打印全文
Processo n.º 1010/2020 Data do acórdão: 2020-12-10
Assuntos:
– recurso manifestamente improcedente
– reclamação para conferência
– objecto da decisão da reclamação
S U M Á R I O

1. O recurso deverá ser rejeitado por decisão sumária do relator quando for manifestamente improcedente, nos termos dos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, podendo o recorrente reclamar da decisão de rejeição para conferência.
2. A reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar a alteração do objecto do recurso.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1010/2020
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação para conferência da decisão sumária do recurso)
Recorrente (2.o arguido) reclamante: A (A)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
1. Por acórdão proferido a fls. 314 a 321 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-19-0104-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), o 2.o arguido A (A), aí já melhor identificado, ficou condenado como co-autor material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança em valor elevado, p. e p. mormente pelo art.o 199.o, n.o 4, alínea a), do Código Penal (CP), em um ano e seis meses de prisão, e de um crime de burla em valor elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 211.o, n.o 3, do CP, também em um ano e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de dois anos e seis meses de prisão efectiva, para além de ficar condenado a pagar, solidariamente com o 1.o arguido B (B), a quantia indemnizatória, arbitrada oficiosamente, de 67 mil dólares de Hong Kong ao 2.o ofendido chamado C (C), com juros legais a contar desde a data desse acórdão até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, veio esse 2.o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, e rogando o seguinte, na sua motivação de fls. 385 a 403 dos presentes autos correspondentes:
– a decisão condenatória ora recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), por violação do princípio de in dubio pro reo, já que inversamente do entendido pelo Tribunal sentenciador, o próprio recorrente não praticou os factos acusados com dolo de os praticar, pelo que deveria ele ser absolvido dos dois crimes por que vinha condenado em primeira instância, não devendo ele sido condenado a pagar indemnização ao 2.o ofendido;
– e fosse como fosse, nunca ele deveria ser condenado em prisão efectiva, pois mereceria ele, nos termos do art.o 48.o do CP, a suspensão da execução da pena única de prisão aplicada no aresto recorrido.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 408 a 411v, no sentido de improcedência manifesta do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 434 a 436, opinando pela manutenção do julgado.
Por decisão sumária proferida a fls. 438 a 441, decidiu o ora relator em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
Veio o arguido reclamar dessa decisão para conferência, através do petitório de fls. 447 a 461.
Sobre a matéria dessa reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 463 pela improcedência da mesma.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 314 a 321, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui inteiramente reproduzido.
2. A decisão sumária do relator de rejeição do recurso do 2.o arguido ora reclamante tem o seguinte conteúdo, inclusiva e materialmente, como fundamentação da própria decisão:
Da análise da argumentação principal tecida pelo 2.o arguido ora recorrente, resulta nítido que ele está a fazer sindicar materialmente da livre convicção do Tribunal recorrido sobre os factos por que vinha acusado.
Assim, é de ajuizar se o Tribunal recorrido errou ou não na apreciação da prova.
Há erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, mormente ao considerar provados os factos acusados com pertinência à afirmação, em sede jurídica, do dolo penal do recorrente de os praticar.
Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, improcede necessariamente o suscitado vício de erro notório na apreciação da prova. Não houve, pois, qualquer violação, por parte do Tribunal recorrido, do princípio de in dubio pro reo. Aliás, esse Tribunal já explicou, na parte da fundamentação probatória do seu acórdao, de modo congruente e convincente, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos.
Por fim, quanto à subsidiária pretensão da suspensão da execução da pena única de prisão, é patente que não pode proceder esse desejo do recorrente, porquanto atentos os antecedentes criminais dele, é de louvar também a decisão do Tribunal recorrido nesta parte da aplicação da pena única de prisão efectiva ao 2.o arguido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio o 2.o arguido recorrente reclamar para conferência da decisão tomada pelo relator pela qual foi rejeitado o recurso dele por manifestamente improcedente.
Cabe, pois, a este Tribunal de recurso conhecer do objecto do recurso então interposto pelo 2.o arguido, porquanto a reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar a alteração do objecto do recurso.
Pois bem, vistos todos os elementos dos autos, é de improceder a reclamação sub judice, porquanto há que manter, nos seus precisos termos, a decisão sumária do recurso, por essa decisão do relator estar conforme com a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (sem erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido) e o direito aplicável (mormente, do n.o 1 do art.o 48.o do CP, não sendo de formular qualquer juízo de prognose favorável ao ora reclamante em sede deste preceito, atentos os seus antecedentes criminais).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação do 2.o arguido recorrente, mantendo a decisão sumária de rejeição do recurso dele.
Para além das custas, taxa de justiça e sanção pecuniária referidas no dispositivo da decisão sumária, pagará ainda o recorrente as custas da sua reclamação, com duas UC de taxa de justiça correspondente.
Comunique a presente decisão aos dois ofendidos dos autos (com cópias também da decisão sumária do recurso).
Macau, 10 de Dezembro de 2020.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
___________________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



Processo n.º 1010/2020 Pág. 1/9