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Processo nº 80/2020 Data: 31.07.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Autorização de residência.
Reunião familiar.
Revogação.
Separação de facto.
Falta de coabitação.



SUMÁRIO

1. Não deixa de integrar o conceito de “separação de facto”, a circunstância de, ainda que habitando ambos os cônjuges a mesma casa, (e cuja renda seja eventualmente por um deles paga), nenhuma “comunhão de vida” entre eles exista na prática, como, v.g., sucede, se não se falarem e partilharem, no “dia-a-dia”, aspectos próprios de uma “relação a dois”.

O que revela aos olhos da Lei é a existência ou inexistência, real, efectiva, (não apenas aparente, de fachada), da comunhão física e espiritual própria do casamento.

2. A falta de coabitação dos cônjuges sem uma razão plausível, quando ambos vivem em Macau, é motivo para o indeferimento da renovação da autorização de residência quando o fundamento desta autorização foi o reagrupamento familiar.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 80/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em sede dos Autos de Recurso Contencioso n.° 389/2019 proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte Acórdão, (na parte que agora interessa):

“I – RELATÓRIO
A, casado, titular do Passaporte francês n.º XXXXXXXXX, residente em Macau, (…)
Recorre contenciosamente para este TSI, ----
Do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, ---
Datado de 7 de Janeiro de 2019, que declarou a caducidade da autorização de residência temporária do ora Recorrente em Macau.
(…)
III – Os Factos
Consideramos provada a seguinte factualidade:
1 - Em 10 de Agosto de 2012, o Secretário para a Segurança autorizou a residência do Recorrente em Macau, a fim de lhe permitir reunir-se com sua esposa, e essa autorização foi renovada até 9 de Agosto de 2019.
2 - Em 9 de Outubro de 2018, a esposa do Recorrente apresentou uma declaração ao Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública, relatando, de modo geral, que esta se tinha separado de seu marido há vários meses e tinha intenção de pedir o divórcio, pedindo ainda o cancelamento da autorização de residência do Recorrente.
3 - Na fase de audiência escrita, o Recorrente não negou o facto da separação, apenas salientou constantemente que seu cônjuge pretendia que ele se fosse embora, acrescentando não ter qualquer relação extraconjugal, nem pretender o divórcio.
4 - Recorrente e esposa não vivem juntos.
5 - No Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública foi emitido o seguinte Relatório nº 300131/CESMREN/2018/P:
“1. De acordo com o despacho proferido em 10 de Agosto de 2012 pelo ex-Secretário para a Segurança, foi autorizada a fixação da residência do interessado, A, em Macau, com a finalidade da reunião com o seu cônjuge, B que é residente de Macau, cujo prazo de validade da autorização de residência terminará em 9 de Agosto de 2019 (naquele momento, a autorização da fixação da residência já decorreu 7 anos consecutivos).
2. Em 9 de Outubro de 2018, este Departamento recebeu uma declaração escrita do cônjuge do interessado, B, na qual alegou o seguinte “... eu e o interessado estamos separados há vários meses (ele já deixou de viver na casa de morada a partir de 5 de Julho de 2018) e, concordamos em proceder aos trâmites de divórcio. Mas, o interessado espera que o divórcio possa ser realizado no momento em que decorreu o período experimental do seu trabalho e disse que, aquando do termo do seu BIR não permanente, ele já tem os próprios documentos comprovativos na área de trabalho e tributação, sem os necessários meus documentos comprovativos e declaração. Por outro lado, em Outubro de 2018, eu descobri que ele tinha uma relação extraconjugal há vários meses. Assim, espero que seja cancelada a sua autorização de residência ...”. Tendo em conta que a respectiva situação resulta na insatisfação do pressuposto sobre o qual se fundou a autorização de residência inicial do interessado (reunião com o cônjuge em Macau), assim, a autorização da sua residência deve ser declarada caduca.”
3. No procedimento de audiência, o interessado alegou essencialmente que, apesar de abandonar a casa de morada, não teve uma relação extraconjugal, nem pediu o divórcio”.
6 - No dia 7/01/2019, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho (a.a.):
“Tendo em consideração os conteúdos constantes dos pontos 1 a 3 do relatório acima indicado, o interessado apresentou um pedido da autorização de residência com fundamento na junção conjugal e esse pedido foi deferido. Mas, actualmente, os cônjuges não coabitam há vários meses.
Dado que o interessado deixa de ter a vida em comum com a mulher, já não satisfaz o propósito de pedir a autorização de residência. Pelo exposto, nos termos do disposto no art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003 e art.º 9.º, n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003, decide-se declarar a caducidade da autorização de residência em causa.
Secretário para a Segurança
WONG SIO CHAK
(ass.: vide o original)
7 de Janeiro de 2019”
***
IV – O Direito
1- Os vícios
O recorrente imputa ao acto administrativo recorrido os vícios de:
- Erro sobre os pressupostos de facto;
- Violação de lei, por violação do princípio da proporcionalidade.
*
2- Do vício do erro sobre os pressupostos de facto
O recorrente vive em Macau com autorização de residência temporária desde 20/08/2012, portanto há 7 anos. A autorização para a residência teve por fundamento a reunião familiar com o seu cônjuge, então já residente na RAEM.
No entanto, em 9/10/2018, o seu cônjuge fez uma participação ao Departamento competente da PSP informando que o marido deixou de viver com ela desde 5 de Julho de 2018, acrescentando ter descoberto que ele mantinha uma relação extraconjugal e que estariam a pensar obter o divórcio.
Foi com base nesta informação que o procedimento administrativo foi desencadeado com vista à declaração de caducidade da autorização de residência foi determinado.
Vem agora o recorrente invocar erro nos pressupostos de facto, afirmando inexistir qualquer relação extraconjugal ou qualquer acordo quanto ao divórcio entre si e o seu cônjuge, ainda que não negando que ele a mulher estejam a viver em sítios diferentes.
Ora, no recurso contencioso e no procedimento administrativo (pois o próprio recorrente aceitou esse facto na audiência de interessados) é objectivo e confessado o facto de que os cônjuges não vivem juntos, mas sim separadamente e em casas distintas.
Sendo isto verdade, então a situação é de separação de facto, sem dúvida alguma, o que contraria o fundamento que esteve na base da concessão da autorização de residência e, por tal razão, é motivo para a caducidade desta, face ao art. 24º, al. 1), do Regulamento nº 5/2003.
E isto é, por si só, suficiente para manter o acto administrativo impugnado, já que este unicamente se limitou a destacar a circunstância de que “actualmente, os cônjuges não coabitam há vários meses” e de “o interessado deixa de ter a vida em comum com a mulher”. Ou seja, para o acto não foi relevante a alegada circunstância de o recorrente poder ter (ou não), uma relação extraconjugal ou os cônjuges estarem a ponderar (ou não) o termo da união conjugal através do divórcio.
Esta situação é, aliás, idêntica a uma outra que este TSI já analisou, e no respectivo processo teve ocasião para dizer que:
“Com efeito, à aplicação das normas citadas no acto é indiferente que tenha sido o cônjuge feminino a abandonar o lar, nem tampouco interessam as causas que a levaram a fazê-lo. Realmente, a finalidade invocada pelo recorrente para a autorização de residência inicialmente pretendida foi a reunião conjugal e não outro qualquer. O recorrente pretendia, portanto, reunir-se à sua mulher, que já vivia em Macau. Sendo assim, esta finalidade (art. 9º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003, de 17/03) deveria manter-se sempre, enquanto, pelo menos, não fosse adquirido o direito à residência permanente. Significa isto que não importa saber se o recorrente teve ou não relações extra-matrimoniais, nem sequer se pretende manter o casamento” (Ac. do TSI, de 8/02/2018, Proc. nº 683/2016).
Improcede, pois, o recurso quanto a esta parte.
*
3- Violação de lei, por violação do princípio da proporcionalidade.
Este é um princípio geral de direito administrativo que, como outros, constitui um limite interno à actividade discricionária da Administração (cfr. art. 5º, do CPA).
No caso concreto, a situação da alínea 1) do art. 24º do Regulamento Administrativo configura um caso de actuação vinculada: Desde que a situação de facto seja verdadeira e enquadre no âmbito de previsão da norma, então a autorização e residência caduca. A lei diz “caduca” e não “pode caducar”. Estamos perante uma caducidade “ope legis”. Não há aí qualquer margem para a discricionariedade1.E por isso, a violação do referido princípio não tem aqui cabimento.
No entanto, mesmo que assim se não ache, nem por isso entendemos que o vício possa proceder. Com efeito, quanto a esta matéria, não se têm desviado os tribunais da RAEM da ideia fulcral de que, quando em presença de actos discricionários, como este é, só em casos de erro manifesto, notório, grosseiro e palmar deve o Tribunal censurar a actividade da Administração, sob pena de estar a fazer administração activa, o que, como é sabido, não cabe na esfera do poder jurisdicional, e dessa maneira violar o fundamental princípio da separação de poderes (v,g, cit. Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; tb. do TSI, de 14/04/2016, Proc. nº 607/2015).
Ora, mesmo na pressuposição de esta ser actividade discricionária, no caso em apreço não se vê que o indeferimento tenha incorrido em erro grosseiro e manifesto, já que, como se viu, o facto em que o acto se baseou é verdadeiro e está, precisamente, na trajectória da previsão do citado art. 24º.
Improcede, pois, o vício, de qualquer maneira.
***
V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
(…)”; (cfr., fls. 48 a 53 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado com o decidido, traz o recorrente (A) o presente recurso onde, em alegações, produz as seguintes conclusões:

“1) O Acórdão recorrido confirmou a decisão do Senhor Secretário para a Segurança que declarou a caducidade da autorização de residência temporária do ora Recorrente, com fundamento na verificação de uma situação de separação de facto.
2) Simplesmente, a decisão em causa apenas se baseou numa declaração unilateral da esposa do Recorrente, sem curar de apurar a verdadeira situação de facto dos cônjuges para poder regularmente emitir uma decisão ablativa de um status quo favorável e positivo.
3) O Recorrente apenas confirmou o único facto de que os cônjuges vivem em moradas diferentes, o que não é de modo algum suficiente para per se se poder concluir pela verificação de uma situação de separação de facto e, consequentemente, de frustração da finalidade de reunião conjugal em que se fundou a inicial decisão de concessão da autorização de residência.
4) Designadamente, não ficou provado qualquer outro facto constitutivo do conceito jurídico e conclusivo de separação de facto, nem que o Recorrente tenha mantido uma relação extraconjugal, nem que tivesse havido acordo de ambos quanto ao divórcio.
5) Assim, não se pode chegar à conclusão, como sucedeu no Acórdão recorrido, que houve ruptura da comunhão de vida conjugal.
6) Pois, o mero facto de. os cônjuges viverem em moradas diferentes pode ter várias razões e pode perfeitamente continuar a satisfazer a finalidade de reunião conjugal.
7) Sendo que a falta de vida em comum é mesmo consentida pelo art. 1534.° do CC, sem que daí resulte qualquer situação de separação de facto.
8) Mantêm-se, por isso, intocáveis os pressupostos de facto – “a reunião familiar” – que estiveram na base da autorização de residência do Recorrente na RAEM, por insuficiência dos pressupostos de facto para se concluir pela ruptura da reunião familiar.
9) Não tendo decaído qualquer dos pressupostos ou requisitos em que se fundou aquela autorização.
10) O Acórdão violou, assim, os arts. 1534.°, 1637.°, al. a), e 1638.°, do CC, e a al. 1) do art. 24.° do REGA n.° 5/2003, sendo o acto administrativo em causa ilegal, por erro nos pressupostos de facto.
11) Tendo-se igualmente violado o princípio da proporcionalidade, pois
12) O Recorrente reside em Macau hã cerca de 6 anos e meio enquanto residente não permanente, tendo sempre mantido uma conduta exemplar e contributiva para a RAEM.
13) A declaração de caducidade da sua autorização de residência com cerca de meio ano até esta se tornar permanente com base numa declaração unilateral da esposa e na mera confirmação do Recorrente de que os cônjuges vivem em moradas diferentes é manifestamente contrária ao princípio da proporcionalidade positivado no art. 5.°, n.° 2, do CPA”.

A final, pede a “revogação do douto Acórdão recorrido e a anulação do acto do Senhor Secretário para a Segurança de 7 de Janeiro de 2019, com todas as consequências legais, pedido que se fundamenta na errada interpretação e aplicação dos arts. 1534.°, 1637.°, al. a), e 1638.°, do CC, e da al. 1) do art. 24.° do REGA n.° 5/2003, e, bem assim, do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 5.°, n.° 2, do CPAC”; (cfr., fls. 61 a 72).

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Sem contra-alegações, e remetidos os autos a esta Instância, foram os mesmos com vista ao Exmo. Representante do Ministério Público, que juntou o seguinte Parecer:

“Nos presentes autos de recurso jurisdicional em matéria administrativa, verifica-se que o recorrente A impugna o acórdão de 20 de Fevereiro de 2020, do Tribunal de Segunda Instância, imputando-lhe erro de julgamento de vícios que suscitara no recurso contencioso.
Sobre esses vícios do acto pronunciou-se oportunamente o Ministério Público, fazendo-o nos moldes do parecer de fls. 43 a 44 verso, onde se manifesta contra a tese da ilegalidade escorada nesses vícios em que agora o recorrente volta a insistir.
Dado que a alegação de recurso jurisdicional sobre esse invocado erro de julgamento constitui no fundo um reavivar de argumentos já esgrimidos em sede de recurso contencioso, temos por bem reafirmar o sentido daquele nosso parecer, com o que nos pronunciamos pela improcedência do recurso jurisdicional”; (cfr., fls. 82-v).

*

Adequadamente processados os autos, e com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram à conferência.

Passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, impugna o recorrente o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 20.02.2020 que confirmou o acto administrativo do Secretário para a Segurança que declarou a caducidade da sua antes concedida autorização de residência.

E, como se vê, volta (o recorrente) a colocar as mesmas “questões” que antes tinha colocado em sede do seu anterior recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância.

Ora, sendo de consignar que da reflexão que nos foi possível efectuar se nos mostra de concluir que nenhuma censura merece o Acórdão recorrido, que se apresenta claro e lógico na sua fundamentação, e acertado na sua solução, desde já – e atento o princípio de economia processual – se dá aqui o mesmo como reproduzido para efeitos de fundamentação que se adopta para a decisão que se irá proferir.

Seja como for, julgam-se também adequadas as considerações que seguem.

Sobre a matéria incide – principalmente – o art. 9° da Lei n.° 4/2003 e o art. 24° do Regulamento Administrativo n.° 5/2003 (emanado em conformidade com o estatuído no art. 15° da referida Lei n.° 4/2003).

Nos termos do art. 9° da aludida Lei n.° 4/2003, (que “estabelece os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência na R.A.E.M.”; cfr., art. 1°, n.° 1):

“1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência”.

Pois bem, como se colhe da matéria de facto que se deixou transcrita, a “autorização de residência” ao ora recorrente concedida, teve como fundamento e razão de ser, possibilitar a sua pretendida “reunião familiar com o seu cônjuge”, ao tempo, já residente nesta R.A.E.M.; (cfr., art. 9°, n.° 2, al. 5) da Lei n.° 4/2003).

Por sua vez, nos termos do referido art. 24° do Regulamento Administrativo n.° 5/2003, (que “desenvolve” a Lei n.° 4/2003; cfr., art. 1°):

“São causas de caducidade da autorização de residência:
1) O decaimento de quaisquer pressupostos ou requisitos sobre os quais se tenha fundado a autorização;
2) Qualquer circunstância que, nos termos da lei de princípios e do presente regulamento, seja impeditiva da manutenção da autorização, nomeadamente a falta de residência habitual do interessado na RAEM”.

Nesta conformidade, e considerando-se que a “reunião familiar” entre o ora recorrente e o seu cônjuge deixou de existir, entendeu-se que aquela concedida autorização de residência perdeu a sua justificação, implicando a necessária declaração da sua caducidade, como, (nos termos do transcrito art. 24°, n.° 1 do R.A. n.° 5/2003), in casu, sucedeu.

Vem, porém, o recorrente, (com esforço argumentativo que se regista), alegar que verificada não está “uma situação de separação de facto e, consequentemente, de frustração da finalidade de reunião conjugal em que se fundou a inicial decisão de concessão da autorização de residência”, que não houve “ruptura da comunhão de vida conjugal” e que “a falta de vida em comum é mesmo consentida pelo art. 1534.° do CC, sem que daí resulte qualquer situação de separação de facto”; (cfr., conclusões 3ª, 5ª e 7ª).

Ora, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, não se partilha desta opinião, pois que o que pelo recorrente vem alegado, para além de não ter (o mínimo) suporte factual, apresenta-se mesmo como o contrário ao que os presentes autos demonstram.

Começando-se pelo invocado art. 1534° do C.C.M., vejamos.

Nos termos deste comando legal, (que, significativamente, tem como epígrafe “residência da família” e trata do dever de “coabitação dos cônjuges” consagrado no anterior art. 1533°):

“1. Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar.
2. Salvo motivos ponderosos em contrário, os cônjuges devem adoptar a residência da família.
3. Na falta de acordo sobre a fixação ou alteração da residência da família, decidirá o tribunal a requerimento de qualquer dos cônjuges”.

Resulta, assim, e em síntese, do assim estatuído, que é da decorrência do “dever de coabitação” que aparece a “residência da família”, escolhida, (em princípio), de comum acordo pelos cônjuges, sendo de notar também, que este mesmo dever conjugal de coabitação, considerado como o mais importante dos deveres pelo sentido comunitário que o inspira – cfr., v.g., Antunes Varela in, “Direito da Família”, 5ª edição, pág. 345 – envolve a obrigação dos cônjuges viverem em “comunhão de leito, mesa e habitação”.

Contudo, focando-nos no aspecto que para os autos se mostra relevante, cabe salientar que, em regra, este dever de coabitação cumpre-se na “residência da família” que venha a ser adoptada de comum acordo, ou por decisão do Tribunal, e só “razões ponderosas”, (nomeadamente, de natureza profissional, familiar ou de saúde), poderão justificar um comportamento contrário, (ou diverso).

No caso dos autos, nada existe – nem alegado foi – sobre qualquer “motivo ponderoso” para a comprovada situação de o ora recorrente ter “saído da residência familiar há vários meses, não coabitando com a sua esposa”.

E, apurado estando também que tal “situação” chegou ao conhecimento da Administração por declaração do próprio cônjuge do recorrente, que alegou que “(…) eu e o interessado estamos separados há vários meses (ele já deixou de viver na casa de morada a partir de 5 de Julho de 2018) e, concordamos em proceder aos trâmites de divórcio. (…)”, quid iuris?.

Independentemente do demais, (nomeadamente do referido “divórcio”), cabe salientar que tal “declaração” foi apresentada em 09.10.2018, e que, entretanto, decorrido estando o tempo que se sabe sem que qualquer outra informação sobre eventual alteração daquele status quo exista nos presentes autos, cremos que “transparente” se apresenta a “situação” em questão.

Com efeito, como cremos ser evidente, não se pode olvidar que não deixa de integrar o conceito de “separação de facto”, a circunstância de, ainda que habitando ambos os cônjuges a mesma casa, (e cuja renda seja eventualmente por um deles paga), nenhuma “comunhão de vida” entre eles exista na prática, como, v.g., sucede, se não se falarem e partilharem, no “dia-a-dia”, aspectos próprios de uma “relação a dois”.

De facto, como notam P. de Lima e A. Varela, (in “Código Civil Anotado”, Vol. IV, 2ª ed., pág. 541), o que revela aos olhos da Lei é a existência ou inexistência, real, efectiva, (não apenas aparente, de fachada), da comunhão física e espiritual própria do casamento; (sobre o tema, e com abundante doutrina e jurisprudência, vd., v.g., Nuno de Salter Cid. no seu estudo “Sobre a separação de facto como fundamento do divórcio, e algo mais”, in Textos de Direito da Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pág. 31 e segs.).

E dito isto, pouco mais se mostra de acrescentar, já que com o que se deixou consignado, (e em causa não estando o apuramento da violação do dever da coabitação para efeitos de se decretar (eventual) divórcio), mostra-se-nos suficientemente demonstrado que decaiu o pressuposto sobre o qual se fundou a autorização de residência do ora recorrente; (cfr., art. 24°, n.° 1 do R.A. n.° 5/2003).

Aliás, como perante situação idêntica recentemente decidiu este Tribunal de Última Instância:

“Como é evidente, pode haver vida em comum dos cônjuges sem coabitarem normalmente, designadamente, quando trabalhem ou tenham outra actividade em localidades diferentes.
Já quando ambos os cônjuges vivam em Macau, que é uma cidade pequena, permitindo que se viva em qualquer ponto dela e se trabalhe ou exerça outra actividade em qualquer outro local desta cidade, para haver vida em comum em Macau dos cônjuges, sem coabitação, tem de haver alguma razão plausível”.

E, concluindo, entendeu-se que:

“A falta de coabitação dos cônjuges sem uma razão plausível, quando ambos vivem em Macau, é motivo para o indeferimento da renovação da autorização de residência quando o fundamento desta autorização foi o reagrupamento familiar”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.07.2019, Proc. n.° 66/2019).

Sendo o que nos presentes autos sucede, e adequada se apresentando a consideração tecida no Acórdão recorrido no sentido de que o acto administrativo em causa é um “acto vinculado”, demonstrado (cremos que) fica (também) que outra solução não existia, havendo que se julgar improcedente o presente recurso.

Na verdade, dúvidas não há que o acto administrativo tem conteúdo “vinculado” quando o decisor não tem margem de livre decisão, tendo o acto um único sentido (possível).

E, como sabido é, no âmbito da “actividade vinculada”, nenhum relevo tem eventuais alegações de violação dos princípios da boa fé, da justiça, da proporcionalidade, da tutela de confiança e da igualdade; (cfr., v.g., os Acs. deste Tribunal de 31.01.2019, Proc. n.° 62/2017 e, mais recentemente, de 10.06.2020, Proc. n.° 35/2020 e de 26.06.2020, Proc. n.° 47/2020).

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 10 UCs, (notando-se que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de preparos, custas e honorários).

Registe e notifique.

Macau, aos 31 de Julho de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa

1 Pese embora a posição deste TSI, no Ac. de 27/06/2019, Proc. nº 550/2018, que conheceu do princípio da boa fé, como se fosse discricionária a actividade, com base na mesma alínea i1), do art. 24º, posição que agora corrigimos.
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Proc. 80/2020 Pág. 22

Proc. 80/2020 Pág. 1