Processo n.º 916/2020 Data do acórdão: 2021-1-21 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– medida da pena dentro da moldura especialmente atenuada
– fuga à responsabilidade
– art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário
– art.o 94.o, alínea 2), da Lei do Trânsito Rodoviário
– aplicação da pena acessória
– inibição de condução de quem sem carta de condução
– recurso do Ministério Público em desfavor do arguido
– possibilidade da reforma da sentença para pior
– contravenção por condução sem carta do art.o 95.o da Lei do Trânsito Rodoviário
– crime de condução durante o período de inibição de condução
– art.o 92.o da Lei do Trânsito Rodoviário
– medida da pena do crime de favorecimento pessoal
– art.o 331.o, n.o 3, do Código Penal
S U M Á R I O
1. Na medida concreta da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal dentro da respectiva moldura especialmente atenuada, há que ponderar as consequências do caso, que então não chegaram a suportar a tomada da decisão judicial de atenuação especial da pena.
2. Como consequência necessária da condenação no crime de fuga à responsabilidade do art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário, há que impor ao seu agente a pena de inibição de condução prevista no art.o 94.o, alínea 2), desta Lei.
3. Em recurso interposto pelo Ministério Público com incidência na problemática da medida da pena em desfavor do arguido, não se aplica o princípio de proibição da reforma para pior vertido no art.o 399.o, n.o 1, do Código de Processo Penal.
4. Com a indicação da disposição legal que comina a pena principal ficam salvaguardadas as garantias de defesa da pessoa acusada relativamente à aplicação da pena acessória.
5. Não deixa de ter sentido útil a inibição de condução de quem sem carta de condução, uma vez que a condução sem carta de condução conduz à prática da contravenção em especial prevista no art.o 95.o da Lei do Trânsito Rodoviário, enquanto a conduta de condução durante o período de inibição de condução integra a prática do crime de desobediência qualificada previsto no art.o 92.o da mesma Lei, com moldura penal prevista no art.o 312.o, n.o 2, do Código Penal, portanto, com consequências legais da punição nitidamente mais graves do que aquela contravenção.
6. Por decorrência da norma do n.o 3 do art.o 331.o do Código Penal, a pena a que o agente fica condenado no crime de favorecimento pessoal não pode ser superior à prevista na lei para o facto cometido pela pessoa em benefício da conduta de favorecimento.
O primeiro juiz-adjunto vencedor,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 916/2020
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação da decisão sumária de rejeição do recurso)
Recorrente e reclamante: Ministério Público
Recorridos: 1.o arguido A
2.o arguido B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
O Digno Delegado do Procurador veio recorrer da sentença proferida a fls. 224 a 231v do Processo Comum Singular n.o CR3-20-0143-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, condenatória do 1.o arguido A (em 45 dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de quatro mil e quinhentas patacas de multa, convertível em 30 dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição pelo trabalho, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art.o 89.o da Lei n.o 3/2007, da Lei do Trânsito Rodoviário) e do 2.o arguido B (em 120 dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de doze mil patacas de multa, convertível em 90 dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição pelo trabalho, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art.o 331.o, n.o 1, do Código Penal), alegando, na sua motivação apresentada a fls. 237 a 244v dos presentes autos correspondentes, que em face da gravidade da conduta dos dois arguidos essa decisão judicial tinha aplicado penas manifestamente leves (quer quanto à espécie da pena falando quer quanto à dose da pena aplicada), para rogar que, finalmente, o 1.o arguido passasse a ser condenado em um mês e quinze dias de prisão, suspensa na execução por um ano, com pena acessória de inibição de condução (prevista no art.o 94.o, alínea 2), da Lei do Trânsito Rodoviário) pelo período de um ano, e que o 2.o arguido passasse a ser condenado em quatro meses de prisão, suspensa na execução por dois anos.
Ao recurso, respondeu o 2.o arguido, na pena do seu Ex.mo Defensor Oficioso a fls. 257 a 262 dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos para este Tribunal de Segunda Instância, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 275 a 276v dos autos, pugnando pelo provimento do recurso.
Em sede de exame preliminar, proferiu o Ex.mo Juiz Relator do presente processo recursório decisão sumária de rejeição do recurso de fls. 278 a 285, por entender ser o recurso manifestamente improcedente.
Reclamou o Ministério Público dessa decisão sumária para conferência, a insistir, nos termos alegados a fls. 289v a 293v, na procedência do recurso.
Opinou o 2.o arguido, na pena do seu Ex.mo Defensor a fls. 295 a 301, pela manutenção da decisão sumária de rejeição do recurso.
Corridos os vistos, é de decidir da presente causa recursória penal nos termos do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos nos termos do art.o 417.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP), por o Ex.mo Juiz Relator a quem o recurso ficou distribuído ter ficado vencido na votação sobre a decisão da reclamação ora em causa.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. De acordo com a factualidade descrita como provada nas páginas 5 a 7 (a fls. 226 a 227 dos autos) do texto da sentença recorrida:
– na madrugada de 16 de Fevereiro de 2019, o 1.o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro com chapa de matrícula n.o MM-XX-X1 para dar voltas em Coloane, levando com ele nesse veículo o 2.o arguido e C;
– o mesmo veículo tinha sido entregue pelo 2.o arguido ao 1.o arguido para conduzir;
– o 1.o arguido sabia que ele próprio não possuía habilitação para condução de veículo automóvel em via pública;
– o 2.o arguido sabia que o 1.o arguido não possuía habititação para condução de veículo automóvel em via pública;
– no decurso da condução pelo 1.o arguido, o referido veículo MM-XX-X1 embateu, cerca das 06h08m da manhã desse dia 16 de Fevereiro de 2019, por descontrolo, num veículo de reboque estacionado perto do poste de iluminação 932B17, o que causou danificação grave na parte frontal do próprio veículo MM-XX-X1 e danificação numa das partes laterais do corpo do veículo de reboque;
– face ao sucedido, o 1.o arguido, o 2.o arguido e C desceram de imediato do veículo, e após decorridos sete a oito minutos, acabaram por deixar o local, cerca das 06h16m da manhã do próprio dia do acidente;
– cerca das 06h30m, o pessoal bombeiro chegou ao local e descobriu que o veículo MM-XX-X1 estava em fogo, fogo que veio apagado pelo mesmo pessoal;
– em 16 de Fevereiro de 2019, cerca das 09h30m, o 2.o arguido chegou a declarar falsamente ao pessoal policial investigador que tinha feito a entrega, cerca das 03h30m desse dia, do veículo MM-XX-X1, inicialmente conduzido por ele, a um indivíduo de sexo masculino de identidade desconhecida para conduzir;
– em 18 de Fevereiro de 2019, o 2.o arguido, quando interrogado pelo Ministério Público, continuou a declarar falsamente que tinha feito a entrega, cerca das 03h30m do dia 16 de Fevereiro de 2019, do veículo MM-XX-X1, inicialmente conduzido por ele, a um indivíduo de sexo masculino de identidade desconhecida para conduzir;
– ambos os arguidos não têm antecedentes criminais.
2. Segundo a fundamentação jurídica da sentença recorrida, foi decidido atenuar especialmente a pena do crime de fuga à responsabilidade do 1.o arguido nos termos do art.o 66.o, n.o 2, alíneas c) e f), do CP, tendo em conta que ele não era ainda maior à data dos factos, se apresentou activamente ao Ministério Público cinco dias depois do acidente para admitir a prática dos factos, com exibição de atitude sincera e demonstração do arrependimento; e foi decidido também atenuar especialmente a pena do crime de favorecimento pessoal do 2.o arguido, tendo em consideração a ainda não maioridade civil deste à data dos factos.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio o Ministério Público recorrente reclamar para conferência, sob a égide do art.o 407.o, n.o 8, do Código de Processo Penal, da decisão sumária tomada pelo Ex.mo Juiz Relator pela qual lhe foi rejeitado o recurso por manifestamente improcedente.
Observa-se que o Ministério Público pretendeu a agravação da punição dos dois arguidos, rogando a aplicação, a final, da pena de prisão suspensa, apesar de não ter impugnado a decisão judicial, tomada pelo Tribunal recorrido, de atenuação especial da pena dos dois arguidos.
Cabe, pois, decidir materialmente do mérito desse recurso, porquanto a reclamação da decisão sumária de rejeição do recurso não pode implicar a alteração do objecto do próprio recurso.
É, antes do mais, fazer lembrar aqui as seguintes disposições legais da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR):
Artigo 89.º
Fuga à responsabilidade
Quem intervier num acidente e tentar, fora dos meios legais ao seu alcance, furtar-se à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tenha incorrido é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Artigo 94.º
Inibição de condução pela prática de crimes
Sem prejuízo de disposição legal em contrário, é punido com inibição de condução pelo período de 2 meses a 3 anos, consoante a gravidade do crime, quem for condenado por:
1) […];
2) Fuga à responsabilidade, nos termos do artigo 89.º;
3) […];
4) […];
5) […];
6) […];
7) […].
Por outra banda, reza o artigo 331.º do Código Penal (CP) o seguinte:
(Favorecimento pessoal)
1. Quem, total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir actividade probatória ou preventiva de autoridade competente, com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa, que praticou um crime, seja submetida a pena ou medida de segurança, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. […].
3. A pena a que o agente venha a ser condenado, nos termos dos números anteriores, não pode ser superior à prevista na lei para o facto cometido pela pessoa em benefício da qual se actuou.
4. […].
5. […]:
a) […];
b) […].
Para ambos os arguidos, o Tribunal recorrido optou pela aplicação da pena de multa, em vez da pena de prisão.
Como se vê acima, os dois crimes em questão são puníveis, alternativamente, com pena de prisão ou pena de multa.
Sobre o caso dos autos, entende o presente Tribunal de recurso, em sede do art.o 64.o do CP, que como os dois arguidos são delinquentes primários, a pena de multa dá para satisfazer as finalidades da punição.
Pois bem, o art.o 45.o do CP prevê que a pena de multa é fixada em dias, tendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.
No caso, o limite máximo da pena de multa do crime de fuga à responsabilidade já está fixado expressamente em 120 dias na própria norma incriminadora do art.o 89.o da LTR. Assim, a moldura ordinária da pena de multa deste delito penal é de 10 a 120 dias. E com a atenuação especial da pena já decidida pelo Tribunal recorrido, é de aplicar a moldura, especialmente atenuada, de 10 a 80 dias (cfr. o art.o 67.o, n.o 1, alínea c), do CP).
Na medida concreta (aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP) da pena de multa do 1.o arguido dentro dessa moldura especialmente atenuada, há que ponderar as consequências do caso, que então não chegaram a suportar a tomada da decisão judicial de atenuação especial da pena: como não se tratou de um acidente de viação leve, mas sim grave (cfr. a matéria de facto provada acima referida), é de agravar a multa achada na sentença recorrida, no sentido de passar a condenar o 1.o arguido em 75 dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de sete mil e quinhentas patacas de multa, pena de multa essa convertível, nos termos do art.o 47.o do CP, em 50 dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição pelo trabalho.
Por outro lado, como consequência necessária da condenação no crime de fuga à responsabilidade, há que passar a impor ao 1.o arguido a pena de inibição de condução prevista no art.o 94.o, alínea 2), da LTR, que se gradua agora em um ano de tempo.
Com efeito, em recurso interposto pelo Ministério Público com incidência na problemática da medida da pena em desfavor dos arguidos, não se aplica o princípio de proibição da reforma para pior vertido no art.o 399.o, n.o 1, do CPP.
E mesmo que não tenha estado indicada na acusação pública a norma dessa alínea 2), isso também não obsta à aplicação agora dessa pena acessória ao 1.o arguido, dado que tal como já se decidiu no acórdão de recurso de 19 de Fevereiro de 2004 do Processo n.o 294/2003 deste Tribunal de Segunda Instância, com a indicação da disposição legal que comina a pena principal, ficam salvaguardadas as garantias de defesa da pessoa acusada relativamente à aplicação da pena acessória.
E, mais ainda, por hipótese académica falando, não deixaria de ter sentido útil a inibição de condução de quem sem carta de condução, uma vez que a condução sem carta de condução conduziria à prática da contravenção em especial prevista no art.o 95.o da LTR, enquanto a conduta de condução durante o período de inibição de condução integraria a prática do crime de desobediência qualificada previsto no art.o 92.o da LTR, com moldura penal prevista no art.o 312.o, n.o 2, do CP, portanto, com consequências legais da punição nitidamente mais graves do que aquela contravenção.
No respeitante ao 2.o arguido, é de reduzir, oficiosamente, a pena de multa dele, por decorrência da norma do n.o 3 do art.o 331.o do CP, pelo que ele passa a ser condenado em 75 dias de multa pela prática de um crime de favorecimento pessoal, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de sete mil e quinhentas patacas de multa, convertível em 50 dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição pelo trabalho.
Do exposto, resulta a impossibilidade de manutenção da decisão sumária da rejeição do recurso do Ministério Público, recurso esse que acaba por ficar provido parcialmente, posto que essa Digna Entidade Recorrente chegou a alegar que são leves as penas aplicadas na sentença e o presente Tribunal de recurso decide, nos termos acima explicados, agravar a pena da multa do 1.o arguido.
Por fim, nota-se que não há custas pela presente lide recursória, porque apesar da improcedência parcial do recurso, o Ministério Público fica sempre isento das custas, e embora o 2.o arguido tenha defendido a improcedência da reclamação e do recurso, ele não precisa de ser condenado em pagar quaisquer custas por causa da presente lide, porquanto ele acabará por ter a sua pena reduzida nos termos acima decididos, resultado esse que é melhor para ele do que o resultado de manutenção, que ele sempre defendeu na presente lide recursória, da decisão condenatória dele em primeira instância.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar procedente a reclamação do Ministério Público e parcialmente provido o seu recurso, revogando a decisão sumária de rejeição do recurso, passando a condenar os 1.o e 2.o arguidos igualmente em setenta e cinco dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de sete mil e quinhentas patacas de multa, convertível em cinquenta dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição pelo trabalho, e condenando o 1.o arguido na pena acessória de inibição efectiva de condução por um ano.
Sem custas na presente lide recursória.
E fixam em duas mil patacas os honorários totais do Ex.mo Defensor Oficioso do 2.o arguido (pelo trabalho na resposta ao recurso e na resposta à reclamação), a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 21 de Janeiro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan (附表決聲明)
(Relator do processo)
上訴案第916/2020號
表決聲明
作為原來的裁判書製作人,不同意合議庭多數意見,先作以下表決聲明:
首先,檢察院的異議中指出的檢察院已經在上訴中提出了原審法院不應該適用《刑法典》第66條第2款c項和f項所規定的特別減輕情節的上訴理由的主張不符合事實,事實上,檢察院的上訴理由很明顯是認為原審法院在《刑法典》第66條第2款c項和f項所規定的特別減輕情節的基礎上所確定的罰金刑相對於其嚴重的罪過程度屬過輕,應該適用徒刑並可以予以緩刑。
其次,在這個基礎上,裁判書製作人對檢察院的上訴所針對的原審法院的量刑決定進行分析,在遵守禁止雙重衡量的原則下,對未滿18歲的少年的犯罪行為進行量刑時候,完全認同原審法院的量刑考量,並得出檢察院的上訴理由明顯不成立的結論,沒有任何可以質疑的地方。
裁判書製作人維持一直的理解:“兩嫌犯被上訴人均是初犯,作出了屬於未成年犯罪的行為,澳門在對此類犯罪的懲罰以相應社會的需要的時候,更應該以挽救未成年人為出發點,容許法律更多地體現其寬容的一面”,並且在上訴法院對原審法院的量刑的介入僅限於量刑出現明顯違反罪刑相一致或者明顯刑罰不合適的情況的原則下,得出了“原審法院根據第64條所規定的有限選擇非剝奪自由刑的原則,僅選擇罰金刑,我們並沒有看出此舉明顯違背刑罰的懲罰的目的”的結論,原審法院的量刑並沒有明顯過重,應裁定檢察院的異議人理由不成立。
2021年1月21日
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