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Processo nº 127/2020 Data: 30.10.2020
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Crime de perigo.
Co-autoria.
Cumplicidade.



SUMÁRIO

1. O crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” reconduz-se à categoria dos designados “crimes de perigo abstracto” e “de perigo comum”.

2. Nos “crimes de perigo abstracto”, a Lei basta-se com a aptidão (genérica) de determinadas condutas para constituírem um perigo que atinja determinados bens e valores, baseando-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos para esses bens e valores.

3. Por sua vez, fala-se em “crime de perigo comum” face à multiplicidade de bens jurídicos que se pretende salvaguardar.

4. No caso, a “saúde pública”, como bem jurídico complexo que primacialmente visa proteger “bens jurídicos pessoais”, como a integridade física e a vida dos consumidores, tutelando também valores como a tranquilidade, a liberdade individual e a estabilidade familiar.

5. Qualificam-se, outrossim, como tipos de ilícito “exauridos”, “excutidos” ou de “empreendimento”, e em relação aos quais se considera que o “resultado típico” alcança-se logo com o que normalmente configura a realização inicial do iter criminis, (uma mera tentativa), precisamente porque, já aí, antes de se verificar qualquer lesão efectiva, verificado – consumado – está o perigo dessa lesão.

A tutela penal é, deste modo, antecipada, sendo, assim, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” punido como um “processo”, e não, apenas, como o “resultado de um processo”.

6. Nesta conformidade, e face ao espectro de condutas elencadas no art. 8° da Lei n.° 17/2009, a “distinção” entre comportamentos subsumíveis às categorias da “autoria” ou da “cumplicidade” tende a esbater-se, pois que qualquer “contacto” ou “proximidade com o produto estupefaciente”, (afastada estando uma situação de “detenção para consumo”), pode integrar, (ou tem a potencialidade de integrar), por si só, a tipicidade do ilícito em causa.

7. A actuação do “cúmplice” não pode ir além do (mero) auxílio, (material ou moral).

Isto é, o cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio sem tomar parte nele.

8. Não se mostra de considerar cúmplice, mas “co-autor” do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, aquele que, (como o recorrente), faz a viagem combinada e juntamente com outro agente de Hong Kong para Macau para aqui levar a cabo tal actividade com o propósito de obter vantagens económicas, instalando-se ambos num quarto de um estabelecimento hoteleiro local, agindo com conhecimento de todos os pormenores do plano previamente traçado de forma livre, consciente e em conjugação de esforços, acompanhando e participando activamente em todas as fases do projecto criminoso até a sua (efectiva) concretização.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 127/2020
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 28.05.2020, (Proc. n.° 344/2020), confirmou-se a decisão do Tribunal Judicial de Base que condenou A (甲), (2°) arguido com os restantes sinais dos autos, como co-autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção resultante da Lei n.° 10/2016, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 705 a 726 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Ainda inconformado, traz o arguido o presente recurso, insistindo que a sua conduta não deve ser qualificada como a prática, em “co-autoria” (material), do dito crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” (pelo qual foi condenado), pugnando pela sua condenação como (mero) “cúmplice” de tal crime, com a consequente atenuação especial da pena aplicada; (cfr., fls. 734 a 749).

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Em resposta, diz o Ministério Público que o recurso merece provimento; (759 a 766-v).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 777 a 780).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

Fundamentação

2. Entende o ora recorrente que a sua conduta não deve ser jurídico-penalmente qualificada como a prática, em “co-autoria” (material), do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” pelo qual foi condenado, devendo antes ser considerado mero “cúmplice” do dito crime, e, como tal, beneficiar de uma “atenuação especial da pena”.

Em causa não estando a “decisão da matéria de facto”, (cfr., o Ac. do T.J.B., a fls. 560 a 563-v e o do T.S.I., a fls. 714 a 717), que o próprio recorrente não questiona (e que aqui se dá como integralmente reproduzida), sem demoras vejamos se àquele assiste razão.

Sob a epígrafe “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” prescreve o art. 8° da Lei n.° 17/2009, (redacção da Lei n.° 10/2016) que:

“1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 6 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 1 a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 2 a 8 anos, no caso do n.º 2”.

Nos termos do art. 25° do C.P.M.:

“É punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

E, por sua vez, preceitua o art. 26° do mesmo código que:

“1. É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.
2. É aplicável ao cúmplice a pena prevista para o autor, especialmente atenuada”.

Atento o estatuído nestes últimos dois comandos legais, tem-se considerado que são requisitos essenciais para que ocorra “comparticipação criminosa” sob a forma de “co-autoria”, a existência de (uma) “decisão” e “execução conjuntas”.
O “acordo” pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.
No que respeita à “execução”, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando, apenas, que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista.

Por sua vez, é “cúmplice”, aquele que tem uma actuação à margem do crime concretamente cometido, quedando-se em actos anteriores ou posteriores à sua efectivação. Na cumplicidade, há um mero auxílio ou facilitação da realização do acto assumido pelo autor e sem o qual o acto ter-se-ia realizado, mas em tempo, lugar ou circunstâncias diversas.

Portanto, aqui, (importa salientar), o entendimento vai no sentido de que o cúmplice “fica fora do acto típico” e só deixa de o ser, assumindo então o papel de co-autor, quando participa – ou, como se preceitua no art. 25° do C.P.M.: “toma parte directa” – na execução, ainda que parcial, do projecto criminoso.

Abordando idêntica questão relativamente ao mesmo tipo de crime já decidiu este Tribunal de Última Instância que:

“A comparticipação resulta de conjugação de esforço de várias pessoas. O cometimento de crime torna-se mais fácil mediante a reunião de força e divisão de tarefas entre os agentes.
O elemento essencial de co-autoria é a actuação em conjunto dos agentes com acordo mútuo, praticando uma parte ou a totalidade dos actos integrantes dos elementos típicos de crime, com vista ao mesmo objectivo criminoso.
“A co-autoria exige, pois, a verificação do elemento subjectivo (uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado criminoso) e do elemento objectivo (uma execução igualmente conjunta, não sendo, porém, indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar).”1
No pressuposto de verificação deste elemento subjectivo, são imputados como autores todos os agentes que praticam actos integrantes dos elementos típicos de crime, seja qual for a parte destes elementos a que a sua actuação respeita”; (cfr., o Ac. de 08.06.2005, Proc. n.° 13/2005, podendo-se, também, sobre a mesma matéria e questão ver o Ac. de 24.11.2010, Proc. n.° 61/2010 e, embora em relação a outro tipo de crime, o Ac. de 18.07.2007, Proc. n.° 31/2007).

Aqui chegados, que dizer?

Cremos que a “matéria de facto” (em relação ao ora recorrente) apurada justifica a “qualificação jurídico-penal” efectuada pelas Instâncias recorridas.

Importa salientar que da mesma resulta – claramente – que o ora recorrente “acordou”, (expressamente), com o outro (1°) arguido dos autos, (B), que iriam colaborar entre si dedicando-se à venda ilícita de estupefacientes em Macau a mando de um outro indivíduo a fim de obterem vantagens patrimoniais, que para tal efeito deslocaram-se propositadamente juntos de Hong Kong para Macau onde se instalaram no mesmo quarto de uma unidade hoteleira, e que, posteriormente, em colaboração de vontades e esforços, agindo livres e voluntariamente e em conformidade com o acordo e plano inicial, “procederam, nos dias 8 e 9 de Abril de 2019, a mais de 20 entregas de Cocaína”; (cfr., matéria de facto referida, e em especial, o ponto 4°).

Poder-se-á, (certamente), como é opinião do ora recorrente, dizer que o assim dado como provado se apresenta “curto” para a “decisão de direito” proferida no sentido da sua condenação.

Porém, – e ainda que se admita que a factualidade dada como assente poderia ser mais explícita – outra se apresenta ser a nossa opinião.

O crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” reconduz-se à categoria dos designados “crimes de perigo abstracto” e “de perigo comum”.

E, como sabido é, nos “crimes de perigo abstracto”, a Lei basta-se com a aptidão (genérica) de determinadas condutas para constituírem um perigo que atinja determinados bens e valores, baseando-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos para esses bens e valores.

Aqui, a perigosidade da conduta típica é presumida pela Lei, constituindo exemplo típico o de “contrafacção de moeda (com intenção de a colocar em circulação)”, independentemente de esta colocação vir a ocorrer; (cfr., art. 252° do C.P.M.).

Por sua vez, fala-se em “crime de perigo comum” face à multiplicidade de bens jurídicos que se pretende salvaguardar; (cfr., v.g., os art°s 262° e segs. do C.P.M., integrados no Capítulo III, precisamente sobre os “crimes de perigo comum”).

No caso, a “saúde pública”, como bem jurídico complexo que primacialmente visa proteger “bens jurídicos pessoais”, como a integridade física e a vida dos consumidores, tutelando também valores como a tranquilidade, a liberdade individual e a estabilidade familiar.

Qualificam-se, outrossim, como tipos de ilícito “exauridos”, “excutidos” ou de “empreendimento”, e em relação aos quais se considera que o “resultado típico” alcança-se logo com o que normalmente configura a realização inicial do iter criminis, (uma mera tentativa), precisamente porque, já aí, antes de se verificar qualquer lesão efectiva, verificado – consumado – está o perigo dessa lesão.

A tutela penal é, deste modo, antecipada, sendo, assim, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” punido como um “processo”, e não, apenas, como o “resultado de um processo”.

Nesta conformidade, e face ao espectro de condutas elencadas no art. 8° em questão, a “distinção” entre comportamentos subsumíveis às categorias da “autoria” ou da “cumplicidade” tende a esbater-se, pois que qualquer “contacto” ou “proximidade com o produto estupefaciente”, (afastada estando uma situação de “detenção para consumo”), pode integrar, (ou tem a potencialidade de integrar), por si só, a tipicidade do ilícito em causa.

Isto dito, e assente estando (nomeadamente) que o ora recorrente agiu em conjugação de vontades e esforços, colaborando com o outro arguido dos autos em conformidade com um plano que acordaram e que concretizaram, e que, assim, efectuaram – consumaram – mais de “20 transacções de Cocaína”, censura cremos que não merece a decisão recorrida.

Na verdade, e ainda que não tenha sido o ora recorrente – o arguido – a efectuar, (directa e pessoalmente), a “entrega do estupefaciente” a terceiros (compradores), dúvidas não há que acordou no projecto adoptado, e que, integrou, acompanhou, e participou, (pessoalmente), em toda a sua execução desde o seu início, vindo para e instalando-se em Macau na companhia do outro arguido, recebendo instruções e registando em documento escrito as doses e quantias respectivas no que toca a encomendas e compras de estupefaciente, manuseando-o, especialmente, aquando da sua embalagem de acordo com as doses “solicitadas”, deslocando-se, juntamente, em todas as ocasiões em que foram efectuadas as transacções, vindo mesmo a ser ambos interceptados por agentes da Polícia Judiciária à chegada do Hotel após uma transacção, e, desta forma, adequado não se mostra de considerar que se limitou a executar um “papel secundário” ou a contribuir com um mero “auxílio” na prática do crime.

Com efeito, e como se disse, cabe salientar que o ora recorrente e o seu co-arguido agiram sempre “juntos”, desde o início até ao fim do plano acordado, assim levando a cabo os seus propósitos criminosos com a concretização da decisão que (juntamente) tomaram, (tendo-se até apreendido estupefaciente destinado à venda no quarto onde ambos se encontravam hospedados), e não é por, (unicamente) no “momento da transacção do estupefaciente”, nesta não participar (directamente), cabendo-lhe, (neste preciso momento), a responsabilidade de, como “vigilante”, assegurar que aquela corresse sem a surpresa das autoridades policiais e com êxito, que afastada deve ficar a sua participação (na prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”) a título de “co-autoria”; (sobre uma situação de “vigilância” e “co-autoria”, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 22.07.2011, Proc. n.° 29/2011).

Diferente poderia ser a situação se o ora recorrente tivesse (v.g.) apenas participado em determinada fase (ou momento) do “processo” (de execução), limitando-se, em conduta pontual, a apoiar, material ou moralmente, o co-arguido dos autos.

Todavia, e como cremos que se deixou demonstrado, in casu, não é esta a situação.

Na verdade, a actuação do “cúmplice” não pode ir além do (mero) auxílio.

Isto é, o cúmplice não pode tomar parte no “domínio funcional dos actos”, limitando-se a favorecer um facto alheio sem tomar parte nele, (não sendo sequer necessário que o autor conheça a ajuda ou colaboração que lhe é prestada).

Por isso, não se mostra de considerar cúmplice, mas “co-autor” do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, aquele que, como o ora recorrente, faz a viagem combinada e juntamente com outro agente de Hong Kong para Macau para levar a cabo tal actividade com o propósito de obter vantagens económicas, agindo com conhecimento de todos os pormenores daquela, de forma livre e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços, acompanhando e participando activamente em todas as fases do projecto criminoso até a sua (efectiva) concretização, o que veio a suceder.

E nesta conformidade, censura também não merecendo a pena decretada, impõe-se a improcedência do recurso com a confirmação do decidido.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 30 de Outubro de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Manuel de Oliveira Leal-Henriques, Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal, Vol. I, 2ª ed., Rei dos Livros, Lisboa, 1995, p. 259.
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