Processo nº 864/2020
(Nulidade)
Data: 17 de Dezembro de 2020
Reclamante: A representada pelo Ministério Público
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
A fls. 215/216 vem a Autora e Recorrente aqui representada pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público arguir a nulidade do Acórdão alegando que a questão essencial que o recurso colocava a este tribunal era que o despacho recorrido ao admitir e homologar o relatório pericial que se alicerçou na inexistência de nexo causal entre as dores de cabeça e a lesão cerebral violou o caso julgado, uma vez que na tentativa de conciliação as partes chegaram a acordo quanto ao nexo de causalidade entre o acidente e a lesão, o qual foi homologado por sentença.
Vejamos então.
Da reclamação agora apresentada parece resultar que o fundamento do recurso era a ofensa do caso julgado relativamente ao que havia sido decidido no despacho de homologação do acordo em sede de tentativa de conciliação e aquilo que se decidiu na sentença recorrida.
Porém, o fundamento do recurso não é a ofensa do caso julgado, nem ele implicitamente ali é invocado.
É certo que em sede de alegações de recurso, se diz no nº 7 e alínea D destas “Quer dizer que a junta médica entendeu não haver nexo de causalidade entre a lesão e o acidente de trabalho, pelo que fixou o grau de desvalorização da IPP em 0%.”.
Em sede de tentativa de conciliação as partes acordaram que havia nexo de causalidade entre o acidente e a lesão, isto é, o acidente – a queda acidental – foi causa directa e necessária da lesão corporal e cerebral1 – veja-se auto de notificação do acidente de trabalho a fls. 4 e traduzido a fls. 172/174 e cópia da acta da tentativa de conciliação a fls. 90/91 e traduzida a fls. 222/225 -.
O que os médicos na peritagem médica dizem é que “a doente só apresenta dores de cabeça, sintoma esse subjectivo, pelo que é insuficiente para provar que as dores de cabeça são a sequela permanente2 da lesão cerebral leve sofrida em Abril de 2018.” Logo o que se diz é que não se apurou que haja nexo de causalidade entre a lesão e as dores de cabeça, isto é, não há nexo de causalidade entre a lesão e os sintomas de que a lesionada se queixa, o que não é a mesma coisa que (nem tem nada a ver com) o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão.
Mas era este argumento levado a imputar à sentença recorrida o vício de violação de caso julgado que agora se invoca e se diz não ter sido conhecido?
A resposta é negativa.
Continuando na análise das alegações e conclusões, nos números 8 a 10 e alínea E das conclusões fazem-se considerações que levam à seguinte afirmação “a lesão corporal (dores de cabeça) sofrida pela Recorrente deve ser considerada como resultante do acidente de trabalho”.
No nº 11 das alegações e alínea F das conclusões refere-se que já foi homologado por sentença o nexo causal entre a lesão e o acidente de trabalho.
No nº 12 das alegações e alínea G das conclusões diz-se que o objecto da perícia é a desvalorização da IPP (…) infligida pelas lesões sofridas (incluindo as dores de cabeça).
No nº 13 das alegações e alínea H das conclusões diz-se que a avaliação não observa a ordem do juiz respeitante ao objecto da perícia pelo que não devia ter sido admitida.
Nos nºs 14 e 15 das alegações e alíneas I e J das conclusões diz-se:
«I. Face ao exposto, o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação das provas dos autos3, sobretudo o relatório da junta médica a fls. 122 e o resultado do exame físico a fls. 77 e, em consequência, erroneamente dando como provado o resultado pericial do relatório a fls. 122.
J. Atentos os dados dos autos, entendemos que o resultado do exame físico a fls. 77 é mais objectivo do que o parecer da junta médica a fls. 122. Portanto, a desvalorização da IPP da Recorrente deve ser fixada em 7% de acordo com o resultado de fls. 77.».
E conclui-se:
«Pelo expendido, pede que se julgue procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, confirmando-se a desvalorização da IPP de 7%, tal como avaliada pelo exame físico…».
Ora, em momento algum, seja das alegações, seja das conclusões se invoca que a sentença recorrida ofende o caso julgado quanto à homologação do nexo de causalidade em sede de sentença homologatória do acordo e a sentença final quanto à IPP.
As expressões usadas na alínea I “face ao exposto” e no pedido “Pelo expendido”, induzem sem dúvidas que agora sim, vem uma verdadeira conclusão de recurso no sentido de que perante tudo quanto se alegou há que concluir algo, que no caso foi fixar-se mal o facto da valorização da IPP em 0% quando havia de ter sido 7%.
Toda a argumentação do recurso é a tentar demonstrar o erro do relatório pericial numa argumentação confusa entre o que é trauma/lesão, sintoma e o nexo de causalidade entre umas coisas e outras e consequentemente o erro da sentença recorrida por ter decidido a matéria de facto com base naquele relatório.
O objecto do recurso era a matéria de facto e não outra questão.
Pese embora na sentença recorrida não se individualize numa rubrica autónoma de factos provados que a Autora ficou com uma IPP de 0% isso é o que dela resulta.
Ao se dar por reproduzido o relatório pericial isto serve para fundamentar que a conclusão de IPP de 0% resulta dos argumentos deste.
A percentagem da IPP é um facto.
O relatório no qual o tribunal se baseou é um meio de prova.
O que a Recorrente pretende como expressamente pede em sede de conclusões de recurso é que se desse como provado que a IPP era igual 7%.
Logo, o que se ataca é a matéria de facto dada por assente sem que em momento algum se invoque a violação do caso julgado4.
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 571º, aplicável “ex vi” nº 1 do artº 633º ambos do CPC é nulo o Acórdão «quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Atente-se na letra da lei quando refere sobre questões que devesse apreciar, o que remete para o nº 2 do artº 563º do CPC.
O juiz tem apenas de conhecer dos pedidos deduzidos e de todas as causas de pedir invocadas.
No entanto não tem que se pronunciar sobre todas as alegações e argumentação das partes e que segundo estas poderia levar ao bom sucesso do que pretendem.
No Acórdão em causa conheceu-se do único fundamento invocado o qual consistia no errado apuramento da matéria de facto, o que não exigia que se rebatessem todos os argumentos invocados pelo Recorrente para que se houvesse optado por uma perícia e não outro.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, vai indeferida a arguida nulidade.
Sem custas por delas estar isenta a reclamante.
Notifique.
RAEM, 17 de Dezembro de 2020
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Confunde-se lesão/trauma com sintomas. Dores são por definição em termos clínicos um sintoma, que pode ser ou não consequência de uma lesão. Se em consequência de uma lesão o paciente tiver dores isso pode ser incapacitante, se não houver dores ou não se provar que as dores vêm da lesão não há incapacidade.
2 Negrito e sublinhado nossos.
3 Negrito e sublinhado nossos.
4 O que, seria até impossível porque não há qualquer facto na sentença que verse sobre o nexo de causalidade
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864/2020 NULIDADE 1