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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 26 de Junho de 2008, negou provimento ao recurso interposto pelo 3.º arguido A, e rejeitou os recursos interpostos pelos 1.º e 2.º arguidos, respectivamente, B e C, da decisão do Tribunal Colectivo do Tribunal Criminal que os condenou na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de extorsão, previsto e punível pelo art. 215.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) do Código Penal.
O Ministério Público interpõe recurso para este Tribunal de Última Instância (TUI), na parte em que o TSI manteve a condenação do arguido A, formulando as seguintes conclusões:
1ª - Esta Segunda Instância manteve a condenação do arguido A, pela co-autoria do crime de extorsão qualificada, previsto e punido no art. 215°, nº. 2, al. a), do C. Penal;
2ª - Tal condenação não pode aceitar-se; na verdade,
3ª - Os elementos constitutivos do crime em causa não constam da matéria de facto fixado; aliás,
4ª - O acórdão recorrido baseou-se, para o efeito, em matéria meramente conclusiva; sendo que,
5ª - Essa matéria não tem apoio na demais factualidade dada como provada;
6ª - Decidindo de forma contrária, o douto acórdão violou a disposição supracitada.
Os arguidos A e C recorrem, também.
Na resposta à motivação destes recursos o Ex.mo Procurador-Adjunto suscitou a questão prévia da intempestividade dos recursos e, subsidiariamente, a rejeição dos mesmos recursos.
Os arguidos A e C consideram que os seus recursos são tempestivos porque a não apresentação no prazo legal se deve a os arguidos estarem presos, o que constitui justo impedimento.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida.

II – Os factos
As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados:
Como o ofendido D é advogado, o arguido B, no dia 23 ou 24 de Outubro, deslocou-se ao gabinete do ofendido no interior da China, pedindo-lhe para tratar os assuntos a respeito da herança.
Uma semana depois, o ofendido atendeu ao telefonema de E, que alegou ser patrão do arguido B, insistindo que o ofendido D fosse a Macau, tendo prometido suportar todos os seus encargos (HK$35.000,00).
Em 16 de Novembro de 2006, o ofendido D veio a Macau de avião. O arguido B, levado pelo motorista F, foi ao aeroporto de Macau para receber o ofendido. Mais tarde, o motorista levou-os ao [Hotel (1)], tendo sido o ofendido alojado no quarto n.° XXXX.
O arguido B acompanhava o ofendido D no jantar e depois na visita ao Casino. O ofendido D regressou ao seu quarto às 1h00.
No dia seguinte, às 9h00 do dia 17 de Novembro de 2006, o arguido B foi ter com o ofendido para tomarem pequeno almoço, na altura em que aquele atendeu a chamada de E, e disse ao ofendido que o seu patrão os chamou para irem à sua empresa.
Depois, o arguido B e ofendido D entraram [Hotel (2)] num quarto do suite n.º XXXX, onde estavam presentes E, a arguida C (apresentada como secretária de E, de apelido G), e um indivíduo desconhecido (H). Tendo sido apresentado a E, o ofendido começou a conversar com este no que diz respeito à herança.
Mais tarde, quando estes entraram na sala de estar, apareceu I. Depois estes jogavam às cartas em conjunto.
No fim da jogada, o ofendido D perdeu RMB1.249.000,00. Pelo que I, concertado com o arguido B, C e o suspeito E e H, exigiu que o ofendido assinasse uma declaração de dívida, assim fez o ofendido.
Posteriormente, I examinou os sacos da roupa do ofendido D, tirando dai o seu cartão de advogado, o bilhete de identidade da R.P.C, o passaporte de visita e três cartões do [Banco (1)], e encerrando-o num quarto do suite.
Os referidos arguidos e o interveniente inclusivamente I alegaram ao ofendido D que não pode deixar o quarto sem liquidar a quantia em dívida. Como o ofendido D não conseguia ligar para o interior da China com o seu telemóvel, I lhe emprestou o seu telemóvel para este telefonar os seus familiares a fim de fazer remessas de dinheiro. O ofendido D, tendo sido aterrorizado, telefonou os seus familiares.
Tendo recebido o telefonema do ofendido D, os seus familiares remeteram, três vezes, o montante total de RMB190.000,00 para a conta bancária n.o XXXXXXXXXXXXXXXXX do [Banco (2)], respectivamente são: a primeira quantia de RMB50.000,00, a segunda quantia de RMB100.000,00 e a terceira quantia de RMB40.000,00.
I utilizou os cartões bancários encontrados na posse do ofendido D para levantar dinheiro, tendo substituído a primeira declaração da dívida por outra declaração em que se especificou o montante de RMB1.010.000,00 devido pelo ofendido D. Além disso I ordenou que este pagasse RMB210.000,00 até ao dia 18 de Novembro de 2006, devendo a quantia remanescente ser paga até ao dia 22 de Novembro de 2006. Para isso, os familiares do ofendido D remeteram RMB100.000,00 para a referida conta bancária às 8h23, do dia 18 de Novembro de 2006.
Em 17 de Novembro de 2006, cerca das 17h18, estes compraram um bilhete de avião para o ofendido D. Mais tarde, o arguido B contactou de novo o motorista F, para este levar o ofendido ao aeroporto de Macau, tendo lembrado o ofendido que iria despachar o pessoal para cobrar a divida remanescente no caso da falta do pagamento voluntário.
I mandou o arguido A guardar a referida declaração de dívida.
A partir de Junho de 2005, o arguido A tomou-se namorado da arguida C, coabitando com esta em Macau. Posteriormente, o arguido A chegou a conhecer I, por intermédio da arguida C.
A arguida J é irmã mais velha da arguida C. A arguida J morava com a sua irmã e o arguido A na [Endereço (1)].
Nas diligências de investigação realizadas em 19 de Novembro de 2006, das buscas efectuadas na residência dos referidos arguidos, foram encontrado, para além do vários cartões SIM e algum dinheiro, onze bilhetes de identidade de Hong Kong:
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é K.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é L.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é M.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é N.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é O.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é P.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é Q.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador.é R.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é S.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é T.
- n.º XXXXXXX(X) - cujo portador é U.
Após o exame, foi comprovado que os ditos documentos de identificação foram emitidos pela autoridade de Hong Kong.
Na mesma residência, foram encontrados os seguintes Bilhetes de Identidade.
- um bilhete de residência da R.P.C rasgado, n.° XXXXXXXXXXXXXXX, cujo portador é V.
- um bilhete de residência da R.P.C rasgado, n.º XXXXXXXXXXXXXXXXXX, cujo portador é W.
- um passaporte da R.P.C rasgado, n.º XXXXXXXXX, cujo portador é X.
- um passaporte da R.P.C rasgado, n.º XXXXXXXXX, cujo portador é Y.
- um bilhete de identidade de Hong Kong n.º XXXXXXX(X), cuja portadora é Z.
Após o exame, foi comprovado que os ditos documentos de identificação foram falsificados.
Foram ainda encontrados os seguintes documentos num saco:
- um bilhete de identidade de Hong Kong n.º XXXXXXX(X), cujo portador é AA.
- um salvo-conduto das deslocações para o interior da China, n.º XXXXXXXXXXX, cujo portador é AA.

Após o exame, foi comprovado que os ditos documentos de identificação foram falsificados e alterados.
Nas buscas efectuadas no referido apartamento, os policias para além de encontrar os cartões bancários, viram que C deitou para fora da janela do quarto uns documentos comprovativos, enquanto deteve na mão uns documentos, que nomeadamente são os seguintes.
- um BIR de Hong Kong n.º XXXXXXX(X), cujo portador é I
- um passaporte da R.P.C n.º XXXXXXXX, cujo portador é AB.
- um salvo-conduto das deslocações para o interior da China n.º XXXXXXXXXXX, cujo portador é I.
Após o exame, foi comprovado que os referidos documentos comprovativos foram falsificados.
O policia encontrou na mala de C, para além dos cartões bancários e SIM, verificou os seguintes documentos pertencentes a terceiros.
- um BIR de Hong Kong n.º XXXXXXX(X), cujo portador é AC.
- um bilhete de identidade de R.P.C n.º XXXXXXXXXXXXXXXXX, cujo portador é AD.
Após o exame, os referidos documentos foram emitidos pela respectiva autoridade.
O guarda policial encontrou na posse de J dois cartões de SIM (vide o auto de apreensão a fls. 368).
Os arguidos B, C, A e outros intervenientes do caso agiram de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços, bem conhecendo que tanto o ofendido como os seus familiares não têm o dever jurídico de entregar-lhes RMB290.000,00.
Os arguidos, com recurso ao método ameaçador e privativo da liberdade, coagiram o ofendido a entregar-lhes ou a terceiro benefícios pecuniários, bem representando que não têm direito legal para obter tal quantia de dinheiro. Os arguidos têm intenção de obter para si ou para terceiro os benefícios ilegítimos à custa do interesse dos outros.
Os arguidos B, C, A e outros intervenientes do caso, agiram de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços, bem conhecendo que os documentos apreendidos não lhes pertenciam.
Estes bem sabiam os documentos apreendidos terem sido falsificados e alterados.
Todos os documentos de identificação possuem o valor especial.
Os arguidos B, C e A adquiriram ou detiveram estes documentos com intenção de prejudicar a fé pública deste tipo de documento, bem como a autenticidade e credibilidade dos dados ali descritos, portanto prejudicou efectivamente a RAEM.
Os seus actos podem tanto causar prejuízo ao terceiro, como confundir ou enganar o terceiro.
Os arguidos B, C e A conheciam bem que os seus actos foram proibidos pela Lei.
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Mais se provou:
O ofendido D exigiu a indemnização pelos danos sofridos dos arguidos.
De acordo com o CRC, todos os arguidos são delinquentes primários.
O 1.º arguido declarou ser motorista, mediante o salário mensal de HKD$10.000,00. Tem a mulher a seu cargo, terminou o curso do ensino secundário.
A 2.ª arguida declarou ser bate-fichas antes de ser preso, mediante o salário mensal de MOP$40.000,00, tem os pais a seu cargo, terminando o curso do ensino secundário.
O 3.º arguido declarou ser bate-fichas antes de ser preso, mediante o salário mensal de MOP$30.000,00 a 40.000,00, tem os pais a seu cargo e terminou o curso do ensino secundário geral.
A 4.ª arguida declarou ser estatístico dos Correios antes de ser presa, mediante o salário mensal de RMB$2.500,00, tem os pais a seu cargo. Terminou o curso do ensino universitário.
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Factos não provados:
Outros factos descritos na acusação e contestação, e desconformes aos provados, são os seguintes:
O saco em que se encontrou os documentos de AA foi entregue pelo arguido A à arguida J, para esta levá-los à sua residência.
Os arguidos B, C, A e outros suspeitos aproveitaram os referidos documentos para angariarem ilicitamente o dinheiro, e ocultarem as suas identidades verdadeiras de forma a que não sejam descobertas pela polícia. Estes, tendo utilizado os documentos, rasgaram-nos.
Os arguidos produziram, utilizaram estes documentos com intenção de prejudicar a fé pública deste tipo de documento, bem como a autenticidade e credibilidade dos dados ali descritos, portanto prejudicou efectivamente a RAEM.
Os arguidos praticaram os referidos actos com intenção de não serem detectados pelo polícia e eximir-se da responsabilidade criminal, a fim de ocultar os seus dados verdadeiros da identidade.
Os arguidos utilizaram documentos de identificação falsificados, com intenção de obter para si ou para terceiro benefícios ilegítimos.
A arguida J praticou os factos imputados.

III - O Direito
1. As questões a resolver
A primeira é relativa à tempestividade dos recursos interpostos pelos arguidos A e C.
A segunda é a de saber se os factos pelos quais o arguido A foi condenado não integravam os elementos constitutivos do crime de extorsão e se deve, portanto, ser absolvido.
No caso de a questão prévia da intempestividade dos recursos interpostos pelos arguidos A e C não ser procedente, examinar-se-á se houve erro na apreciação da prova que os condenou e se a pena que lhes foi aplicada é demasiado elevada.

2. Intempestividade do recurso. Justo impedimento.
A Ex.ma Defensora dos arguidos A e C esteve presente na sessão do TSI em que ocorreu a leitura do Acórdão recorrido, que foi em 26 de Junho de 2008.
Estes arguidos foram notificados pessoalmente do Acórdão recorrido, no Estabelecimento Prisional, em 1 de Julho de 2008.
Os recorrentes escreveram cartas dirigidas ao processo e recebidas, respectivamente, em 7 e 15 de Julho de 2008, a comunicar quererem interpor recurso.
Os recursos foram interpostos em 23 de Julho de 2008.
Dispõe o n.º 1 do art. 401.º do Código de Processo Penal que “O prazo para interposição do recurso é de 10 dias e conta-se a partir da notificação ou do depósito da sentença na secretaria, ou, tratando-se de decisão oral reproduzida em acta, da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente”.
Dispõe, por seu turno, o n.º 7 do art. 100.º do mesmo diploma legal, que “As notificações do arguido, assistente e parte civil podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado; ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, arquivamento, despacho de pronúncia ou não pronúncia, designação de dia para a audiência e sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial”.
Ora, ainda que o prazo para o recurso só começasse a correr com as notificações aos arguidos efectuadas no Estabelecimento Prisional – questão que não interessa resolver aqui – os recursos teriam de ter sido interpostos até 11 de Julho de 2008 (sexta-feira). Só o foram em 23 de Julho de 2008.
   Ora, o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto, salvo no caso de justo impedimento (n.º 2 do artigo 97.º do Código de Processo Penal).
Invoca a Ex.ma Defensora a existência de justo impedimento para a interposição tardia de recurso, por estarem presos os arguidos.
Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto (n.º 1 do artigo 96.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, por força do art. 4.º do Código de Processo Penal).
O facto invocado não constitui justo impedimento. Da mesma maneira que os arguidos se dirigiram ao Tribunal para afirmar a sua vontade de recorrer, também o poderiam e deveriam ter feito relativamente à sua Defensora.
Os recursos interpostos pelos arguidos A e C são, portanto, intempestivos.

3. Recurso do Ministério Público. Legitimidade e interesse em agir do Ministério Público
Apreciemos agora o recurso do Ministério Público em benefício do arguido A.
Preliminarmente, importa apurar se o Ministério Público tem legitimidade ou interesse em agir, recorrendo no exclusivo interesse de um arguido para o TUI e pedindo a sua absolvição, quando, no recurso para o TSI, havia apoiado, na resposta à motivação do recurso (artigo 403.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), a condenação do mesmo arguido pelo Tribunal Judicial de Base. Certo que já no TSI, quando emitiu o parecer a que se refere o artigo 406.º do Código de Processo Penal, se pronunciou pela absolvição do arguido.
Se o Ministério Público fosse parte no processo penal não teríamos dúvidas em afirmar que lhe estaria vedado recorrer de uma decisão que confirmou decisão anterior com a qual, não só se conformou, como até apoiou expressamente.
Isto porque os recursos só podem ser interpostos por quem tenha ficado vencido (artigo 585.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Mais concretamente, em processo penal, o arguido, o assistente e a parte civil só podem recorrer de decisões contra eles proferidas [artigo 391.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal]. O mesmo é dizer que estes intervenientes processuais só têm legitimidade para recorrer se ficarem vencidos pela decisão.
Mas a alínea a) do n.º 1 do artigo 391.º do Código de Processo Penal confere legitimidade ao Ministério Público para recorrer “... de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido”.
Ou seja, o Código de Processo Penal não só não determina que o Ministério Público só possa recorrer das decisões contra ele proferidas, como estatui expressamente que pode recorrer de quaisquer decisões, pelo que se tem de entender que o pode fazer, ainda que em fase anterior do processo tenha emitido opinião concordante com o sentido da decisão de que vem a interpor recurso.
O n.º 2 do artigo 391.º do Código de Processo Penal impede o recurso a “... quem não tiver interesse em agir”.
Na ausência de definição e regulamentação em processo penal, o artigo 72.º do Código de Processo Civil diz que há interesse em agir ou interesse processual “... sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais”.
Ora, desde que o Ministério Público declara pretender recorrer de uma decisão, em processo penal, explicando porque o faz, está justificado o uso deste meio processual, ainda que, porventura, tenha mudado de posição durante do processo, pelo que tem interesse em agir.
Recorde-se que o Ministério Público está vinculado a critérios de legalidade e objectividade (n.º 2 do artigo 55.º da Lei de Bases da Organização Judiciária) e incumbe-lhe, além do mais, a defesa da legalidade (n.º 1 do artigo 56.º da Lei de Bases da Organização Judiciária).
E compete ao Ministério Público velar para que as atribuições dos tribunais sejam exercidas em conformidade com as leis [alínea 7) do n.º 2 do artigo 56.º da Lei de Bases da Organização Judiciária].
No processo penal, compete ao Ministério Público colaborar com o juiz na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade (artigo 42.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Ora, o Ministério Público pode mudar de opinião durante a pendência de um processo e só pode cumprir as atribuições e competências acima mencionadas se não estiver vinculado a posições que tomou anteriormente, mas que, posteriormente, se convenceu não estarem de acordo com o disposto na lei.
Conclui-se, assim, que o Ministério Público tem legitimidade e interesse em interpor o recurso dos autos.

4. Os elementos do crime de extorsão. Co-autoria
O recurso é procedente.
Na verdade, provou-se que os arguidos B e C e outros indivíduos que não foram acusados, jogaram com o ofendido num quarto de hotel, jogo no qual o ofendido perdeu RMB1.249.000,00. Por isso, exigiram-lhe que assinasse uma declaração de dívida.
Seguidamente os mesmo dois arguidos e os outros indivíduos tiraram vários documentos ao ofendido e encerraram-no no quarto do hotel, dizendo-lhe que não sairia de lá enquanto não pagasse a dívida.
Aterrorizado, o ofendido telefonou a familiares para pagarem o que aqueles queriam, o que acabaram por fazer.
Em nenhum destes factos interveio o arguido A.
Seguiram-se outras peripécias em que também não interveio o arguido A.
Quanto a este arguido só se deu como provado o seguinte:
“I mandou o arguido A guardar a referida declaração de dívida”.
“A partir de Junho de 2005, o arguido A tomou-se namorado da arguida C, coabitando com esta em Macau. Posteriormente, o arguido A chegou a conhecer I, por intermédio da arguida C”.
Ora, o facto de um indivíduo ter guardado uma declaração de dívida utilizada para extorquir dinheiro a alguém (depósito esse de que se desconhece quaisquer circunstâncias em termos de lugar, tempo e modo) não integra o crime de extorsão.
Este crime consiste em “... com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo ...” (artigo 215.º, n.º 1 do Código Penal).
Os elementos objectivos são, pois:
- Constrangimento de outra pessoa a uma disposição patrimonial, por meio de violência ou de ameaça com mal importante;
- Prejuízo para essa pessoa ou para outrem.
E o elemento subjectivo é constituído pela intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
Ora, guardar uma declaração de dívida apenas, não constitui elemento de nenhum crime, sendo que nem sequer se deu como provado que o arguido conhecia as circunstâncias em que a mesma foi subscrita (por quem, como, porquê).
Dos factos provados nada resulta no sentido de o arguido ter praticado factos que integrassem – mesmo que só em parte - os elementos objectivos ou o elemento subjectivo daquele crime.
Só pode ser punido “ ... como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução” (artigo 25.º do Código Penal).
Por isso, na comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria são necessários dois requisitos: uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado e uma execução igualmente conjunta.
Não obstante, quanto à execução, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos (de execução), bastando que a actuação de cada um seja elemento do todo e que o resultado seja querido por cada um, mesmo sob a forma de dolo eventual.
Será o caso de um assalto a um banco, em que os membros do grupo que ficam no exterior, vigiando e preparando a fuga, podem ser responsabilizados pelo homicídio de um funcionário do banco, ocorrido no interior deste, desde que se prove que este resultado foi previsto pelos agentes do exterior como consequência possível da conduta dos seus parceiros no interior do banco, tendo-se eles conformado com o resultado.
No caso dos autos não se provou, quanto ao A, qualquer acto de execução do crime de extorsão, pelo que era inviável condená-lo como co-autor.
É certo que se deu como provado que:
“Os arguidos B, C, A e outros intervenientes do caso agiram de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços, bem conhecendo que tanto o ofendido como os seus familiares não têm o dever jurídico de entregar-lhes RMB290.000,00.
Os arguidos, com recurso ao método ameaçador e privativo da liberdade, coagiram o ofendido a entregar-lhes ou a terceiro benefícios pecuniários, bem representando que não têm direito legal para obter tal quantia de dinheiro. Os arguidos têm intenção de obter para si ou para terceiro os benefícios ilegítimos à custa do interesse dos outros”.
Dizer-se que o arguido A agiu de forma livre, voluntária e consciente refere-se ao elemento subjectivo do crime, nada adiantando quanto aos elementos objectivos, cuja carência está em causa.
Dizer-se que o arguido A agiu com os outros arguidos em conjugação de esforços (quais esforços?), trata-se de puras conclusões de facto, sem factos concretos que estejam na sua base. Estar isto dito ou não estar nada, tem o mesmo valor.
Dizer-se que os arguidos (incluindo aqui o arguido A), com recurso ao método ameaçador e privativo da liberdade, coagiram o ofendido a entregar-lhes ou a terceiro benefícios pecuniários, também nada significa quanto a este arguido, já que o texto dos factos provados não explicita nenhum facto simples donde resulte que ele ameaçou o ofendido e o coagiu a entregar-lhe benefícios pecuniários. Estamos, igualmente, perante meras conclusões de facto.
Que é assim resulta também de, quanto à convicção do Tribunal, e no que respeita ao arguido A, se referir apenas no Acórdão do Tribunal Judicial de Base, que ele deteve a declaração de dívida. Não se lhe imputa qualquer outro facto concreto.
É justo salientar que o vício provém da acusação do Ministério Público, em que já não se imputava ao arguido A qualquer facto integrante do crime de extorsão.
É sabido que se têm por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre conclusões de facto (artigo 549.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, aplicável, nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal, subsidiariamente, por analogia1).
Com a expurgação das conclusões de facto, temos que se provou apenas que o arguido A era detentor da declaração de dívida subscrita pelo ofendido e que era namorado de uma das arguidas. É insuficiente para o condenar como co-autor do crime de extorsão, pelo que se impõe a sua absolvição.

5. Cumplicidade
Mas não seria possível, ao menos, condená-lo como mero cúmplice?
“É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso” (artigo 26.º, n.º 1 do Código Penal).
O cúmplice não toma parte nos actos de execução que constituem o crime. Mas fornece um auxílio material ou moral à prática do crime.
Na qualidade de comparticipante, o cúmplice tem de ter conhecimento de que favorece a prática de um crime. Ou seja, tem de saber, pelo menos, que outrem está ou vai cometer um facto ilícito criminal. Sem este elemento subjectivo não existe cumplicidade.
Com explica CAVALEIRO DE FERREIRA 2 o “dolo na cumplicidade tem por objecto não apenas os actos próprios da cumplicidade, mas tais actos enquanto parte integrante do facto principal, e o facto principal é assim também objecto da intenção do cúmplice”.
Nos autos nada se provou quanto a eventual conhecimento que o arguido A tivesse da extorsão protagonizada pelos restantes arguidos e outros indivíduos.
Portanto, nem como cúmplice poderia ser condenado.

IV – Decisão
  Face ao expendido
A) Não conhecem dos recursos interpostos pelos arguidos C e A;
B) Concedem provimento ao recurso do Ministério Público e absolvem o A da prática do crime de extorsão, previsto e punível pelo art. 215.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) do Código Penal.
Restitua imediatamente à liberdade o arguido A.
Custas pelos arguidos C e A, fixando a taxa de justiça em 3 UC e os honorários à sua Defensora em mil patacas por cada um.
Macau, 15 de Outubro de 2008.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei
  
1 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 605 e 606.
2 MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1982, Parte Geral II, p. 143.
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Processo n.º 35/2008