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Processo nº 181/2020 Data: 27.11.2020
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Providência Cautelar.
Restituição provisória da posse.
Pressupostos processuais.
Legitimidade passiva.
Suprimento.
“Dever de gestão processual”, (art. 6° do C.P.C.M.).



SUMÁRIO

1. São considerados como pressupostos da restituição provisória da posse:
- a existência de posse, (na concepção objectiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção);
- seguida de esbulho;
- com violência.

2. Em conformidade com o disposto no art. 6°, n.° 2 do C.P.C.M., o Juiz deve providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, (sempre que essa falta seja susceptível de suprimento).

3. Assim, adequada não é a (imediata) “revogação” da decisão que tinha ordenado a restituição provisória da posse ao recorrente por suposta “ilegitimidade passiva dos requeridos”, sem que, previamente, seja o mesmo convidado a regularizar a instância quanto a tal questão.

4. O Juiz, na condução do processo, deixou de desempenhar o papel de (mero) “árbitro”, “neutro” e “distante”, devendo, antes, assumir-se como um “interveniente activo na gestão do processo”, com efectivos poderes de direcção e de gestão do processo, de forma a ultrapassar obstáculos (formais) com vista a se alcançar uma “decisão de mérito”.

O relator,

José Maria Dias Azedo




Processo nº 181/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por decisão do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base de 06.11.2019, decretou-se a providência de “restituição provisória da posse” (de um espaço de estacionamento) requerida por A, (甲), com os restantes elementos dos autos; (cfr., fls. 46 a 51 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Na sequência da inquirição das testemunhas pelos (1° e 2°) requeridos B (乙), e C (丙), indicadas na oposição efectuada em contraditório subsequente ao referido decretamento foi a aludida providência revogada; (cfr., fls. 104 a 109).

*

Em sede do recurso que o requerente interpôs do assim decidido proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 11.06.2020, (Proc. n.° 427/2020), negando provimento ao recurso; (cfr., fls. 186 a 192).

*

Ainda inconformado, traz o presente recurso, pedindo a revogação do Acórdão recorrido com a manutenção da providência decretada; (cfr., fls. 214 a 225).

*

Urge decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão indicados como “provados” os factos seguintes:

“O local onde o requerente estacionou o veículo foi uma das entradas e saídas do parque de estacionamento do [Edifício(1)], Fase I, II e III, situado na [Rua(1)]. (1º)
O local onde requerente estacionou o veículo não foi marcado como uma fracção autónoma. (2º)
Em 24 de Setembro de 2018, o pessoal do Corpo de Bombeiros de Macau foi ao parque de estacionamento do [Edifício(1)], Fase III, para fazer inspecção de segurança contra incêndio. Durante o período, descobriu um veículo particular estacionado numa das entradas e saídas do parque de estacionamento do prédio, o pessoal do Corpo de Bombeiros tomou medida para aconselhar o proprietário do veículo a não estacionar o veículo na saída de emergência, de modo a não afectar as condições de segurança contra incêndio do parque de estacionamento. (3º)
Para resolver o problema de estacionamento de veículo na saída de emergência, foi realizada, em 8 de Janeiro de 2019, a reunião da assembleia geral do condomínio do [Edifício(1)], Fase III, Bloco I, tendo nessa reunião sido aprovada a deliberação relativa à aplicação da medida para resolver a questão de obstrução, de longo prazo, de passagem por causa do estacionamento ilegal. (4º)
Os dois requeridos são membros da comissão de administração do [Edifício(1)], Fase III, Bloco I, com mandato de 30 de Maio de 2018 a 29 de Maio de 2020. (5º)
Os dois requeridos colocaram os objectos pesados no lugar de estacionamento para executar a deliberação aprovada pela assembleia geral de condómino em 8 de Janeiro de 2019. (6º)
Os dois requeridos executaram a deliberação da assembleia geral de condomínio, para benefício do edifício como um todo, colocaram os objectos pesados no espaço envolvido no caso, a fim de evitar que o requerente estacionasse o veículo na saída de escape do edifício. (7º)
Os dois requeridos nunca intimidaram o requerente, nem recorreram à violência para fazer com que o requerente se submetesse. (8º)
O veículo estacionado pelo requerente obstruiu essencialmente a passagem de outros moradores, tornando outros moradores extremamente inconvenientes. (9º)
O 1º requerido, em representação da assembleia geral de condomínio, aconselhou, por várias vezes, o requerente, mas acabou por falhar. (10º)
O requerente adquiriu, por escritura de 7 de Agosto de 1990, a fracção autónoma denominada HCC/V, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nºXXXXX, a fls. 119, do livro BXX, sita na [Rua(1)], nº22, [Edifício(1)], Fase 2, em Macau, conforme bem se alcança da cópia da respectiva certidão que se junta com o requerimento inicial e aqui se dá, para todos os devidos e legais efeitos, por integralmente reproduzida (doc. 1). (11º)
Na ocasião da compra, a agência imobiliária que lhe vendeu a fracção indicou-lhe também o local – o espaço preciso - onde podia estacionar a sua viatura. (12º)
Na Conservatória do Registo Predial de Macau, não havia registo de lugares de estacionamento que se encontrassem afectos a qualquer unidade habitacional do imóvel. (13º)
Pelo menos, desde a data da aquisição referida no item n.º11 que o requerente ali tem tido a sua residência, e estacionado a sua viatura automóvel no dito espaço - dentro da área do imóvel destinado ao estacionamento. (14º)
Tal estacionamento sempre foi público e pacífico. (15º)
Sendo que o requerente até pago, para o condomínio do [Edifício(1)], Fase 2, e por via desse estacionamento, a quantia de mop$120,00 (cento e vinte patacas) mensais. (16º)
Pouco tempo depois da chegada do requerido D, ele ao [Edifício(1)], fase 3, começou a estacionar os seus ciclomotores, todos eles registados em nome do D, (cfr. docs. 3, 4, 5 e 6 juntos com o requerimento inicial) em parte da área que o requerente sempre utilizou para estacionar o seu veículo. (17º)
O requerente protestou então contra esse facto, lembrando-lhe, através de um aviso, em língua chinesa, que afixou numa das colunas do edifício, que aquele espaço era o espaço que o ora requerente utilizava para estacionar o veículo e que, portanto, não estacionassem ali os seus motociclos. (18º)
O 3º requerido ignorou o pedido do requerente. (19º)
O carro do requerente foi riscado nas zonas laterais, mormente na que se situa do lado esquerdo da viatura, sendo que até chegou a encontrar um dos pneus dianteiros furado. (20º)
Ainda recentemente (entre 10/09/2019 e 18/09/2019), a sua viatura voltou a ser vandalizada, nos guarda–lamas da frente e da retaguarda, do lado esquerdo do veículo. (21º)
Em 10/09/2019, ao entrar na área de estacionamento do edifício onde reside, deparou com 2 recipientes metálicos, ligados por correntes fechadas a cadeado, cheios de uma matéria que lhe pareceu areia, e pedras (cfr. doc. 10 junto com o requerimento inicial). (22º)
Recipientes esses que impediram, e continuam ainda a impedir, que o requerente estacione a sua viatura. (23º)
Recipientes metálicos, acima descritos foram colocados pelos 1º e 2º requeridos. (24º)”; (cfr., fls. 188-v a 190 e 8 a 9 do Apenso).

Do direito

3. O presente recurso tem como objecto o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Base com a qual se revogou anterior decisão que tinha ordenado a “restituição provisória da posse” de um lugar de estacionamento ao requerente, ora recorrente.

Vejamos que solução adoptar.

Como que se deixou relatado, os presentes autos iniciaram-se com a petição pelo ora recorrente apresentada no Tribunal Judicial de Base pedindo que, sem a audiência prévia dos (então, 3) requeridos, se desse como provado que os mesmos, por “esbulho”, ocuparam e impedem (ilicitamente) o estacionamento da sua viatura no lugar onde habitualmente, e desde 1987, o vinha fazendo, devendo assim ser-lhes ordenada a restituição provisória da posse deste espaço; (cfr., fls. 2 a 11).

Ora, os Tribunais existem para afirmar e proteger os direitos por Lei reconhecidos às pessoas.

Porém, esta função, para ser eficaz, implica muitas vezes a rápida defesa de direitos ou interesses que, com a habitual e normal demora dos processos, poderiam ficar – irremediavelmente – prejudicados.

Daí se consagrar, logo no art. 1°, n.° 2, do C.P.C.M. que:

“A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.

Infere-se assim – da parte final – do normativo em questão que a (principal) função das (aí referidas) “providências” é de evitar a perda da utilidade do efeito jurídico-prático pretendido pelo autor entre o momento em que este recorre ao Tribunal e o momento em que é proferida decisão que lhe reconhece a existência do seu direito.

No que diz respeito às suas características, comum é dizer-se que estas “medidas” são “provisórias”, pois que visam a composição provisória do litígio até à decisão final na acção principal, sendo também “instrumentais”, porque dependentes do processo principal, e “sumárias”, dada a simplicidade no seu processamento.

Atentas estas “características” de “provisoriedade”, “instrumentalidade”, e “sumariedade”, considerava Manuel de Andrade que “através do mecanismo próprio destes procedimentos, pretendeu a lei seguir a linha média entre dois interesses: o de uma justiça pronta, mas com o risco de ser precipitada; e o de uma justiça cauta e ponderada, mas com o risco de ser platónica por não chegar a tempo”; (in “Noções Elementares do Processo Civil”, pág. 10).

Estes “procedimentos” são “especificados”, se especialmente previstos na Lei, porém, sendo a realidade da vida complexa, e não se podendo abarcar todas as situações com “risco de lesão”, prevêem-se também procedimentos “não especificados”, (inominados ou comuns).

No que toca à sua “finalidade”, podem ser agrupados em duas categorias distintas: os “conservatórios” e “antecipatórios”, consoante visem manter inalterada a situação existente ou prevenir um dano, obtendo-se, adiantadamente, a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício; (sobre o tema, vd., A. dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 624, Jorge Augusto Pais de Amaral in, “Direito Processual Civil”, pág. 32, e A. Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, pág. 166 e segs.).

Atenta a providência pelo ora recorrente pretendida e agora em questão – e que é especificada e antecipatória – vejamos.

Preceitua o art. 338° do C.P.C.M., (respeitante à “Restituição provisória de posse”), que:

“No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.

São assim considerados como pressupostos da restituição provisória da posse:
- a existência de posse, (na concepção objectiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção);
- seguida de esbulho;
- com violência; (cfr., v.g., Menezes Cordeiro in, “Direitos Reais”, Vol. II, pág. 833).

O “esbulho” corresponde a um acto pelo qual alguém priva outrem da posse de uma coisa determinada.

Há esbulho, para efeito de aplicação do art. 338° do C.P.C.M., sempre que alguém se vê privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar a fazer; (cfr., v.g., Manuel Rodrigues in, “A Posse”, pág. 363, e Moitinho de Almeida in, “Restituição da Posse e Ocupações de Imóveis”, pág. 100).

No esbulho, o terceiro não permite que o possuidor actue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.

Quanto à “violência”, e como já Alberto dos Reis defendia: “tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor, (…) a violência pode ser física ou moral; é esbulho violento o que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; é também violento o esbulho obtido por coacção moral, proveniente da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública”; (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 670, e Lebre de Freitas in, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 78, onde considera que “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador”).

Assim, será de considerar violento o esbulho, quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios (ou à natureza dos meios) usados pelo esbulhador.

Nos termos do art. 339° do mesmo código:

“Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.

Nesta conformidade, com a celeridade devida, (dada a “natureza urgente” da dita providência, cfr., art. 327° do C.P.C.M.), após inquirição das testemunhas pelo requerente arroladas, (e sem a referida “audiência dos requeridos”), proferiu o Tribunal Judicial de Base a decisão de 06.11.2019, onde, dando como verificados os pressupostos do transcrito art. 338°, isto é, considerando como – indiciariamente – provado que o ora recorrente tinha sido esbulhado e privado do uso do seu reclamado lugar de estacionamento por parte dos (1° e 2°) requeridos B e C, ordenou-lhes a requerida restituição, (absolvendo o 3° requerido D do pedido por nada se ter apurado em relação ao mesmo; cfr., fls. 46 a 51).

Todavia, na sequência do assim decidido, e em face da “oposição” pelos 1° e 2° requeridos apresentada nos termos do art. 330° do C.P.C.M., (cfr., fls. 56 a 59), veio o Tribunal a revogar a sua anterior decisão; (cfr., fls. 104 a 109).

Em essência, (e em face do alegado na dita oposição), entendeu-se que os (1° e 2°) requeridos eram “parte ilegítima”, na medida em que se considerou que quem devia figurar como demandada era a “Administração do Condomínio” do Edifício onde se situava o aludido “parque de estacionamento” por ser sua a “deliberação” que levou à conduta dos aludidos requeridos que, no caso, se limitaram a agir “em representação” (ou como “mandatários”) daquela.

E assim, na procedência da “excepção de ilegitimidade” por estes na dita oposição invocada, a referida “revogação da decretada providência”.

Em sede do recurso do assim decidido para o Tribunal de Segunda Instância, veio-se a proferir o Acórdão objecto do presente recurso que – centrando a sua apreciação na “adequação da decisão da matéria de facto” – confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Base.

Aqui chegados, identifiquemos as “questões colocadas”.

Pois bem, pelas (alegações e, especialmente) “conclusões” pelo recorrente apresentadas no presente recurso, mostra-se de considerar que o seu inconformismo assenta – em síntese – no seguinte: diz pois que com base na decisão de facto, especialmente no seu “ponto 4°”, inviável é concluir que os (1° e 2°) requeridos são “parte ilegítima”, e que ainda que se considerasse que no processo devesse estar como requerida a “Administração do Condomínio” do Edifício, tal não deveria levar à decisão de revogação da decisão que tinha decretado a providência.

Isto é, na opinião do recorrente, e em síntese, não obstante (indiciariamente) “provado” estar que em Assembleia de Condomínios do Edifício se deliberou no sentido de se “tratar dos carros ilegalmente estacionados …”, tal não permite concluir que a actuação (pessoal) dos ditos requeridos, (ocupando e impedindo o local de estacionamento da sua viatura), constituía uma “execução da dita deliberação”.

Cremos que se deve reconhecer razão ao ora recorrente.

Com efeito, uma deliberação no sentido de “tratar dos carros ilegalmente estacionados”, não implica, de forma necessária, a “ocupação dos respectivos lugares” com o consequente “impedimento da sua utilização”, como efectivamente sucedeu.

Em face do “contínuo” e “prolongado” uso do parque de estacionamento pelo ora recorrente, outra – ou outras – “forma(s)”, podiam – perfeitamente – ser adoptadas como forma de dar execução ao deliberado…

Porém, e seja como for, temos para nós que adequada não foi a decisão de revogação da antes decretada providência de restituição provisória da posse por motivos da referida “ilegitimidade passiva dos requeridos”.

Com efeito, se com base na factualidade alegada em sede de oposição, fosse de considerar que como requerida da providência devia antes, (ou, também), figurar a “Administração do Condomínio”, (e não – apenas – os aludidos requeridos), devia o Tribunal servir-se do “poder-dever” previsto no art. 6° do C.P.C.M., providenciando pelo “regular andamento do processo”.

Passa-se a tentar explicitar este nosso ponto de vista.

Prescreve o referido art. 6° que:

“1. Incumbe ao juiz, sem prejuízo do ónus da iniciativa das partes, providenciar pelo andamento regular e célere do processo, ordenando as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório.
2. O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, se estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.
3. Incumbe ao juiz realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

Comentando tal preceito dizem C. Pires e V. Lima que:

“(…)
2. De acordo com o n.° 1, cabe ao juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo, sem prejuízo do ónus da iniciativa das partes. A inovação do dever imposto ao juiz reside no dever de celeridade, tendo em atenção que a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter uma decisão em “prazo razoável” (art. 1.°, n.° 1).
Anteriormente, dispunha-se que “a iniciativa e o impulso processual incumbem às partes” (art. 264.°, n.° 1 do CPC de 1961). Agora acentua-se que o poder de direcção do processo a cargo do juiz não prejudica o ónus de iniciativa das partes. Atendendo a que a epígrafe do art. 3.° refere o princípio da iniciativa das partes, que não é mais do que o princípio do pedido, vertido no seu n." 1, segundo o qual o processo só se inicia por impulso da parte e nunca por iniciativa do juiz ou do Tribunal, parece que foi intenção do legislador abolir o chamado ónus do impulso processual, que alguma utilização indevida por parte de muitos juízes os levava a solicitar excessivamente do autor a remoção de obstáculos ao prosseguimento da acção. Deve, contudo, entender-se que aí onde a lei expressamente exija impulso à parte, não pode o juiz substituir-se a esta.
3. I. O n.° 2 constitui uma das inovações donde ressalta a preocupação do legislador na obtenção, sempre que possível, de uma decisão de mérito: o juiz deve oficiosamente providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que a falta seja sanável.
Como notam J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, “já anteriormente a lei previa a sanação da falta de alguns pressupostos processuais, como a capacidade judiciária (arts. 23.° a 25.°) e a legitimidade em casos de litisconsórcio necessário (art. 269.°). Mas agora, o que era excepção, dependendo de uma lei que expressamente o previsse, torna-se a regra, e a falta em geral dum pressuposto processual deixa de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando o suprimento for impossível ou quando, dependendo ele da vontade da parte, esta se mantiver inactiva”.
(…)”; (in “C.P.C.M., Anotado e Comentado”, Vol. I, pág. 50 e 51).

Por sua vez, e referindo-se a idêntico preceito legal, considera Rui Pinto: “O procedimento é, assim, conduzido pelo juiz para o fito da justiça, e não por uma mera formalidade de actuação burocrática. O escopo da “justa composição em prazo razoável” é o santo e senha dos poderes de promoção oficiosa de diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção (incluindo o suprimento falta de pressupostos processuais) e de adopção de mecanismos de simplificação e agilização processual”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. I, 2018, pág. 67; podendo-se, sobre o tema, e com abundante doutrina, ver também José Igreja Matos in, “A gestão processual: um radical regresso às raízes”, Julgar, n.° 10, pág. 123 e segs.; Miguel Mesquita in, “Princípio da Gestão Processual o «Santo Graal» do Novo Processo Civil?”, R.L.J., Ano 145, Nov-Dez. 2015; e Vera Leal Ramos in, “O princípio da gestão processual: vertente formal e material do princípio”, F.D.U.C., 2017).

Afigurando-se-nos (inteiramente) acertadas as referidas considerações, (e com a sua aplicação ao caso dos autos), cremos que se impõe concluir que adequada não foi a (imediata) “revogação” da decisão que tinha ordenado a restituição provisória da posse ao ora recorrente do seu reclamado lugar de estacionamento, sem que, previamente, fosse o mesmo convidado a regularizar a instância quanto à (questão da) “ilegitimidade passiva” nos termos pelo Tribunal considerados adequados, com vista a se (tentar) alcançar uma decisão de mérito; (igualmente, com abundante doutrina sobre o tema, e expressamente no sentido de que este “poder de gestão processual” é aplicável em sede de providências cautelares, cfr., v.g., M. Carvalho Gonçalves in, “Providências Cautelares Conservatórias: Questões Actuais” e Joana Maria Coimbra Castanheira in, “As Providências Cautelares e os Requisitos para o seu Decretamento”, Univ. Coimbra, 2018, pág. 132 e segs.).

De facto, sendo a dita “ilegitimidade” uma “excepção dilatória”, (cfr., art. 412° e 413°, al. e) do C.P.C.M.), e atento também ao expressamente consagrado no art. 427°, n.° 1, al. a) do mesmo código, de onde resulta dever o juiz “providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, de acordo com o disposto no n.° 2 do art. 6°”, vista cremos que fica a razão do que se deixou consignado.

Com efeito, a “verdade material (autêntica)” é a que deve estar na base da decisão final do Tribunal, que deve atender mais ao “fundo” do que à “forma”, não sendo de se olvidar que a “conquista da verdade” não deve (apenas) depender da observância de um ritual – muitas vezes, excessivamente – formalista.

Na verdade, o Juiz, na condução do processo, deixou de desempenhar o (clássico ou tradicional) papel de (mero) “árbitro”, “neutro” e “distante”, devendo, antes, assumir-se como um “interveniente activo na gestão do processo” – “substancial”, na “condução do processo”, e “instrumental”, na sua “adequação formal” – com efectivos poderes de direcção e de gestão do processo, de forma a que se consiga ultrapassar obstáculos (formais) com vista a poder conhecer e alcançar uma decisão de mérito, e assim, a “realização da justiça material”; (cfr., v.g., José Manuel Borges Soeiro, que na sua “Nota Explicativa” do C.P.C.M., afirma, a propósito, que “para ser efectivada a justiça, necessário se torna que o Juiz, com a colaboração das partes, persiga a verdade, que consiga a realização da justiça material”).

Dest’arte, assim não tendo sucedido, e em face do decidido – pelo Tribunal Judicial de Base e pelo Acórdão ora recorrido que o confirmou – mostra-se pois que o mesmo não é de manter, sendo de se decretar a sua revogação para, nada obstando, pelo Tribunal Judicial de Base se proceder em conformidade.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, devendo os autos voltar ao Tribunal Judicial de Base para reforma da decisão proferida nos exactos termos consignados.

Custas pelos recorridos, (que pugnaram pela improcedência do recurso), com a taxa individual de justiça que se fixa em 5 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 27 de Novembro de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 181/2020 Pág. 2

Proc. 181/2020 Pág. 1