Processo n.º 611/2020
(Autos de recurso cível)
Data: 17/Dezembro/2020
Recorrentes:
- A e B (autores)
Recorridos:
- C e D (réus)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformados com a sentença que julgou improcedente a acção intentada contra os réus C e D, melhor identificados nos autos, recorreram aqueles autores jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“a. A cessão da posição contratual implica a existência de dois contratos: (i) o contrato de cessão propriamente dito, o contrato-instrumento, que é aquele celebrado entre os cedentes (os 2ºs RR) e os cessionários (os AA), com autorização da cedida (a 1ª R., X); e (ii) o contrato-base, que é o contrato objecto da cessão, neste caso o contrato-promessa de compra e venda da fracção, passando os cessionários a ser a contraparte da cedida neste contrato. As vicissitudes de um destes contratos não são necessariamente as vicissitudes do outro, e vice-versa.
b. Os AA. pagaram o total de HKD$6.380.000,00 aos 2ºs RR com vista à celebração de uma compra e venda de uma fracção a construir. Tornando-se impossível a celebração desta compra e venda, é da mais elementar justiça que os AA. se vejam restituídos da totalidade do que pagaram.
c. Relativamente ao contrato-promessa com a X, o mínimo a que os AA. terão direito é a restituição do montante em singelo que coube à X, HKD$5.405.000,00. No caso de impossibilidade culposa, a X deverá ser condenada, como sanção, a pagar o dobro, nos termos da lei. Ao contrário do que parece entender a decisão recorrida, esta é uma sanção aplicada ao incumpridor (dada a impossibilidade ser culposa), e não um benefício dos AA. por terem adquirido a posição contratual de promitentes-compradores no contrato-promessa. Não se pode dizer que os AA., ao adquirirem aos 2ºs RR. a sua posição contratual no contrato-promessa, adquiriram um benefício (porque adquiriram o direito a ser indemnizados em caso de incumprimento culposo por parte da X), como entende o Tribunal a quo. Da mesma forma que não se pode dizer que os AA. adquiriram um prejuízo, porque a X pode não pagar o montante em que for condenada… São vicissitudes próprias do contrato-promessa que os 2ºs RR cederam aos AA.
d. Relativamente ao contrato de cessão da posição contratual, é uma questão de justiça e de boa-fé que os 2ºs RR. restituam também aquilo que receberam, porque aquando da cessão da posição contratual os 2ºs RR. não receberam apenas o reembolso do que tinham despendido com a celebração da promessa de compra e venda. Eles obtiveram um ganho de HKD$975.000,00 sobre aquele valor, à custa dos AA, relativamente à cessão de uma posição contratual num contrato-promessa que não se veio a realizar, por culpa que não é dos AA.
e. O fim típico de um contrato-promessa de compra e venda é a celebração do contrato prometido. E o fim típico da celebração de um contrato de cessão da posição contratual num contrato-promessa é, pode dizer-se em termos imediatos, a cessão da posição contratual, mas em termos mediatos é, na verdade, a celebração da compra e venda objecto do contrato-promessa. Ninguém compra a posição contratual num contrato-promessa de compra e venda só por comprar, obviamente que o objectivo último é a compra e venda do bem objecto do contrato-promessa. E ninguém vende a posição contratual num contrato-promessa de compra e venda imaginando que a compra e venda objecto desse contrato-promessa se não irá realizar. Caso contrário estaria a atentar contra as regras da boa-fé na celebração dos contratos.
f. A situação hipotética relatada pelo Tribunal a quo a fls. 995 é absolutamente idêntica à situação sub judice. Basta imaginar que, aquando da promessa de compra do drone, o promitente-comprador pagou logo o seu preço, por exemplo 100. E aquando da cessão da posição contratual cobrou 120 ao cessionário. O Tribunal a quo não fez qualquer referência a pagamentos. Mas imaginemos que os houve. Não é o facto de terem existido estes pagamentos que altera a qualificação jurídica da situação. Ela é exactamente idêntica, e tanto o promitente-vendedor como o cedente da posição contratual devem restituir aquilo que receberam. Com uma única diferença: a criação de uma lei nova que proíbe a venda de drones não pode ser imputada ao promitente-vendedor, pelo que a restituição deve ser em singelo, enquanto que na situação sub judice a impossibilidade causada pela caducidade da concessão pode ser imputada à promitente-vendedora X, ou pelo menos assim o entendem os AA., pelo que à restituição em singelo deve acrescer a indemnização, como sanção a aplicar àquela. Ou seja, o fim social e económico típico da cessão da posição contratual deixou de se verificar no contrato celebrado entre os AA. e os 2ºs RR., pelo que o enriquecimento destes últimos deixou de ter causa, caindo na previsão do disposto no n.º 2 do art. 467º do CC, devendo consequentemente ser obrigados a restituir aos AA. o ganho que obtiveram à custa destes pela cessão da posição contratual, HKD$975.000.00.
g. Inexistindo causa para o enriquecimento, e estando verificadas os outros dois requisitos pressupostos da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, a saber, a existência de um enriquecimento (HKD$975.000,00) e o enriquecimento ter sido obtido pelos 2ºs RR. à custa dos AA., devem os 2ºs RR. ser condenados a restituir aos AA. o montante do enriquecimento, HKD$975.000,00.
h. Ainda que entenda não se encontrarem verificados os requisitos do enriquecimento sem causa, o Tribunal a quo não estava adstrito à qualificação jurídica da situação dada pelos AA. – cfr. artº 567 do CPC.
i. Nem os AA. estavam impedidos de, até ao encerramento da discussão em primeira instância, ampliar o seu pedido – art. 217º, n.º 2 do CPC.
j. Os AA. adquiriram a posição contratual num contrato-promessa com vista à aquisição de uma fracção autónoma num empreendimento a construir pela X. O que motivou os AA. a comparem a posição contratual dos 2ºs RR., e o que os 2ºs RR. venderam e quiseram vender aos AA., foi uma posição para comprar uma determinada fracção, quando estivesse construída. Os AA. pagaram aos 2ºs RR. a totalidade do preço da fracção, e ainda um ganho sobre esse preço, num total de HKD$6.380.000,00. A base negocial foi exactamente esta, a projectada compra e venda de uma fracção no empreendimento a construir pela X. Era essa a finalidade do negócio realizado. A ideia subjacente das partes foi a realização de uma futura compra e venda da fracção objecto do contrato-promessa cedido. Como foi alegado pelos AA. no art. 122º da p.i., os montantes foram entregues aos 2ºs RR. “com vista ao cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda”.
k. Não era possível às partes sequer equacionar que as circunstâncias em que fundaram a sua decisão de contratar desapareceriam por completo, que causa da caducidade da concessão, situação estranha às intenções das partes e que era claramente um risco não pretendido pelas partes aquando da celebração da cessão da posição contratual. A manutenção do negócio, tal como foi celebrado, cria um desequilíbrio muito injusto, contrário à boa fé e contrário às ideias subjacentes das partes. Para mais, tendo em conta o facto de já ter sido paga a totalidade do preço.
l. A caducidade da concessão veio consubstanciar uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, prevista pelo art. 431º do CC, e
m. A alteração anormal das circunstâncias confere aos AA. o direito à resolução do contrato de cessão da posição contratual ou à sua modificação segundo juízos de equidade (por exemplo, reduzindo-se o valor da cessão da posição contratual para o montante efectivamente entregue à X), ao abrigo do disposto no referido art. 431º do CC, com a restituição por parte dos 2ºs RR. do que lhes foi entregue – estando os AA em tempo de o fazer até ao encerramento da discussão em primeira instância, conforme dispõe o art. 217º, n.º 2 do CPC.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso apresentado pelos AA. ser recebido e deferido, por provado, e em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida de absolver do pedido os 2ºs RR., constante do despacho saneador, mandando-se prosseguir a acção contra os 2ºs RR. até ulterior decisão final sobre a causa, assim se fazendo a costumeira JUSTIÇA!”
*
Ao recurso não responderam os réus.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão:
“Conhecendo.
Os autores demandaram os segundos réus pedindo a condenação destes a pagarem-lhes a quantia de HKD 975 000,00 acrescida de juros de mora contados desde a citação. Como causa de pedir invocaram a seguinte factualidade:
- Os autores, pelo preço de HKD 6 380 000,00, adquiriram a posição contratual dos referidos réus num contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma de um prédio urbano a construir que os referidos réus, como promitentes-compradores, celebraram com a primeira ré como promitente vendedora;
- A primeira ré, por culpa sua, não construiu nem poderá construir o imóvel prometido vender, não podendo cumprir a sua promessa de vender.
- Os referidos réus haviam pago à primeira ré o sinal de HKD 5 405 000,00.
Concluem os autores que os réus tendo pago à promitente-vendedora, a título de sinal, apenas HKD 5 405 000,00 e tendo recebido dos autores HKD 6 380 000,00 se enriqueceram à custa destes pelo montante que devem restituir em consequência de enriquecimento sem causa (HKD 975 000,00). Dizem os autores que, sendo impossível o cumprimento da promessa, cessou a causa da cessão da posição contratual e não se verificou o efeito por ela visado.
Os segundos réus contestaram a obrigação de restituir que os autores lhe atribuem por entenderem que não se verificam os pressupostos necessários para ocorrer a fonte das obrigações denominada enriquecimento sem causa.
Está em causa uma obrigação de restituir.
As obrigações são vínculos jurídicos que adstringem uma pessoa a realizar uma prestação (art. 391º do CC). Tais vínculos resultam das fontes das obrigações - os contratos, os negócios unilaterais, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil.
No caso em apreço, a alegada fonte da obrigação dos segundos réus de restituírem aos autores parte do dinheiro que deles receberam é o enriquecimento sem causa.
“Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”. É esta a cláusula geral inserta no nº 1 do art. 467º do CPC que proíbe o enriquecimento à custa de outrem sem razão suficiente.
Para surgir na esfera jurídica de uma pessoa esta obrigação de restituir é necessário que:
- Haja um enriquecimento de alguém;
- O enriquecimento careça de causa justificativa e
- Que seja obtido à custa de quem requer a restituição ou do seu antecessor.
O enriquecimento, o empobrecimento e a ausência de nexo entre eles são, pois, os elementos de que se compõe esta fonte das obrigações.
Do enriquecimento.
Muito conclusivamente, o enriquecimento à custa de outrem consiste numa deslocação patrimonial de uma esfera jurídica para outra com empobrecimento desta última. Enriquecer à custa de outrem é ver a sua esfera jurídica patrimonial aumentada por força de uma diminuição da esfera jurídica de outrem.
O enriquecimento dos segundos réus que os autores invocam consiste no facto de os réus terem cedido a sua posição de promitentes-compradores por um montante superior àquele que tinham pago a título de sinal. Trata-se da situação que Menezes Cordeiro identifica como a modificação de um direito de tipo quantitativo num sentido economicamente mais favorável ao enriquecido.
Vejamos.
Na tese dos autores, os réus pagaram “2” a título de sinal e receberam “3” pela cedência da sua posição contratual, pelo que se enriqueceram em “1”. Será assim? O enriquecimento é um aumento na esfera jurídica patrimonial e esta é composta por posições activas – direitos – e por posições passivas – deveres ou obrigações. Muito sucintamente, os réus, enquanto promitentes-compradores, tinham na sua esfera jurídica o direito de celebrar o contrato definitivo prometido ou, em caso de aquele contrato não ser celebrado por culpa da promitente vendedora, receber o sinal em dobro (arts. 400º e 436º do CC).
Na esfera jurídica patrimonial dos réus existia um direito “alternativo” de adquirir um imóvel mediante o pagamento de um preço ou de, em caso de incumprimento do promitente-vendedor, receber o dobro do sinal já pago (HKD 10.810.000,00). Uma vez que os autores não alegam factos relativos ao valor efectivo do imóvel prometido vender não é possível saber se tal valor é inferior ou superior ao preço prometido. Nem isso releva para a decisão da pretensão dos autores, tal como a formularam. Segundo a alegação dos autores já só seria possível receber o dobro do sinal, razão por que na esfera jurídica dos réus teria havido um activo potencial de HKD 10.810.000,00. Os réus “venderam” esse activo aos autores por HKD 6.380.000,00. Com a cedência onerosa do seu activo aumentou a esfera jurídica patrimonial dos réus? Afigura-se claro que não. Os autores não podem querer convencer que com a cedência da posição contratual só saiu da esfera jurídica dos réus o sinal por eles pago (HKD 5.405.000,00). Como refere Carlos Alberto da Mota Pinto, a cessão da posição contratual extingue a relação entre cedente e cedido transferindo-a para a relação entre cedido e cessionário. Têm, pois, os autores de explicar como aparece na sua esfera jurídica o direito de exigir da promitente vendedora o sinal em dobro (HKD 10.810.000,00). Se tal direito ao dobro não veio da esfera jurídica dos réus cedentes de onde surgiu para entrar na esfera dos autores? Só ficcionando se pode concluir que da esfera jurídica dos réus apenas saiu por cedência da posição contratual o sinal singelo que aqueles haviam pago e que na esfera jurídica dos autores entrou um direito de exigir o dobro. Como se multiplicou para o dobro na esfera jurídica patrimonial dos autores um direito que saiu da esfera jurídica dos réus em singelo?
As “contas” que os autores fazem não estão certas. Dizem que os réus cederam 5 e receberam 6, mas afinal cederam 10 e receberam 6. Considerando a tese dos autores na petição inicial ao demandarem a ré promitente-vendedora, o que se transferiu da esfera jurídica patrimonial dos réus para a esfera dos próprios autores foi o direito de receber 10 e não o direito de receber 5.
Ao ceder por 6 o direito potencial de exigir 10 a esfera jurídica patrimonial dos autores não se enriqueceu, pelo que nenhum enriquecimento haverá a restituir. Na esfera jurídica dos réus não existia o direito de exigir o sinal em singelo. Existia o direito de imputar o sinal em singelo no preço da venda, mas os autores não utilizam essa causa de pedir porquanto desprezaram (com razão, ao que se afigura) o valor real do imóvel prometido vender e que já não pode ser vendido.
Conclui-se, pois, que não houve enriquecimento dos réus, pelo que falta um dos elementos da fonte das obrigações invocada e, por isso, não pode nascer na esfera jurídica dos réus a obrigação de restituir por enriquecimento à custa alheia.
Do nexo (da causa justificativa do enriquecimento e da ausência dela).
Não é ilícito o enriquecimento de uma esfera jurídica à custa de outra desde que haja razão jurídica suficiente. O enriquecimento à custa alheia só gera obrigação de restituir na ausência de causa justificativa.
Mas o que é a causa justificativa do enriquecimento e quando é que se está perante uma ausência de tal causa? Há ausência de causa justificativa do enriquecimento quando tal causa nunca existiu e quando existiu mas deixou de existir.
A causa do enriquecimento trata-se de um nexo de ordenação jurídica de bens entre o enriquecimento e o empobrecimento, a causa jurídica da deslocação patrimonial. A causa que pode justificar o enriquecimento à custa alheia há-de buscar-se na ordenação jurídica dos bens, nos diversos regimes jurídicos das deslocações patrimoniais. Nas palavras de Menezes Cordeiro “a ausência de causa emerge … da inexistência de normas jurídicas que … levem a considerar o enriquecimento como coisa … tolerada ou querida pelo Direito”. Nas palavras de Antunes Varela, “o enriquecimento é injusto” quando, “segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo direito, ele deve pertencer a outro”. Refere ainda Menezes Cordeiro que “a deslocação-enriquecimento é dita sem causa por não ter uma determinada cobertura normativa que justifique a passagem …” e que “a ausência de causa traduz-se … pela inexistência de norma” que incida sobre a deslocação determinando-a ou permitindo-a.
Num contrato de doação, o donatário tem causa justificativa do seu enriquecimento à custa de património alheio e, por isso, pode conservá-lo (arts. 934º e 948º do CC). Mas se se vier a tornar indigno cessa a causa que havia permitido qualificar o enriquecimento como justificado (art. 964º do CC). É, pois, no regime jurídico concreto da deslocação patrimonial que se há-de averiguar da existência ou da inexistência da causa justificativa da deslocação patrimonial. No caso dos autos a deslocação deu-se no âmbito de um contrato de cessão da posição contratual.
No caso dos autos o alegado enriquecimento dos segundos réus deu-se por prestação, deu-se através do pagamento que os autores fizeram do preço acordado pela cessão de uma posição contratual. Tem esse pagamento uma causa que justifique que os réus o conservem na sua esfera jurídica? Terá causa justificativa? Em caso de resposta afirmativa, há que perguntar ainda se terá cessado a capacidade justificativa da causa da deslocação patrimonial pelo facto de o outro contraente do contrato cuja posição contratual foi cedida não cumprir a sua prestação. Como se disse, seguindo de perto Menezes Cordeiro, é no regime concreto da situação jurídica onde ocorreu a deslocação patrimonial que há-de procurar-se a resposta. Se existir norma que tolere ou imponha a deslocação, há causa justificativa; se existir norma que não a aceite, não haverá tal causa justificativa para o enriquecimento.
Se em geral a causa jurídica é uma razão para que uma consequência jurídica seja admitida ou tolerada, em sede de enriquecimento sem causa a causa é uma razão jurídica para que se aceite que aquele que enriquece à custa de outrem possa conservar o enriquecimento.
Mesmo em sede de enriquecimento sem causa, a causa ganha ainda especificidades conforme o enriquecimento tenha lugar por prestação do empobrecido, por intervenção do enriquecido (por exemplo aquele que constrói em terreno alheio – acessão), por envolvimento de terceiro ou por intervenção de fenómeno natural.
O enriquecimento por prestação, como é o que está em discussão nos presentes autos, chama à colação a questão da causa negocial ou da causa da prestação feita pelo empobrecido. A causa da prestação é o fim económico típico visado pelo negócio criador do dever de prestar. O fim económico-social típico do contrato de compra e venda é a transferência da propriedade. Se a propriedade não se transfere não há causa para o vendedor manter o preço que recebeu. O fim típico do contrato de cessão da posição contratual é a transmissão da posição contratual, do conjunto de direitos e deveres resultantes de um contrato. Se a posição contratual não se transmite, não há causa justificativa da prestação do cessionário. Se alguém promete comprar um “drone”, cede a sua posição contratual de promitente-comprador e é criada uma lei nova que poíbe a venda de drones, a posição contratual cedida não se transmitiu ou transmitiu-se com conteúdo zero ou sem conteúdo, pois já não será possível a venda prometida. A causa da prestação do cessionário deixou de existir, o fim social e económico típico da cessão da posição contratual deixou de se verificar. A razão da juridicidade da cessão deixou de existir. Por isso o nº 2 do art. 467º do CC dispõe concretizando a cláusula geral do nº 1 do mesmo artigo que “a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa tem de modo especial por objecto o que foi recebido por virtude de causa que deixou de existir”.
A questão colocada pelos autores prende-se com a causa negocial. Esta tem sido entendida como o fim típico visado pelo negócio jurídico e como o fundamento da sua juridicidade. “Quando esse fim falha, o negócio fica sem causa”. Mas a questão do incumprimento nada tem a ver com o fim típico do contrato. O incumprimento, assim como o cumprimento, é externo à causa negocial. E também não releva em sede de enriquecimento sem causa o alegado pelos autores que pagaram no pressuposto de que a ré cumpriria a promessa de venda. Tal pressuposto é alheio ao enriquecimento sem causa. A causa que permite a conservação do enriquecimento é o fim económico-social típico do contrato e não a motivação de uma das partes. Se aquela finalidade está presente, o enriquecido pode conservar o enriquecimento. Se a posição contratual se transferiu, o cedente pode conservar o preço por se verificar a causa negocial. A motivação que os autores invocam, por ser relativa ao futuro, nem chega a ser erro negocial, nem sobre a base do negócio nem sobre os motivos. Apenas poderia configurar questão relativa a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar se, efectivamente, ambas tivessem decidido contratar elevando tal pressuposto de cumprimento da promessa de venda à categoria de base do negócio: circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, o que permitiria a resolução ou a modificação do contrato mas nunca fundaria a restituição por enriquecimento sem causa.
Voltando à afirmação que a causa justificativa do enriquecimento à custa alheia (ou da deslocação patrimonial entre esferas jurídicas) se procura no regime normativo da deslocação em concreto, somos remetidos para o regime jurídico da cessão da posição contratual onde se deu a deslocação patrimonial que os réus pretendem reverter. E aí encontramos a norma jurídica de que fala Menezes Cordeiro que autoriza a deslocação patrimonial irreversível se o cedente não garantir o cumprimento da outra parte contratual. Afinal a causa justificativa que os autores dizem que falta existe e consta do art. 420º, do CC. Ali se dispõe que “o cedente garante ao cessionário a existência da posição contratual transmitida” e que “a garantia do cumprimento das obrigações só existe se for convencionada nos termos gerais”. Se a posição contratual cedida não existe, então não há causa para a contrapartida do cessionário e se existe é essa a causa justificativa da eventual deslocação patrimonial feita pelo cessionário, os aqui autores. O cedente só é responsável pelo cumprimento do contrato cedido se assim for convencionado. A contrário sensu, se não for convencionada a garantia de cumprimento, o cedente só garante a existência da posição contratual cedida. A causa justificativa da contrapartida da cedência não é, pois, contrariamente à tese dos autores, o cumprimento do contrato cedido, mas a existência desse mesmo contrato.
Diga-se agora que os autores só pretendem reverter parte da deslocação patrimonial que fizeram. Se pagaram 6 sem causa justificativa, por que razão só pretendem reverter 0,975? Parece que entendem que há causa justificativa para a deslocação de 5 para poderem exigir 10 (sinal em dobro) da primeira ré promitente-vendedora inadimplente e parece que entendem que não há causa justificativa para a deslocação patrimonial de 0,975, porque não podem exigir 1,950 à promitente-vendedora faltosa. Mas a causa enquanto razão da deslocação patrimonial é a mesma: a função económico-social da cessão da posição contratual. Se não há causa para a deslocação patrimonial, então os autores deveriam pedir a restituição de tudo que pagaram. Contraditoriamente pretendem que haja causa para poderem demandar a promitente vendedora inadimplente e pretendem que não haja causa para poderem demandar os primeiros réus cedentes da posição contratual. Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e, diz o povo, “não se pode querer sol na eira e chuva no nabal”. Se a causa é a função económico-social do contrato, na cessão da posição contratual é a transferência da posição contratual e, logo, os autores não podem dizer que a posição dos réus não se transferiu e falta a causa para o seu enriquecimento e, ao mesmo tempo, dizer que essa posição contratual se transferiu para a sua esfera jurídica e têm os autores causa para exigir da ré o sinal em dobro.
A causa da deslocação patrimonial (fim típico do negócio de cessão da posição contratual) foi a cedência da posição contratual. E essa cedência ocorreu (ao ponto de os autores estarem a exercer contra a ré a posição contratual que adquiriram. A causa justificativa da deslocação patrimonial existe. Por isso o nº 2 do art. 467º do CC dispõe que “a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa tem de modo especial por objecto o que for recebido em vista de um efeito que não se verificou”. Ora o efeito da cessão da posição contratual é a transferência de tal posição. E essa transferência/efeito ocorreu, nos termos combinados do disposto no nº 2 do art. 406º e 418º do CC, ao ponto de os autores estarem a invocar a sua posição contratual para exigirem indemnização da ré por incumprimento.
Conclui-se, pois, que, a existir enriquecimento dos réus, tal enriquecimento não carece de causa justificativa, pois os autores, em troca do pagamento que fizeram, receberam a posição contratual que estão a “utilizar” para reclamar da ré o sinal em dobro. Falta, pois, outro dos elementos da fonte das obrigações invocada e, por isso, não pode nascer na esfera jurídica dos réus a obrigação de restituir por enriquecimento à custa alheia. A causa contratual (fim típico do negócio de cessão da posição contratual – transferência da posição contratual) existiu e mantêm-se, quer porque não ocorreu o desaparecimento de tal causa contratual, como seria o caso de extinção da posição contratual transmitida, quer por se ter produzido o efeito visado pelos contraentes (cedente e cessionário), não podendo concluir-se que com o incumprimento da promitente vendedora não ocorreu a produção do efeito contratual visado pelos contraentes, cedentes e cessionários, pois que tal efeito foi apenas a transmissão da posição contratual e não a aquisição da propriedade da fracção autónoma prometida vender.
Do empobrecimento.
Os autores pagaram 3 e têm direito de exigir 5. Não empobreceram, no sentido de verem a sua esfera jurídica patrimonial reduzida. Logo, mesmo que os réus tivessem enriquecido, não teria sido à custa dos autores, faltando também este pressuposto da obrigação de restituir em consequência de enriquecimento sem causa. Destaca-se que os autores não demandaram os segundos réus subsidiariamente, para o caso de apenas receberem o sinal em singelo. Demandaram-nos em pedido principal.
Da subsidiariedade do enriquecimento sem causa.
Dispõe o art. 468º do CC que “não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído…”.
Os autores alegadamente empobrecidos, além do direito de receberem o dobro do sinal podem ser indemnizados pelo dano excedente resultante do incumprimento da promitente-vendedora (art. art. 436º, nº 4 do CC). Logo, não podem socorrer-se do enriquecimento sem causa. Além disso, como se viu, os autores tinham outro meio de ser ressarcidos: no contrato de cessão da posição contratual acordavam com os cedentes a responsabilização pelo incumprimento por parte da cedida promitente-vendedora. Não o fizeram, sibi imputet. Não podem recorrer ao meio subsidiário se desprezaram o meio “ordinário”. Se celebraram um contrato de cessão da posição contratual que quiseram sem garantia de cumprimento do contrato cedido, não podem agora obter tal garantia pela via “excepcional” do enriquecimento sem causa.
Em conclusão, faltam todos os pressupostos da obrigação de restituir em consequência de enriquecimento sem causa: há causa justificativa para a deslocação patrimonial; os autores não empobreceram a sua esfera jurídica patrimonial com o pagamento que fizeram; os réus não enriqueceram com o pagamento que receberam e os autores têm outros meios de obter indemnização pelos danos sofridos em consequência do incumprimento da promitente-compradora.
Julga-se, pelo exposto, improcedente a presente acção relativamente aos segundos réus e absolvem-se os mesmos do pedido contra si formulado pelos autores, absolvição que não respeita ao pedido de condenação por litigância de má-fé feito pela primeira ré.
As custas relativas ao pedido formulado contra os segundos réus são da responsabilidade dos autores pelo que se condenam no seu pagamento.”
Analisada a douta decisão de primeira instância que antecede, louvamos a acertada e perspicaz decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC.
De facto, é bom de ver que ao intentar a presente acção judicial contra os réus, os autores limitaram-se a atirar o barro à parede, pois não devem ignorar que ao suceder na posição contratual dos réus, adquiriram os direitos e assumiram as obrigações resultantes do contrato-promessa outorgado entre a promitente-vendedora X e os réus. Enquanto os autores, conforme referido pelo Tribunal recorrido, e bem, não lograram alegar muito menos provar que os réus alguma vez chegaram a garantir o cumprimento das obrigações decorrentes do respectivo contrato-promessa.
Segundo o disposto no artigo 420.º do Código Civil, na falta de convenção em contrário, o cedente, sendo neste caso concreto os réus da acção, apenas garantiram aos cessionários ora autores, a existência da posição contratual transmitida no momento da cessão, e quanto ao cumprimento efectivo das obrigações que constituem o objecto da cessão, não deve imputar-se a falta de cumprimento aos réus, se assim não for convencionado pelas partes contraentes.
Conforme se refere na decisão recorrida, são pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa a existência de um enriquecimento, a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e a ausência de causa justificativa para o enriquecido.
Na falta de verificação desses pressupostos, sem necessidade de delongas considerações, improcede o recurso quanto a esta parte.
E no tocante à questão de saber se a manutenção do negócio terá criado desequilíbrio injusto e contrário à boa fé e às ideias subjacentes das partes, valem aqui as considerações tecidas no Acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo n.º 421/2020, que a seguir se transcreve e que damos aqui por reproduzido o seu teor para todos os efeitos legais:
“Quanto ao dito desequilíbrio contrário à boa fé, alegadamente criado pela manutenção do negócio da cessão da posição contratual, a que fizeram referência ex novo nas motivações de recurso, cabe dizer que não vemos em que termos o enriquecimento na esfera jurídica do cedente resultante do ganho pela cessão da posição contratual do contrato pode ser configurado como ofensivo aos limites impostos pelo princípio da boa fé.
Como se sabe, a boa fé, enquanto limite interno do exercício de um direito, é um conceito indeterminado, cabe ao julgador ajuizar se, perante as circunstâncias concretas, o exercício do direito pelo seu titular representa uma actuação por parte do seu titular que viola as regras da honestidade e da lealdade, vigentes e dominantes num determinado momento histórico e numa determinada colectividade.
No caso sub judice, os Réus não fizeram mais do que um negócio de comprar uma posição contratual a um preço mais baixo para revender a um preço mais elevado, por forma a ganhar a diferença dos preços como forma de rentabilização do seu investimento.
E actuaram sem saber qual seria a sorte do negócio prometido que, por razões que lhes foram totalmente alheias, não veio a ser concretizado.
É-nos difícil, senão impossível imaginar em que termos podemos configurar a actuação dos Réus D e E como ofensiva às regras da honestidade e da lealdade, vigentes e dominantes na comunidade jurídica e regentes no mercado imobiliário de Macau.
Na verdade, o tal empobrecimento dos Autores, a haver, nunca se devia à má fé por parte dos Réus, mas sim à infeliz conversão em danos efectivos de um risco inerente aos negócios que têm por objecto coisas futuras, que por natureza e por razões variadíssimas, poderão nunca vir a existir no mundo ou a ser confeccionadas e construídas.”
Tudo visto e ponderado, é de negar provimento ao recurso interposto pelos autores.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelos autores, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Registe e notifique.
***
RAEM, 17 de Dezembro de 2020
Tong Hio Fong
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Recurso Cível 611/2020 Página 21