-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– burla em valor consideravelmente elevado
– prejuízo pecuniário não inferior a 150 mil patacas
– art.o 196.o, alínea b), do Código Penal
– art.o 211.o, n.o 4, alínea a), do Código Penal
S U M Á R I O

Basta a comprovação de que o prejuízo pecuniário da pessoa ofendida foi não inferior a cento e cinquenta mil patacas no momento da prática dos factos pela arguida recorrente, condenada em primeira instância por prática de crime de burla em valor consideravelmente elevado, previsto na alínea a) do n.o 4 do art.o 211.o do Código Penal, para garantir a verificação cabal do conceito legal de “valor consideravelmente elevado” definido na alínea b) do art.o 196.o do mesmo Código, com relevância para a integração daquele tipo legal de delito.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 767/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 1121 a 1165v do Processo Comum Colectivo n.° CR2-20-0100-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida desse processo chamada A ficou condenada:
– como autora material de seis crimes consumados de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 4, alínea a), do Código Penal (CP), em quatro anos de prisão por cada um deles, sendo pessoas ofendidas respectivas a Sr.a B, a Sr.a C, a Sr.a D, a Sr.a E, a Sr.a F e a Sr.a G;
– como autora material de mais outros cinco crimes consumados de burla em valor consideravelmente elevado, em seis anos de prisão por cada um deles, sendo pessoas ofendidas respectivas a Sr.a H, a Sr.a I, a Sr.a J, o Sr. K e a Sr.a L;
– e ainda como autora material de um crime consumado de burla simples, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do CP, em um ano e seis meses de prisão, sendo o respectivo ofendido o Sr. M;
– e, em cúmulo jurídico das doze penas de prisão acima referidas, finalmente na pena única de dez anos de prisão;
– para além de ser condenada no pagamento de diversas quantias indemnizatórias civis arbitradas oficiosamente, e como tal especificadas no ponto 5 do dispositivo do próprio acórdão, com juros legais desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformada, veio recorrer essa arguida para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na motivação apresentada a fls. 1214v a 1221v dos presentes autos correspondentes, que:
– a sua conduta relativamente a cada uma das pessoas ofendidas em causa, por falta da verificação do emprego de astúcia para as induzir em erro, não pode integrar o tipo legal de burla, pelo que deve ser ela absolvida de todos os crimes de burla por que vinha condenada em primeira instância;
– e especialmente falando sobre os factos provados 216 e 217, estes dois não referem que a recorrente empregou astúcia sobre a ofendida G, pelo que deve ela ser absolvida do crime de burla em valor consideravelmente elevado sobre essa ofendida;
– e fosse como fosse, no respeitante às ofendidas D, C, H, I, ao ofendido K, à ofendida L e à ofendida G, a matéria de facto provada não especificou quais os montantes concretos de prejuízos pecuniários sofridos por cada uma dessas pessoas, pelo que por força do princípio de in dubio pro reo, sempre deveria ser convolado o tipo legal de burla em valor consideravelmente elevado para o de burla simples, em relação a cada uma dessas pessoas;
– e ainda sobre os factos provados em relação à ofendida G, o Tribunal recorrido teria violado o princípio de in dubio pro reo, ao ter julgado como provados os factos 216, 217 e 229, pelo que nesta perspectiva, também deveria a recorrente ser absolvida do crime de burla em valor consideravelmente elevado contra essa ofendida;
– e finalmente, sempre seria de imputar à decisão condenatória penal recorrida o problema de excesso na medida das penas parcelares e da pena única (até porque muitas das pessoas referidas na factualidade dada por provada em primeira instância chegaram a ganhar vantagens através da conduta da própria recorrente de cambiar moeda estrangeira), a fim de serem reduzidas todas as penas parcelares de quatro anos de prisão para dois anos e nove meses de prisão apenas, todas as penas parcelares de seis anos de prisão para somente três anos e nove meses de prisão, e a pena única de dez anos de prisão para tão-só seis anos de prisão.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 1231 a 1239 (cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido), opinando pela procedência do recurso apenas na parte respeitante à pretendida absolvição do crime de burla contra a ofendida G.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 1275 a 1278 (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido), no sentido também da procedência do recurso somente no referente ao pedido de absolvição do crime contra a referida ofendida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido consta de fls. 1121 a 1165v, cujo teor integral (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
De entre todos os seus doze crimes de burla por que vinha condenada em primeira instância, a arguida ora recorrente focou a sua motivação mais no crime contra a ofendida G, alegando sobretudo que como os factos provados 216 e 217 não referem que ela empregou astúcia sobre essa ofendida, ela deve ser absolvida do crime de burla em valor consideravelmente elevado sobre essa ofendida.
Pois bem, no entendimento do presente Tribunal de recurso, como dos factos provados n.os 216, 217 e 229 respeitantes a essa ofendida – segundo os quais a arguida pediu emprestar a essa ofendida dinheiro para pagar dívida e essa ofendida acreditou logo nas palavras da arguida – não se pode deduzir realmente que a recorrente tenha usado qualquer astúcia no sentido de fazer induzir essa ofendida em erro na tomada de decisão de proceder à hipoteca imobiliária referida no facto provado 216 para auxiliar a própria recorrente a pagar dívida de três milhões de dólares de Hong Kong (aliás, de acordo com o depoimento prestado por essa ofendida na audiência de julgamento em primeira instância, e sumariado no 2.o parágrafo da página 72 do texto do acórdão recorrido, a fl. 1145v dos autos, essa ofendida declarou que ela estava disposta a emprestar dinheiro à arguida, porque tinha relação de boa amizade com a arguida), esses mesmos três factos não podem relevar para efeitos de condenação da arguida recorrente no crime de burla em valor consideravelmente elevado contra a mesma ofendida.
Assim sendo, fica prejudicada a subsidiariamente assacada questão de violação do princípio de in dubio pro reo, no julgamento, feito pelo Tribunal recorrido, dos factos como provados sob os n.os 216, 217 e 229, respeitantes à mesma ofendida.
Entretanto, já relevam concretamente para fundar a condenação dela nesse mesmo crime os factos provados 212, 213, 214 e 215, os quais referem, conjugadamente, que a mesma ofendida G – por ter acreditado nas palavras falsamente ditas pela arguida acerca da sua capacidade de cambiar moeda estrangeira com taxa de câmbio mais favorável do que a praticada no mercado (já que a arguida, para conquistar a confiança dela, chegou a cambiar, no período do segundo semestre de 2015 a Março de 2018, por diversas vezes, moeda estrangeira a favor dela por taxa de câmbio mais favorável do que a praticada no mercado) – chegou a entregar, em Abril a Outubro de 2018, por sete vezes, sucessivamente, dinheiro à arguida, num total de MOP277.500,00 e de HKD90.000,00, para a arguida trocar por renminbis, yen japonesa e moeda de Taiwan, etc., mas a arguida, decorrido o prazo prometido de entrega de moeda estrangeira, acabou por não entregar ainda a ela moeda estrangeira correspondente.
São esses quatro factos provados e os factos provados 227 e 230 que suportam a condenação da arguida pela prática de um crime de burla em valor consideravelmente elevado sobre a mesma ofendida G, pelo que a arguida não pode ser absolvida deste crime por que já vinha condenada em primeira instância.
Por outro lado, alegou a arguida que da matéria de facto dada por provada em primeira instância, não resultou provado que ela tenha usado estratagema ou astúcia para enganar todas as pessoas ofendidas penais em causa.
Contudo, realiza o presente Tribunal de recurso que a matéria de facto descrita como provada na fundamentação fáctica do acórdão recorrido espelha bem que a arguida empregou realmente estratagema ou astúcia para fazer com que todas as pessoas ofendidas nos doze crimes de burla por que ela vinha condenada em primeira instância tenham passado a acreditar nas palavras falsas dela sobre a capacidade de ela própria poder cambiar moeda estrangeira com taxa de câmbio mais favorável do que a praticada no mercado.
A título de exemplo, nomeadamente quanto à ofendida D, pode referir-se aos factos provados 1, 2, 4, 11, 15, 17, 25 e 28, sendo de frisar que o facto provado 2 apontou, nele, qual o estratagema usado pela arguida para conquistar a confiança da parte ofendida.
Por outra banda, não deixou a recorrente de alegar que a matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido não permite fazer saber quais os montantes concretos de prejuízos pecuniários sofridos, nomeadamente, pelas pessoas ofendidas D, C, H, I, K e L.
Mas, nesta parte, a razão também não assiste à recorrente, tal como perspicazmente já se observou no ponto 3 da resposta do Ministério Público ao recurso (a fl. 1236, de acordo com o qual: “Ainda que no douto acórdão recorrido não consta o valor concreto dos prejuízos de cada um dos ofendidos, mas cada caso é determinável consoante o valor entregue e a taxa do câmbio prometido e nalguns dos casos valor parcial restituído.// É uma mera questão matemática que, razão pela qual, o douto Tribunal a quo não teve qualquer dificuldade para computar o valor das respetivas indemnizações”) e no último parágrafo da página 4 do judicioso parecer emitido neste TSI (a fl. 1276v).
Com efeito, o facto provado 227 não é nada de conclusivo, mas sim tem alicerce em diversos outros factos provados, pelo que não pode haver lugar a convolação dos correspondentes crimes de burla em valor consideravelmente elevado para o tipo legal de burla simples.
Isto, aliás, também porque basta a comprovação de que o prejuízo pecuniário de cada uma das pessoas ofendidas referidas em questão foi não inferior a cento e cinquenta mil patacas no momento da prática dos factos pela arguida, para garantir a verificação cabal do conceito legal de “valor consideravelmente elevado”, definido na alínea b) do art.o 196.o do CP, com relevância para a integração do tipo legal do delito de burla em valor consideravelmente elevado, previsto na alínea a) do n.o 4 do art.o 211.o do CP.
Resta ver agora da questão da medida da pena:
O crime de burla simples do n.o 1 do art.o 211.o do CP é punível com prisão até três anos, enquanto o crime de burla em valor consideravelmente elevado da alínea a) do n.o 4 do mesmo art.o 211.o é punível com prisão de dois a dez anos.
Vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida concreta da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, tendo também em conta as prementes exigências de prevenção geral, não se vislumbra que haja injustiça notória na graduação, pelo Tribunal recorrido, das penas de prisão aos doze crimes de burla por que vinha condenada a arguida em primeira instância (sendo de frisar que o facto de que muitas das pessoas referidas na factualidade provada chegaram a ganhar vantagens através da conduta da própria recorrente de cambiar moeda estrangeira não tem a pretendida virtude de fazer reduzir a dose da pena a aplicar a cada um dos crimes de burla em questão, dado que tais vantagens constituem objecto de estratagemas usados pela arguida para conquistar a confiança das pessoas nas palavras falsas dela própria sobre a sua capacidade de cambiar moeda estrangeira com taxa de câmbio mais favorável à praticada no mercado).
Por fim, quanto à pena única dos doze crimes de burla em causa: com ponderação, em global, sobre todos os factos provados em primeira instância e a personalidade da arguida neles reflectida, é mais equilibrado passar a condenar a arguida recorrente em oito anos e seis meses de prisão única, nos termos mormente do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, passando, por conseguinte, a condenar a arguida em oito anos e seis meses de prisão única, resultante do novo cúmulo jurídico das penas aplicadas no acórdão recorrido aos seus doze crimes de burla já especificados no dispositivo do mesmo aresto recorrido, sendo intacta toda a decisão de arbitramento oficioso de indemnização aí já tomada pelo Tribunal recorrido.
Pagará a arguida três quartos das custas da presente lide recursória, e seis UC de taxa de justiça por causa do decaimento parcial do recurso.
Comunique a presente decisão a todas as pessoas referidas no dispositivo do acórdão recorrido.
Macau, 10 de Dezembro de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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