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Processo nº 193/2020 Data: 27.11.2020
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Crime de “detenção ilícita de estupefacientes para consumo (agravado)”.
Crime de “tráfico de menor gravidade”.
Atenuação especial da pena.
Medida da pena.
“Toxicodependência”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Reenvio.



SUMÁRIO

1. A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais” – e não em situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

A figura da atenuação especial da pena surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses “especiais”, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

2. Para efeitos de atenuação especial da pena nos termos do art. 18° da Lei n.° 17/2009, só releva o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente, no caso de grupos, organizações ou associações.

3. A detenção de estupefaciente para consumo em quantidade que exceda cinco doses diárias integra o crime de “detenção ilícita de estupefaciente para consumo (agravado)”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 e 2 e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016.

4. O (comprovado) estado de “toxicodependência” do arguido pode viabilizar a consideração de que a “ilicitude dos factos” se mostra “consideravelmente diminuída” para efeitos do art. 11° da Lei n.° 17/2009, com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016.

5. Se o Tribunal omite pronúncia sobre a alegada “toxicodependência do arguido”, incorre em “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” que dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 193/2020
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base responderam como 1°, 2° e 3° arguidos, A (甲), B (乙) e C (丙), todos com os restantes sinais dos autos.

A final, realizado o julgamento, decidiu-se:

–– condenar os (1° e 2°) arguidos A e B, como co-autores da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena individual de 9 anos de prisão; e,

–– condenar o (3°) arguido C, como co-autor da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 869 a 883 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido recorreram os ditos (3) arguidos A, B e C para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 10.09.2020, (Proc. n.° 686/2020), negou provimento aos recursos; (cfr., fls. 1076 a 1094-v).

*

Ainda inconformados, vêm os (3) arguidos recorrer para esta Instância.

Os (1° e 2°) arguidos A e B, afirmam (apenas) que “excessivas” são as penas que lhes foram aplicadas, invocando o art. 66° do C.P.M. e 18° da Lei n.° 17/2009, para pedir a “atenuação especial” ou “redução” da pena; (cfr., fls. 1133 a 1165 e 1114 a 1120).

O (3°) arguido C, pugna pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 11° da dita Lei, e consequente redução da pena aplicada; (cfr., fls. 1121 a 1131).

*

Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que os recursos não mereciam provimento; (cfr., fls. 1188 a 1191).

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Oportunamente, e em sede de vista, considerou também o Exmo. Representante do Ministério Público que os recursos deviam ser julgados improcedentes; (cfr., fls. 1212).

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Efectuado que foi o exame preliminar, e colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, é momento de decidir.

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A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos constantes a fls. 1083-v a 1087 do Acórdão recorrido e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (notando-se que, mais adiante, se fará adequada referência aos mesmos para efeitos de apreciação e decisão das questões colocadas).

Do direito

3. Vem os (1°, 2° e 3°) arguidos, A, B e C, recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que negou provimento ao recurso que interpuseram do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, (que os condenou nos termos já relatados).

–– Ponderando nas “questões” colocadas, começa-se pela apreciação (conjunta) dos recursos dos (1° e 2°) arguidos A e B.

Vejamos.

Considerando “excessiva” a pena que lhes foi aplicada, batem-se pela sua “atenuação especial” e, subsidiariamente, pela sua “redução”.

Não questionando a “decisão da matéria de facto”, (cfr., fls. 1083-v a 1087), que por motivos também não termos para alterar, se tem como “definitivamente fixada”, e, da mesma se constatando que verificados estão todos os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime de “tráfico” pelo qual foram condenados, passa-se a ver se lhes assiste razão.

Pois bem, ao crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” pelos ora recorrentes cometido, cabe a pena de 5 a 15 anos de prisão, (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016), notando-se que aos ditos (1° e 2°) arguidos, ora recorrentes, foi decretada a pena (individual) de 9 anos de prisão.

Como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.

Desde logo, há que ter presente que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.

Por sua vez, nos termos do art. 66° do C.P.M.:

“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.

Porém, e como de forma firme e repetida temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais” – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020 e de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020).

Com efeito, a figura da atenuação especial da pena surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses “especiais”, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

Por sua vez, nos termos do (também invocado) art. 18° da Lei n.° 17/2009:

“No caso de prática dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º e 11.º, se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado ou se esforçar seriamente por consegui-lo, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, de organizações ou de associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou haver lugar à dispensa de pena”.

Em relação ao transcrito comando legal tem esta Instância vindo a entender que: “Para efeito de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015, de 30.05.2018, Proc. n.° 34/2018, de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020 e, mais recentemente, de 30.10.2020, Proc. n.° 165/2020).

E, assim, que dizer da reclamada “atenuação especial”?

Da matéria de facto dada como provada resulta que ambos os (1° e 2°) arguidos (A e B), ora recorrentes, são de Hong Kong, e que agiram em conformidade com um plano previamente concebido (em Abril de 2019) para, em associação com um outro individuo, dedicarem-se à venda de estupefaciente em Macau para assim ganharem dinheiro, actividade que iniciaram em Maio do dito ano de 2019 e que decorreu até 29 de Julho do mesmo ano, data em que foram interceptados por agentes da Polícia Judiciária.

Nesta conformidade, e da mesma factualidade resultando também que o (2°) arguido B, agia sob instruções do (1°) arguido A e que, assim, em conjugação de esforços, partilha de tarefas, e em datas diversas, consumaram várias transacções de estupefaciente, totalizando cerca de “30 gramas de Cocaína”, (cfr., “matéria de facto provada”, ponto 31°), que quando surpreendido, o (2°) arguido B tinha acabado de efectuar uma venda de 2,08 gramas de “Cocaína” ao (3°) arguido C, (cfr., ponto 32°), estando ainda na posse de um total de 27,7 gramas de “Cocaína” e de “16,1 gramas” de “M.D.M.A.”, (cfr., pontos 34° e 37°), cremos que motivos não existem para uma “atenuação especial da pena”, seja ela ao abrigo do art. 66° do C.P.M. ou do art. 18° da Lei n.° 17/2009.

Com efeito, a factualidade dada como provada não permite considerar a “situação dos autos” como “especial”, “extraordinária” ou “excepcional”, a reclamar uma “substituição” da própria moldura da pena por outra, apresentando-se, (infelizmente), como muitas outras que tem sido objecto de julgamento, apreciação e decisão pelas Instâncias Judiciais da R.A.E.M., e que, como tal, não justifica o recurso à medida prevista no art. 66° do C.P.M..

Por sua vez, e tendo presente o que da mesma factualidade dada como assente consta, e verificados não se nos apresentando os pressupostos para aplicação do art. 18° da referida Lei n.° 17/2009, cabe também dizer que afastada se nos mostra qualquer possibilidade de proceder à pretendida “atenuação especial da pena” ao abrigo deste comando legal.

Na verdade, não se pode olvidar que em causa está uma “medida excepcional”, (ou “extraordinária”), e não é qualquer “colaboração com as autoridades”, (muitas vezes, inconsequente, com resultados não provados, ou limitados e pouco relevantes), que justifica a sua aplicação, isto, sem prejuízo de poder ser objecto de ponderação na determinação da medida da pena para efeitos do art. 65° do C.P.M..

E, então, quanto à reclamada “redução da pena”?

Pois bem, aqui, há que se ter presente que com o art. 65° do C.P.M. adoptou o legislador local a “teoria da margem da liberdade”, sendo igualmente de se consignar que, como temos afirmado, o recurso não deve servir para eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015 e de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020).

E, nesta conformidade, tendo presente a “imagem global do facto”, e ponderando no que até aqui se expôs, (especialmente, e de referir em concreto), na referida moldura penal – de 5 a 15 anos de prisão – atentos os critérios para a determinação da medida da pena previstos nos transcritos art°s 40° e 65° do C.P.M., nas quantidades e qualidades de estupefaciente envolvidas, nas necessidades de prevenção criminal deste tipo de crimes, e no que vem sendo entendido pelos Tribunais de Macau em matéria de medida concreta da pena em processos análogos, cremos que censura também não merece a pena (individual) de 9 anos de prisão aos ora recorrentes decretada, (a 4 anos do seu limite mínimo, e a 6 anos do seu máximo).

Com efeito, há que atentar que para além da “factualidade provada” atrás (sumariamente) referida, importa ter em conta que, em causa, não está uma “situação pontual”, pois que provado está que os arguidos efectuaram, em co-autoria, várias vendas de estupefaciente, conduta que desenvolveram por cerca de 2 “meses”, (cfr., factos 15°, 18°, 30° e 31°, a fls. 874-v a 875-v e 1084 a 1085), tudo a demonstrar que muito intenso, e directo, foi o seu dolo, assim como elevado o grau de ilicitude da conduta, a reclamar alguma dureza na reacção penal, (que mesmo assim se situa a 1 ano do meio da sua respectiva moldura).

Por sua vez, e como já se referiu, em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de “remédio jurídico”, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível (e inevitável) margem de apreciação livre reconhecida ao Tribunal de julgamento.

Com efeito, e como de forma repetida e firme temos também vindo a entender “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., Ac. de 07.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020 e de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020).

Dest’arte, e não se apresentando completamente desproporcionadas as penas aos (1° e 2°) arguidos A e B aplicadas, imperativa é a decisão de improcedência dos seus recursos.

–– Passemos agora para o recurso do (3°) arguido C.

Como se viu, foi este (3°) arguido condenado pela prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pugnando o mesmo pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 11° da dita Lei, e consequente redução da pena aplicada.

Porém, e como em situações análogas já tivemos oportunidade de consignar, outro se apresenta que deva ser o “enquadramento jurídico” da factualidade provada.

Com efeito, os autos demonstram que o ora recorrente efectuou “várias” aquisições de “Cocaína” para o seu consumo através do (2°) arguido B, (pelo menos, dez vezes, cfr., “facto provado” n.° 29 e 39).

E, nesta conformidade, (e como temos vindo a entender), em causa está o (tipo de) crime de “consumo ilícito de estupefacientes (agravado)” e não o de “tráfico”; (cfr., v.g., o Ac. de 16.01.2019, Proc. n.° 112/2018, cujo teor aqui se dá como reproduzido, e, mais recentemente, o de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020).

De facto, e como nestes arestos citados tivemos oportunidade de considerar, «A detenção de estupefaciente para consumo em quantidade que exceda cinco doses diárias integra o crime de “detenção ilícita de estupefaciente para consumo (agravado)”», p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 e 2 e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016.

Em causa estando assim a pena prevista para o crime de “tráfico”, ou seja, de 5 a 15 anos de prisão, quid iuris?

Cremos porém que inviável é prosseguir para a decisão respeitante à “pena” que ao ora recorrente deve caber, (isto, sem prejuízo do estatuído no art. 399° do C.P.P.M.).

Eis o porque deste nosso entendimento.

As Instâncias recorridas consideraram que “provado” estava o que da acusação pública já constava, no sentido de que o ora recorrente tinha o “hábito de consumir droga”; (cfr., art. 8° da acusação e o correspondente “ponto 8” da matéria de facto; a fls. 869-v e 874).

Porém, e como apreciando idêntica questão já teve este Tribunal oportunidade de ponderar, «O (mero) “hábito de consumo de drogas” e que se pode também apelidar de “consumo habitual”, (ou “com – alguma – regularidade”), por contraposição a um “consumo pontual”, (ou ocasional), não se equipara a uma situação de “consumo continuado e prolongado” que origina no consumidor um “síndrome de dependência”, (vulgo, “toxicodependência”), ou “vício bioquímico”, que se caracteriza por um comportamento que cria uma “relação de dependência com a droga”»; (cfr., o Ac. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020).

E, nesta conformidade, não se alcançam as razões de se ter dado tal “matéria” como “provada”, (transpondo-se a mesma directamente do texto da acusação), consignando-se, depois, em sede de fundamentação da convicção, que nas declarações que o recorrente prestou na audiência de julgamento alegou que “começou a consumir estupefaciente em 2016”, e que “padecia de «toxicodependência»”, (cfr., fls. 878), sem mais nada se dizer, nomeadamente, se tais factos – foram efectivamente investigados e ponderados, e se – deviam ser considerados “provados”, (ou “não provados”), pois que, como igualmente, já tivemos oportunidade de considerar, “O (comprovado) estado de “toxicodependência” do arguido pode viabilizar a consideração de que a “ilicitude dos factos” se mostra “consideravelmente diminuída” para efeitos do art. 11° da Lei n.° 17/2009, com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016”; (cfr., o citado Ac. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020).

Dest’arte, natural e necessária se nos apresenta a conclusão de que, na parte e matéria em questão, padece a decisão recorrida do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, (cfr., art. 400°, n.° 2, al. a) do C.P.P.M.), que é de “conhecimento oficioso”, (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2001, Proc. n.° 11/2001, de 30.05.2002, Proc. n.° 7/2002, de 01.11.2017, Proc. n.° 47/2017 e de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020), o que torna imperativo o reenvio dos autos para novo julgamento e posterior (nova) decisão nos termos do art. 418° do mesmo C.P.P.M..

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos dos (1° e 2°) arguidos A e B, ordenando-se o reenvio dos autos ao Tribunal Judicial de Base para, nada obstando, e da forma adequada, se proceder à reforma da decisão proferida em relação ao (3°) arguido C nos exactos termos consignados.

Pagarão os (1° e 2°) recorrentes A e B, a taxa individual de justiça de 8 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor do (2°) arguido B no montante de MOP$2.000,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 27 de Novembro de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) [Sem prejuízo do entendimento que expus na declaração de voto que anexei ao Acórdão de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020].
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 193/2020 Pág. 22

Proc. 193/2020 Pág. 21