Processo n.º 821/2020 Data do acórdão: 2020-12-17 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de usura para jogo
– art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M
– fichas de jogo como meio para jogar em casino
– empréstimo gratuito de fichas de jogo
– cláusula de recompensa patrimonial do empréstimo
– art.o 13.o, n.o 3, da Lei n.o 8/96/M
S U M Á R I O
1. Em face da redacção do n.o 1 do art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M, deve entender-se que para poder haver crime de usura nele previsto, o acto de facultar a outrem dinheiro ou qualquer outro meio para jogar tem que ser a título oneroso.
2. No caso dos autos, conforme a factualidade provada, são fichas de jogo, que constituíram o meio para o arguido recorrente jogar em casino, que foram concretamente facultadas pela ofendida a ele para jogar em casino.
3. E como da mesma factualidade provada não resulta que essa conduta da ofendida tenha encerrado por si qualquer cláusula ou condição de recompensa patrimonial a favor dela própria, não se pode qualificar esse acto de empréstimo de fichas de jogo como um empréstimo oneroso, ainda que tenha sido praticado para o arguido jogar em casino.
4. Por isso, esse acto da ofendida não pode integrar a prática do crime de usura previsto no n.o 1 do referido art.o 13.o. Não se tratando de crime de usura para jogo, não há aplicação, no caso, da norma do n.o 3 do mesmo artigo.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 821/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 368 a 377v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-20-0041-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de dois anos e nove meses de prisão efectiva, e na obrigação de pagar à ofendida B a quantia indemnizatória civil de quatrocentos e trinta mil dólares de Hong Kong, com juros legais a contar a partir da data desse acórdão até integral e efectivo pagamento, veio o arguido A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado (no seu essencial) e rogado o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 386 a 397 dos presentes autos correspondentes:
– conforme as declarações da ofendida e do próprio recorrente, os valores pecuniários alegadamente burlados à ofendida corresponderam aos valores pecuniários emprestados por ela, na forma de “fichas mortas”, para o próprio recorrente jogar em casino; como as “fichas mortas” encerraram por si interesses pecuniários decorrentes da comissão da sua troca, a conduta de empréstimo da ofendida integrou o crime de usura para jogo do art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M, pelo que a conduta do próprio recorrente não seria punível nos termos do n.o 3 desse art.o 13.o, enfermando, assim, a decisão condenatória recorrida do vício de erro de aplicação de direito, devendo ele próprio ser absolvido do crime de burla por que vinha condenado em primeira instância;
– e fosse como fosse, não deixaria a mesma decisão condenatória recorrida de padecer do vício de erro notório na apreciação da prova, no respeitante ao julgamento dos factos sobre a alegada astúcia empregue por ele contra a ofendida, sendo o procedimento de burla descrito como provado no acórdão recorrido aliás contrário à lógica normal das coisas.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 401 a 403v dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 414 a 416, pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 368 a 377v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que o arguido imputou primeiro à decisão condenatória recorrida o erro de direito, por violação da norma do n.o 3 do art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M.
Pois bem, o art.o 13.o desta Lei dispõe o seguinte:
Artigo 13.º
(Usura para jogo)
1. Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar, é punido com pena correspondente à do crime de usura.
2. Presume-se concedido para jogo de fortuna ou azar a usura ou mútuo efectuado nos casinos, entendendo-se como tais para este efeito, todas as dependências especialmente destinadas à exploração de jogos de fortuna ou azar, bem como outras adjacentes onde se exerçam actividades de carácter artístico, cultural, recreativo, comercial ou ligadas à indústria hoteleira.
3. A conduta do mutuário não é punível.
Em face da redacção do n.o 1 desse artigo, deve entender-se que para poder haver crime de usura nele previsto, o acto de facultar a outrem dinheiro ou qualquer outro meio para jogar tem que ser a título oneroso.
No caso concreto dos autos, conforme a factualidade dada por provada em primeira instância, a coisa facultada pela ofendida para o arguido ora recorrente jogar em casino consiste em “fichas de jogo”.
São essas fichas, que constituíram o meio para o recorrente jogar em casino, que foram concretamente facultadas pela ofendida a ele para jogar em casino.
E como da mesma factualidade dada por provada pelo Tribunal recorrido, não resulta que essa conduta da ofendida de facultar ao recorrente esse tipo de meio para jogar tenha encerrado por si qualquer cláusula ou condição de recompensa patrimonial a favor da mesma ofendida, não se pode qualificar esse acto de empréstimo de fichas de jogo como um empréstimo oneroso, ainda que tenha sido praticado para o recorrente jogar em casino. (É de notar que de acordo com a matéria de facto provada, as fichas de jogo em causa foram entregues pela ofendida ao arguido, sem qualquer estipulação prévia entre os dois acerca de qualquer condição de troca prévia, pela ofendida, de fichas de jogo para ela ganhar comissão de troca de fichas).
Por isso, esse acto da ofendida não pode integrar a prática do crime de usura previsto no n.o 1 do art.o 13.o da Lei acima referida. Não se tratando de crime de usura para jogo, não há aplicação, no presente caso concreto, da norma do n.o 3 desse artigo 13.o.
Improcede, assim, a questão principal posta na motivação do recurso.
Resta conhecer do subsidiariamente arguido vício de erro notório na apreciação da prova a que alude a alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo teceu a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto nas páginas 8 a 13 do texto decisório ora recorrido, a fls. 371v a 374 dos autos, tendo explicado concretamente, a partir do penúltimo parágrafo da página 11 desse aresto (a fl. 373) até ao primeiro parágrafo da página 13 do mesmo texto (a fl. 374), as razões pelas quais não acreditou no arguido e acreditou na ofendida.
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados e como tal referidos pelo Tribunal recorrido nessa fundamentação probatória do seu acórdão, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável nem ilógico o resultado do julgamento da matéria de facto feito por esse Tribunal, pelo que de toda a factualidade já apurada em primeira instância, resulta cabalmente verificado o requisito de “astúcia” postulada no tipo legal de delito de burla, e resulta também legalmente justa e correcta a decisão condenatória do arguido no crime de burla em valor consideravelmente elevado em causa (com consequente condenação dele no pagamento da indemnização a favor da ofendida).
Naufraga o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão à ofendida.
Macau, 17 de Dezembro de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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