ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, intentou contra B uma acção executiva para pagamento de quantia certa com processo ordinário e requereu depois arresto dos bens pertencentes ao executado e melhor descritos nos autos n.º CV2-19-0022-CEO-A do Tribunal Judicial de Base.
Após a inquirição de testemunhas arroladas pelo requerente, o Mmo. Juiz titular do processo proferiu a sentença, julgando a providência cautelar de arresto procedente e decretando o arresto dos bens do requerido conforme requerido pelo requerente.
Apresentou o executado/requerido a oposição ao arresto, tendo deduzido uma excepção dilatória de incompetência dos tribunais da RAEM, com invocação de violação de pacto privativo de jurisdição destes tribunais.
E por decisão proferida em 25 de Outubro de 2019, “julga-se, …, verificada a excepção de incompetência deste tribunal e, em consequência, absolve-se o requerido da instância cautelar e determina-se o levantamento, após trânsito em julgado deste despacho, do arresto decretado”.
Inconformado com a decisão, recorreu o requerente A para o Tribunal de Segunda Instância, que concordou com a decisão recorrida, na sua íntegra, pelo que, ao abrigo do n.º 5 do art.º 631.º do Código de Processo Civil, negou provimento ao recurso com os fundamentos invocados naquela decisão.
Deste Acórdão vem agora o requerente A recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido em 2 de Abril de 2020 pelo douto Tribunal da Segunda Instância, que confirmou a decisão do TJB no sentido de se julgar a incompetência dos Tribunais da RAEM e, em consequência, absolver o Recorrido ora Requerido da instância cautelar e determinar o levantamento, após trânsito em julgado da decisão, do arresto decretado.
II. Entende o ora Recorrente, salvo todo o respeito pela douta opinião do Tribunal a quo, que o mesmo interpretou mal a referida cláusula 3.3. do Doc. n.º 1 do arresto titulado “Deliberação do Conselho de Administração Sobre a Separação de Accionistas”, violando assim o disposto no art.º 228.º do CC e também o art.º 29.º, n.º 2 do CPC.
III. A cláusula 3.3 do Doc. n.º l do arresto titulado “Deliberação do Conselho de Administração Sobre a Separação de Accionistas” dispõe, na sua parte final, que: “Quaisquer disputas durante a execução deste acordo podem ser resolvidas através da acção contencioso no tribunal de sede de Shangdong Jiahui.”.
IV. Trata-se aqui de uma designação convencional que atribui jurisdição ao Tribunal da sede de [Sociedade], ou seja, ao tribunal da cidade de Jinan da Providência de Shangdong.
V. O sentido que o Tribunal a quo retirou desta declaração negocial através do exercício da interpretação é o de que as partes queriam atribuir jurisdição exclusiva ao Tribunal de Jinan, com a exclusão da jurisdição dos Tribunais da RAEM.
VI. Salvo todo o devido respeito, o sentido retirado pelo Tribunal a quo de tal cláusula não tem um mínimo de correspondência na letra da cláusula em apreço, na medida em que a expressão que foi usada na cláusula é em chinês “可”, a qual tem tradução directa para Português como “PODEM”.
VII. Um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário perante esta declaração negocial, nunca pode chegar a conclusão de que as partes DEVEM / “應” ou “應該”, que estão obrigadas e limitadas a recorrer ao Tribunal de Jinan quanto houver qualquer litígio emergentes deste acordo, e não se encontra na letra da cláusula qualquer referência ou menção de que resulte que a vontade das partes foi retirar ou privar a jurisdição aos Tribunais de Macau.
VIII. Por outro lado, com base na interpretação sistemática do acordo na sua globalidade, resulta igualmente claro que as partes bem souberam expressar a sua vontade, na medida em que as partes usaram, de forma expressa e distintamente, as expressões “PODEM” / e “DEVEM” / “應該” em diversas outras cláusulas do acordo, a título exemplificativo, encontra-se nas cláusulas 1.3 e 2.7 do acordo a expressão “PODEM” (tal como na cláusula 3.3. em apreço), e a expressão “DEVEM” / “應” ou “應該”, pode ser encontrada nas cláusulas 2.9 e 2.10 do mesmo.
IX. Assim, não se verifica aqui qualquer obscuridade ou ambiguidade que pudesse servir para o Tribunal a quo a tirar ou chegar a uma interpretação que seja contrária à vontade expressa das partes no texto do acordo.
X. Do próprio acordo consta expressamente que ambas as partes são residentes permanentes de Macau, e que o ora Recorrido iria prestar como única garantia da dívida um parque de estacionamento sito em Macau e por seu turno, a sociedade [Sociedade] não é parte, nem devedora e nem garante da dívida em causa nos presentes autos, surgindo apenas e na medida em que o empréstimo concedido pelo ora Recorrente ao Recorrido tinha como objectivo ser utilizado como investimento naquela referida sociedade.
XI. Salvo devido respeito, mesmo que da literalidade da cláusula não fosse possível conclui-se que a mesma constitui um mero pacto convencional alternativo, do contexto da mesma seria obrigatório chegar-se a tal conclusão.
XII. Parece-nos que contrário à normalidade seria que dois residentes permanentes de Macau, que celebram um contrato de empréstimo em que o único bem dado de garantia é um bem imóvel sito em Macau, quisessem através de um pacto de jurisdição onde utilizam a expressão “可通過山東嘉滙所在地法院訴訟解決”, privar por completo os Tribunal de Macau de jurisdição,
XIII. Resultando mais conforme com as regras da interpretação literal, sistemática e de experiência comum, que quisessem apenas estender a competência também aos Tribunais da sede da referida sociedade [Sociedade], devendo, consequentemente ser antes entendido como um pacto atributivo de jurisdição ao Tribunal de Jinan, em alternativa ou concorrência com a jurisdição dos Tribunais de Macau.
XIV. Mesmo que se tenha alguma dúvida sobre a natureza do pacto de jurisdição devida à tarefa de interpretação, por força da lei, designadamente do artigo 29.º, n.º 2, funciona sempre a presunção de que a designação é alternativa, assim o entende Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, ps. 125-126, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2008, ps. 192 a 193 , anotação ao artigo 99.º do CPC de Portugal.
XV. Assim, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 29.º do CPC, ainda que não fosse possível apurar-se a vontade real das partes sobre a natureza do pacto de jurisdição, o que por mera cautela de patrocínio se concede, o mesmo deverá forçosamente ser considerado como atributivo de competência ao Tribunal de Jinan em alternativa aos Tribunais da RAEM que serão também competentes para a apreciação e julgamento dos presentes autos.
XI. Donde, salvo devido respeito por melhor opinião, mal andou o douto Tribunal a quo ao decidir como decidiu, em clara violação não só das regras de interpretação plasmadas no artigo 228.º do CC mas também do n.º 2 do artigo 29.º do CPC, devendo, consequentemente, ser revogada.
XII. Caso o esse Venerando Tribunal considere a cláusula 3.3. em causa como um pacto privativo de jurisdição, o que se concede por mero dever do patrocínio, sempre se diga que a mesma é nula por preterição do requisito previsto na alínea c) do n.º 3 do art. 29.º do CPC.
XIII. Ou seja, a cláusula que atribui competência exclusiva ao Tribunal de cidade de Jinan da Providência de Shangdong, atentas as circunstâncias deste caso em concreto, não corresponde a um interesse sério das partes, e envolve inconveniente grave para a outra.
XIX. Com efeito, o contrato celebrado entre as partes, trata-se de um contrato de empréstimo em que o ora Recorrente é o mutuante e o Recorrido, o mutuante, e nos termos do qual o ora Recorrente esgotou as suas obrigações ao entregar o valor mutuado, RMB5,000,000.00, ao Recorrido, e este ficou obrigado a devolver ao Recorrente a quantia mutuada acrescida de juros compensatórios à taxa de 18% ao ano.
XX. Das cláusulas 2.10 e 2.11 do Doc. n.º l do arresto conjugado com Doc. n.º 2 do mesmo resulta que, o Recorrido, para garantia do empréstimo concedido pelo ora Recorrente, assumiu a obrigação de constituir a favor deste uma garantia sobre um parque de estacionamento sito em Macau de que é proprietário.
XXI. Para além da existência desse alegado bem do Recorrido sito em Macau, o ora Recorrente não tem conhecimento da existência dos outros bens fora de Macau de que o mesmo que seja titular, e
XXII. O ora Recorrente está munido de um título executivo e, através dos presentes autos pretende o arresto dos bens de que o Recorrido, residente permanente de Macau, é titular em Macau e sua posterior venda judicial para satisfação do seu crédito, em caso de não pagamento voluntário.
XXIII. Assim sendo, caso o mutuário, neste caso o Recorrido, incumprisse a obrigação de pagamento do empréstimo – como aconteceu – não restaria outra alternativa ao ora Recorrente, na posse do título executivo, que não intentar acção executiva junto dos tribunais de Macau, local onde se encontram os bens do devedor para fazer satisfação do seu crédito.
XXIV. Assim sendo, no caso em apreço, esta designação convencional da atribuição de jurisdição exclusiva ao Tribunal de Cidade de Jinan da Providência de Shangdong não corresponde, obviamente, a um interesse sério das partes (pelo menos não ao interesse do ora Recorrente, que já cumpriu com as suas obrigações decorrentes do contrato e que tem em sua posse um título executivo).
XXV. Ademais, tal designação implica indubitavelmente inconvenientes graves para o ora Recorrente, na medida em que a mesma impede o Recorrente de intentar qualquer acção executiva ou providência cautelar de arresto em Macau, local o onde se encontra a residência habitual do ora Recorrido e os seus bens.
XXVI. Considerando as circunstâncias do caso concreto elencadas supra, para além de não existir um interesse sério das partes, existem também graves inconvenientes para o ora Recorrente na designação da jurisdição exclusiva do Tribunal de Jinan, designação esta que, consequentemente, é nula e que, como tal, deveria ser conhecida e declarada oficiosamente pelo douto Tribunal a quo.
XXII. Ao não ter oficiosamente declarado a referida nulidade o Acórdão recorrido é nulo por omissão na pronúncia, nos termos do disposto na alínea d), n.º l do art. 571.º e do n.º 3 do art. 563.º do CPC e por violação do disposto do disposto na alínea c) do n.º 3 do art. 29.º do CPC.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso, revogando-se a douta Decisão recorrida, e, em consequência, ser a mesma substituída por outra que declara os Tribunais de Macau, ERA, competentes para a presente causa.
Contra-alegou o requerido B, pugnando pela confirmação da incompetência dos tribunais de Macau.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A questão coloca-se em relação à (in)competência dos tribunais da RAEM para apreciar a questão que se discute no procedimento cautelar em causa.
Na tese do recorrente, o Tribunal a quo interpretou mal a cláusula 3.3. da “Deliberação do Conselho de Administração Sobre a Partilha dos Sócios”, violando o disposto no art.º 228.º do CC e também o art.º 29.º n.º 2 do CPC.
Com remissão para os fundamentos invocados na decisão de primeira instância, o Tribunal ora recorrido decidiu confirmá-la, por entender que, como estipulação daquela cláusula, “as partes quiseram privar os tribunais exteriores à China continental da competência para apreciar questões como a que se coloca nos presentes autos”.
Ora, constata-se nos autos que a cláusula em causa surge inserida num documento intitulado “Deliberação do Conselho de Administração sobre a Partilha dos Sócios”, datado de 12 a 15 de Fevereiro de 2017, tendo como assunto um “Acordo sobre os detalhes da operação de transmissão das acções da [Limitada] (adiante designada por Shandong Jiahui)”, incluindo-se na secção 2 (com a epígrafe “Método específico”).
E tem o seguinte teor:
“3-3 O presente acordo é composto por dez exemplares, cada sócio guarda um exemplar e a Shandong Jiahui guarda cinco exemplares, sendo que todos têm o mesmo efeito. Com a excepção da assinatura e data, qualquer manuscrito é nulo. O presente acordo produz efeitos depois da assinatura e carimbo do administrador. Concluída a execução de todas as cláusulas do presente acordo torna-se nulo automaticamente. Caso haja alguma disputa no decorrer da execução do presente acordo, poder-se-á recorrer judicialmente aos tribunais onde está localizada a Shandong Jiahui.”
Será que tal cláusula deve ser considerada como pacto privativo de jurisdição de Macau?
Vejamos.
A título de “Pactos privativo e atributivo de jurisdição”, dispõem os n.º 1 e 2 do art.º 29.º do CPC o seguinte:
“1. As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação material controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
2. A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais de Macau, presumindo-se que seja alternativa em caso de dúvida.”
Daí que a possibilidade de as partes convencionarem pactos de jurisdição, privativos e atributivos.
E “são pactos privativos de jurisdição os que visam retirar, privar, a competência dos tribunais de Macau, em situação plurilocalizada, em que a teriam, face à lei de Macau.
Pactos atributivos de jurisdição são as convenções que concedem competência aos tribunais de Macau, em situação com conexões com várias ordens jurídicas, em que, face à lei de Macau, a não teriam.
…
O n.º 2 do artigo 29.º estabeleceu duas regras:
- A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais de Macau;
- Em caso de dúvida presume-se que a designação é alternativa.
A presunção da competência alternativa parece não ter grande justificação já que, em regra, o que as partes pretendem, quando convencionam um pacto de jurisdição, é atribuir competência exclusiva ao tribunal por elas designado.”1
Na óptica do recorrente, a interpretação feita pelo Tribunal recorrido (e também pelo Tribunal de primeira instância) sobre a cláusula em causa, considerando-a como pacto privativo de jurisdição dos tribunais de Macau, viola o disposto no art.º 228.º do CC e também o art.º 29.º n.º 2 do CPC.
Ao abrigo do n.º 1 do art.º 228.º do CC, “a declaração negocial vale como o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
No caso vertente, estamos perante um pacto de jurisdição, que não é posto em causa pelas partes, sendo apenas discutida a sua qualificação enquanto atributivo ou privativo de jurisdição.
Ora, o crédito que está na base dos presentes autos de arresto está relacionado com a matéria discutida nas cláusulas 2-10 a 2-12 da referida “Deliberação”.
Constata-se na cláusula 2-11 que: “De acordo com o acordado da cláusula 2-10, em 10 de Fevereiro de 2003 A, ajudou o Senhor B a registar a quantia de cinco milhões para efeitos de capital social. Essa verba do investimento é calculada até à data da entrada em vigor desta deliberação perfazendo o total de juros e calculada a uma taxa de 1.5%, tendo o Senhor B vendido os lugares de estacionamento em seu nome a A conforme o valor unitário de avaliação.”.
Posteriormente a esse acordo concluído em Zhuhai, veio a ser realizada uma nova reunião em Jinan, da Província Shandong, no dia 18 de Dezembro de 2017, onde foi acordada a alteração da forma de restituição ao requerente/recorrente A dos anteriormente referidos cinco milhões de renminbis, passando de um parque de estacionamento em nome do requerido/recorrido para uma “capitalização em numerário para pagar os empréstimos e juros.”, concordando este em “hipotecar os lugares de estacionamento correspondentes ao preço unitário do relatório de avaliação e, por cada pagamento, o Sr. A devolve ao Sr. B lugar de estacionamento com o valor correspondente e até 31 de Dezembro de 2018 terminará o reembolso, devendo o Sr. A devolver totalmente os lugares de estacionamento ao Sr. B. Se naquela data o Sr. B não conseguir pagar aquela quantia a tempo, o valor em dívida será compensado com lugares de estacionamento”.
Como se disse, resulta do pacto de jurisdição em causa que “Caso haja alguma disputa no decorrer da execução do presente acordo, poder-se-á recorrer judicialmente aos tribunais onde está localizada a Shandong Jiahui”.
A requerente/recorrente socorre-se do termo “poder-se-á” para sustentar que está em causa uma mera faculdade, justificando assim que se trata de uma competência meramente alternativa com a dos tribunais da RAEM.
À primeira vista, parece que sim.
No entanto, visto o contexto do pacto de jurisdição bem como o circunstancialismo em que foi assinado o mesmo, é de concluir pelo contrário.
Desde logo, não se deve perder de vista que a declaração em causa surge no contexto de um acordo, que se destina a tratar dos assuntos relacionados com a partilha entre os sócios da [Limitada], compreendendo-se a estipulação no sentido de que se houver uma disputa em relação à execução do acordo (que não seja ultrapassada de forma amigável pelas partes), então as partes poderão recorrer aos tribunais “onde está localizada a Shandong Jiahui” .
Tal como repararam os tribunais recorridos, constata-se nos autos que, sendo embora ambas as partes cidadãos chineses residentes em Macau, tanto a primeira Deliberação do Conselho de Administração, em que se encontra inserido o pacto de jurisdição, como o acordo posterior, onde se originou o crédito que o requerente pretende proteger através do arresto, foram celebrados na China interior (a primeira em Zhuhai da Província Guangdong e o segundo em Jinan da Província Shandong) e que o objecto de ambos se reporta à sociedade comercial (Shandong Jiahui) com sede na China interior Shandong Jinan e aos imóveis situados também na China interior.
Ora, afigura-se-nos que as circunstâncias referidas, consideradas em conjunto, se mostram relevantes no apuramento da vontade das partes e do sentido real da declaração feita no pacto de jurisdição, pois, se as partes, ambos residentes de Macau, escolheram a China Interior para constituir sociedade e para assinar a deliberação e o acordo, fazendo no pacto de jurisdição menção expressa a “tribunais onde está localizada a Shandong Jiahui”, é razoável afirmar que eles queriam efectivamente atribuir competência aos tribunais da China interior (mais concretamente os tribunais de Shandong) na resolução de litígios eventualmente surgidos na execução do acordo assinado, afastando tribunais de outra jurisdição. É esta a interpretação dum declaratário normal.
Cremos que a interpretação que assim se faz sobre o pacto de jurisdição em causa corresponde à vontade real das partes.
É de frisar que o pacto de jurisdição, em vez de atribuir a competência por referência aos tribunais de um país ou região, acaba por atribuir a competência de acordo com a “localização” da Shandong Jiahui.
Dessa perspectiva, resulta uma expressa exclusão da competência concorrente de quaisquer outros tribunais onde não esteja localizada a referida sociedade, donde se concluiria estar assim em causa um pacto privativo em relação aos Tribunais da RAEM.
Por outro lado, a expressão “poder” nem sempre confere a possibilidade de fazer escolha entre várias hipóteses.
Cite-se aqui, a título de direito comparado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 20 de Janeiro de 2011, proferido no Processo n.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1, embora a propósito de cláusula compromissória (mas não vemos razão para assim não ser também entendida), em que se diz que o vocábulo “podem, inserto na falada cláusula contratual, não se conexiona directamente com a opção pela competência jurisdicional clausulada, mas apenas com a condição (constante do aludido ponto 8.2) de as partes tentarem uma via conciliatória (acordo amigável, como consta do texto) antes de enveredarem pela contenciosa, e só em caso de frustração de tal via, ficarem livres para (poderem) enveredar pela via contenciosa por recurso à arbitragem, como linearmente se colhe da expressão:
“Caso não seja possível encontrar uma solução amigável…ambas as partes podem, a qualquer altura, recorrer à arbitragem de acordo com os termos abaixo descritos”.
De igual modo, foi dito no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que:
《Um poder, não uma obrigação, na medida em que, conforme pondera Raul Ventura, “liminarmente é de excluir que as partes se obriguem a submeter o litígio a arbitragem, no sentido de ficarem obrigadas a propor a acção, pois, não obstante a convenção de arbitragem, nenhuma das partes é forçada a manter o litígio ou a fazê-lo solucionar; a completa inactividade de ambas as partes quanto ao litígio abrangido pela convenção não viola qualquer obrigação por elas tomada”.
O uso do verbo “poder” conjuga-se igualmente com a formulação do propósito de procura inicial de uma solução conciliatória. Frustrada esta, então qualquer das partes “poderá” recorrer ao tribunal arbitral, cuja formação, composição e funcionamento são desenvolvidamente regulados na cláusula e que se apresenta como o meio de resolução contenciosa do litígio convencionado pelas partes, em detrimento, pois, dos tribunais estatais.
A não exclusividade da jurisdição do tribunal arbitral, ou melhor, a sua concorrência ou alternatividade com a jurisdição do tribunal estadual, para ser considerada por declaratários normais, colocados na posição da A. e da R., careceria de expressão evidente no contrato, a qual não existe.”2.
E no Tribunal da Relação do Porto, decidiu-se que “Quando um artigo estabelece a obrigatoriedade da tentativa de conciliação previamente ao recurso ao tribunal arbitrai, o artigo seguinte, ao dizer que, frustrada essa tentativa, as partes podem recorrer ao tribunal arbitral, deve ser interpretada no sentido de estar aberta a fase da arbitragem, e não como estabelecendo a competência alternativa dos tribunais judiciais.” 3
Concluindo, afigura-se-nos que aquela cláusula 3.3 deve assumir relevância no sentido de afastar a jurisdição dos tribunais da RAEM para julgar a matéria em causa.
Não se verifica o vício imputado pelo recorrente de violação dos art.ºs 228.º do CC e 29.º n.º 2 do CPC.
4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Macau, 11 de Novembro de 2020
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 172; neste sentido, cfr. também Dário Moura Vicente, A Competência Internacional no Código de Processo Civil revisto: aspectos gerais, Aspectos do Novo Processo Civil, p. 89 e Teixeira de Sousa, no seu artigo “Apreciação de Alguns Aspectos da «Revisão do Processo Civil – Projecto”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, 1995, ano 55, Vol. II, p. 371 e 372.
2 Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de Outubro de 2011, Proc. n.º 193098/09.7YIPRT.L1-2.
3 Cfr. Ac. de 13 de Março de 2012, Proc. n.º 3062/10.9TJVNF.P1.
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Processo n.º 146/2020