打印全文
Processo n.º 790/2020 Data do acórdão: 2020-12-18 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– uso de cartão de débito falsificado em máquina de ATM
– art.o 257.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal
– crime consumado de uso de documento falsificado
– art.o 244.o, n.o 1, alínea c), do Código Penal
– crime de desobediência
– art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal
– cominação da punição como crime de desobediencia
– absolvição por falta de factos provados concretos
S U M Á R I O
1. O cartão de débito (“debit card”) fica fora da disposição legal da alínea b) do n.o 1 do art.o 257.o do Código Penal.
2. A conduta de usar efectivamente cartão de débito falsificado em máquina de ATM para levantar dinheiro, ainda que com malogro do levantamento, representa a consumação do crime de uso de documento falso, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea c), do Código Penal.
3. Não descrevendo a matéria de facto provada em primeira instância quais as consequências jurídicas de recusa, pelo arguido recorrente, de acatamento da ordem dada a ele pelo pessoal investigador da Polícia Judiciária para feitura da sua identificação, deve ele ser absolvido do crime de desobediência por que vinha acusado, precisamente por falta de factos provados (devido à igual falta na factualidade descrita na acusação pública) concretos alusivos à já cominação da punição nos termos do crime de desobediência (por ser essa cominação exigida na alínea b) do n.o 1 do art.o 312.o do Código Penal).
O relator,
Chan Kuong Seng



Processo n.º 790/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.o arguido): A







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 583 a 607 (com rectificação, a fl. 612, de lapso de escrita sobre a questão de pagamento do serviço de tradução) do Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0386-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, na forma consumada, de três crimes de falsificação de documento (uso de documento falsificado), p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea c), e 243.o, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de um ano de prisão por cada, de um crime de aquisição de moeda falsa (cartão de crédito falso) para ser posta em circulação, p. e p. pelos art.os 256.o, alínea a), e 257.o, n.o 1, alínea b), do CP, na pena de um ano e três meses de prisão, de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art.o 311.o do CP, na pena de nove meses de prisão, e de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.o 312.o, n.o 1, alínea b), do CP, na pena de quatro meses de prisão, e, finalmente, em cúmulo jurídico dessas seis penas de prisão, na pena única de três anos e seis meses de prisão, veio o 1.o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado (no seu essencial) e rogado o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 656 a 677 dos presentes autos correspondentes:
– ele próprio nunca pode ser condenado por prática de três crimes de falsificação de documento, porque não existe qualquer prova concreta sobre isso, e também porque não foi possível apurar que nos dias e horas referidas na acusação ele estaria junto à caixa de ATM para introduzir cartão de crédito a fim de poder obter vantagens; existe efectivamente a certeza de que naqueles dias e naquelas horas houve tentativas de levantamento de cartão de crédito, mas existe total incerteza de que tenha sido ele a fazê-lo; violou assim a decisão condenatória nesta parte o princípio de in dubio pro reo, pelo que deve ser absolvido dos ditos três crimes de falsificação de documento;
– e independentemente disso, houve também, por parte do Tribunal recorrido, errada qualificação jurídica dos factos, porquanto os alegados crimes dele dos “dias 16 e 17” só poderiam ser crimes tentados de passagem de moeda falsa (e não crimes consumados de falsificação de documento), isto na esteira dos acórdãos de recurso do TSI nos Processos n.os 913/2010 e 922/2012, pelo que nesta perspectiva deveria passar a ser condenado por prática de três crimes tentados de passagem de moeda falsa, em sete meses de prisão por cada, e, em cúmulo dessas três penas, na pena única de um ano e dois meses;
– quanto ao crime de desobediência, se não ficou descrito e provado qual o acto que deveria ele praticar, como pode então ter sido condenado por esse crime? e não ficando provado qual a ordem concreta e prática a cumprir por ele, não poderá ser condenado por esse crime; acresce que não se verificando o elemento “obediência devida a ordem ou mandado legítimos” exigido no tipo-de-ilícito objectivo fundamental definido no n.o 1 do art.o 312.o do CP, não pode haver prática desse crime de desobediência; deve, em suma, ser ele absolvido desse crime;
– no tocante ao crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação, a respectiva pena concreta de prisão foi achada de modo excessivo no acórdão recorrido, devendo ele passar a ser punido com nove meses de prisão por prática desse crime;
– de resto, sempre diria que a pena única de três anos e seis meses de prisão determinada no acórdão recorrido também seria excessiva, a qual, por isso, na hipótese de eventual confirmação de todos os crimes por que já vinha condenado em primeira instância, não deveria exceder dois anos e seis meses de prisão;
– e no caso de procedência do recurso, só deveria ser aplicada pena final de um ano e oito meses de prisão.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 685 a 689v dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 712 a 715, pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 583 a 607 (com rectificação, a fl. 612, de lapso de escrita no respeitante ao pagamento do serviço de tradução), cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que o arguido imputou primeiro à decisão condenatória recorrida o vício de erro de valoração da prova no tocante aos factos incriminadores dos seus três crimes de falsificação de documento por que vinha condenado em primeira instância.
Trata-se, materialmente, da questão ligada ao vício de erro notório na apreciação da prova a que alude a alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP).
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, vistos e ponderados em global todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação fáctica da decisão condenatória recorrida, não se vislumbra ao presente Tribunal de recurso que o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal Colectivo recorrido seja patentemente desrazoável ou ilógico, pelo que há que improceder a tese sustentada pelo recorrente a respeito sobretudo dos factos provados 8 e 9 (ou seja, factos dos “dias 16 e 17”, referidos na motivação do recurso).
Outrossim, entendeu o recorrente que fosse como fosse os factos em causa nos três crimes de falsificação de documento por que vinha condenado deveriam integrar somente três crimes tentados de passagem de moeda falsa, tendo referido ele expressamente os factos dos dias “16 e 17”, com citação da tese jurídica veiculada nos acórdãos de recurso do TSI dos Processos n.os 913/2010 e 922/2012, atento o fracasso de levantamento de dinheiro em máquina de ATM.
Não procede o recurso também nesta parte, porque os factos referidos respeitam à introdução de cartão de débito (debit card) falsificado em máquina de ATM, e não de cartão de crédito, pelo que fica prejudicada a tese jurídica do recorrente de verificação de crime tentado de passagem de moeda falsa.
Aliás, o Venerando Tribunal de Última Instância, no seu douto Acórdão de 8 de Janeiro de 2014 do Processo n.o 72/2013, já se pronunciou sobre a questão de cartão de débito, no sentido de que o cartão de débito fica fora da disposição legal da alínea b) do n.o 1 do art.o 257.o do CP, e de que a conduta de contrafazer cartão de débito deve integrar o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea a), do CP.
No caso do recorrente, os factos provados 8 e 9, 10 e 16 (primeiro parágrafo) sustentam bem a correcta condenação dele como autor material de três crimes consumados (e não tentados) de uso de documento falso (uso de cartão de débito falso), por que já vinha condenado em primeira instância. É que não obstante o malogro do levantamento de dinheiro em máquina de ATM, ele já usou efectivamente três cartões de débito falsos (mencionados detalhamente nos factos provados 8 e 9) para efeitos de levantamento de dinheiro em máquina de ATM.
Por outro lado, pediu o recorrente a absolvição do crime de desobediência.
No caso, os factos provados 15 e 16 (último parágrafo) não descrevem quais “as consequências jurídicas” de recusa, pelo arguido recorrente, da ordem dada a ele pelo pessoal investigador da Polícia Judiciária para feitura da sua identificação. Deveria ter havido aí menção de que o arguido ficou advertido pelo mesmo pessoal investigador de que a recusa de acatamento de tal ordem o incorreria na prática do crime de desobediência.
Assim sendo, por falta de factos provados (devido à igual falta na factualidade descrita na acusação pública) concretos alusivos à já feitura da cominação da punição nos termos do crime de desobediência (cominação esssa exigida na alínea b) do n.o 1 do art.o 312.o do CP), é de passar a absolver o recorrente da prática do crime de desobediência.
Não deixou o recorrente de suscitar a questão de alegado excesso na medida da pena, relativamente aos crimes de falsificação de documento e de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação, tendo pedido a redução da sua pena única de prisão.
Vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida concreta da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, tendo em conta as prementes elevadas exigências da prevenção geral, opina o presente Tribunal de recurso que não há injustiça notória na imposição, pelo Tribunal recorrido, de:
– um ano de prisão para cada um dos três crimes de falsificação de documento (uso de documento falsificado), p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea c), e 243.o, alínea a), do CP;
– e de um ano e três meses de prisão para um crime de aquisição de moeda falsa (cartão de crédito falso) para ser posta em circulação, p. e p. pelos art.os 256.o, alínea a), e 257.o, n.o 1, alínea b), do CP.
Daí que há que respeitar o julgado quanto a isso.
Resta proceder ao novo cúmulo jurídico dessas quatro penas parcelares de prisão com a pena de nove meses de prisão (não questionada pelo recorrente) fixada no aresto recorrido para um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art.o 311.o do CP.
Ponderando em global os factos desses cinco crimes em causa e a personalidade do recorrente reflectida na prática dos mesmos, é de passar a condená-lo, nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, na nova pena única de três anos de prisão efectiva.
Procede, pois, parcialmente o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, passando, por conseguinte, a absolver o arguido recorrente do crime de desobediência por que vinha condenado, e a condená-lo na pena única de três anos de prisão efectiva, resultante do cúmulo jurídico das seguintes cinco penas parcelares:
– um ano de prisão para cada um dos seus três crimes de falsificação de documento (uso de documento falsificado), p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea c), e 243.o, alínea a), do CP;
– um ano e três meses de prisão para um seu crime de aquisição de moeda falsa (cartão de crédito falso) para ser posta em circulação, p. e p. pelos art.os 256.o, alínea a), e 257.o, n.o 1, alínea b), do CP;
– e nove meses de prisão para um seu crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art.o 311.o do CP.
Pagará o arguido 5/8 das custas do seu recurso, e cinco UC de taxa de justiça correspondente ao decaimento parcial do recurso.
Macau, 18 de Dezembro de 2020.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
___________________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



Processo n.º 790/2020 Pág. 4/14