打印全文
Processo n.º 71/2020
(Autos de recurso contencioso)

Data: 28/Janeiro/2021

Recorrente:
- Associação dos Advogados de Macau

Entidade recorrida:
- Conselho Superior de Advocacia


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Inconformada com a deliberação tomada pelo Conselho Superior de Advocacia, que aprovou o acórdão proferido nos autos de processo disciplinar instaurados contra o advogado estagiário A, o qual veio a ser condenado na pena disciplinar de censura, interpôs a Associação dos Advogados de Macau o presente recurso contencioso de anulação de acto, formulando na petição de recurso as seguintes conclusões:
“A. Tendo em conta os factos acima salientados em sede de alegações, a Recorrente, não considera adequada a medida da pena aplicada, pelas razões que a seguir se expõem.
B. O acórdão ora em causa viola o princípio da proporcionalidade, na parte referente à análise dialéctica entre a culpa do contra-interessado e a medida da pena, fruto, em nosso entendimento, de uma contradição entre a fundamentação e a decisão.
C. Da análise dos factos dados como provados e da sua subsunção aos princípios deontológicos fundamentais da advocacia, conforme se encontra exarado na parte da fundamentação do acórdão ora em crise, resulta um juízo de culpa em grau elevado, resultante de uma conduta a todos os níveis reprovável.
D. Grau de culpa, este, que facilmente se depreende da elevada censurabilidade do comportamento do contra-interessado em duas situações distintas: tanto na falta ao debate instrutório para a qual havia sido devidamente notificado; como aquando da sua notificação para justificar tal falta, altura em que este simplesmente ignorou tal solicitação do tribunal.
E. No ponto 3 da fundamentação do acórdão em causa, faz-se uma análise cuidada e realista dos deveres e princípios deontológicos fundamentais da advocacia, violados pelo contra-interessado com o seu comportamento.
F. No entanto, tanto no último parágrafo da fundamentação, como na parte da decisão, esta elevada censurabilidade do comportamento do contra-interessado não se acha traduzida pela aplicação ao mesmo de uma pena em medida adequada ou proporcional ao grau elevado de culpa que resulta daquela análise.
G. Sendo manifesta elevada intensidade do dolo revelada pelo contra-interessado na sua conduta, esta deveria ser, pelo menos, cominada com uma pena de multa exemplar – em quantia nunca inferior a MOP5.000 (cinco mil patacas), ao invés da pena de censura, apenas a segunda num elenco de seis estabelecido no art.º 8º, n.º 3, do EA e no art.º 41º, n.º 1 do CDA.
H. O facto de o contra-interessado não conseguir acabar o seu estágio, passados mais de catorze anos de o iniciar, já revela indícios de inidoneidade para o exercício da profissão, que o mesmo não demonstra querer servir, talvez porque, até à data, o contra-interessado se conformou apenas com a qualidade de estagiário, porque nenhum prejuízo prático lhe adveio do facto de o mesmo não se ter dedicado, como deveria, à tarefa de concluir o seu estágio.
I. Por outro lado, só a aplicação de uma medida de pena mais elevada no presente caso, como a de multa (pelo menos), uma vez conhecida, poderá desencorajar a ocorrência de comportamentos semelhantes por parte de outros advogados ou advogados estagiários, fazendo-os reflectir sobre a gravidade deste tipo de infracções.
J. Pelo que só assim, ficariam devidamente servidos os princípios de prevenção geral e especial da pena.
K. Não sendo a medida da pena aplicada ao contra-interessado, adequada à gravidade do seu comportamento, o acórdão ora em causa encontra-se ferido do vício de violação do princípio da proporcionalidade.
Termos em que, padecendo a decisão ora recorrida do vício acima invocado, deve a mesma ser anulada por V. Exas., fazendo assim, a devida JUSTIÇA!”
*
Regularmente citada, apresentou a entidade recorrida contestação, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Nos termos da lei, o CSA é o único órgão independente com competência exclusiva para o exercício da jurisdição disciplinar sobre Advogados e Advogados-estagiários.
2. A deliberação do CSA não viola princípios alguns e é justa e adequada à situação factual provada nos autos de Processo Disciplinar.
3. A fundamentação do Senhor Instrutor nomeadamente o seu n.º 3, e na qual o CSA inteiramente se louva, é muito clara em todos os seus aspectos, mormente no que à pena proposta (e aprovada) respeita.
4. O presente recurso não pode nem deve servir de instrumento para de algum modo “punir” um Advogado-estagiário que há mais de 14 anos tem essa qualidade, “falta” que não consta da acusação.
5. No âmbito do processo disciplinar não pode nem deve o Tribunal sindicar a medida da pena ou anular a deliberação que aplicou a pena, sem estar a invadir a margem de liberdade de que goza a Administração, numa área designada de “justiça administrativa”.
6. O Tribunal pode e deve avaliar a legalidade da punição, desde que esta ofenda os critérios de individualização e graduação previstos na lei, ou apreciar os critérios de graduação e os resultados da sua aplicação se forem grosseiros ou ostensivamente inadmissíveis.
7. Não padece de qualquer vício a deliberação do CSA, que aplicou a pena correcta, proporcional e adequada de Censura ao Advogado-estagiário.
Termos em que, deve ser mantida a deliberação primitiva do CSA, assim se promovendo a almejada Justiça!”
*
Citado o advogado estagiário A, na qualidade de contra-interessado para, querendo, contestar, o mesmo não contestou.
Oportunamente, apresentou a entidade recorrida alegações facultativas, reiterando as razões já deduzidas no seu anterior articulado.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, estão devidamente representadas e têm interesse processual.
Não existem questões prévias, excepções nem nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão do recurso:
A é advogado estagiário.
Por Acórdão de 24.10.2019, proferido no âmbito de processo disciplinar, foi o tal advogado estagiário condenado pela entidade recorrida na pena disciplinar de censura, pela prática dos seguintes factos:
- O presente processo foi instaurado por impulso do Tribunal Judicial de Base – Juízo de Instrução Criminal – com fundamento no facto de o Sr. Advogado estagiário, aqui arguido, ter sido nomeado como defensor do arguido B, por despacho lavrado no processo n.º PC1-026-18-2 – processo comum de instrução;
- O referido despacho de nomeação, lavrado no referido processo em 1 de Março de 2018, foi notificado ao Sr. Advogado estagiário arguido por carta registada enviada na mesma data – 1 de Março de 2018;
- Em 16 de Março de 2018, o referido Tribunal notificou o Sr. Advogado estagiário arguido, por carta registada, de que o debate instrutório ficava agendado para o dia 2 de Maio de 2018, pelas 12 horas;
- No mencionado dia 2 de Maio de 2018, apesar de notificado, o Sr. Advogado estagiário arguido não compareceu à diligência agendada e para a qual havia sido atempada e regularmente notificado;
- O referido tribunal ainda tentou contactar telefonicamente o Sr. Advogado estagiário arguido, mas tal revelou-se impossível porquanto o mesmo não estava contactável;
- No dia 3 de Maio de 2018 o Sr. Advogado estagiário arguido foi uma vez mais notificado pelo mencionado tribunal, através de carta registada, desta feita para prestar explicação para a sua ausência à referida diligência;
- Expirado o prazo fixado para justificação, o Sr. Advogado estagiário arguido nada disse;
- Ao não comparecer no dia, hora e local designados para a referida diligência instrutória e, posteriormente, não tendo justificado a sua ausência, o Sr. Advogado estagiário agiu livre e conscientemente, bem sabendo que, com a sua conduta, violava os deveres deontológicos inerentes à sua condição.
*
Aberta vista ao Ministério Público, foi emitido pelo Digno Procurador-Adjunto o seguinte douto parecer:
“Na petição inicial, a Direcção da AAM na qualidade da recorrente pediu a anulação da deliberação tomada pelo Conselho Superior da Advocacia e traduzida em aplicar a pena disciplinar de censura ao advogado estagiário Dr. A (docs. de fls. 13 a 16 verso dos autos), assacando a tal deliberação a violação do princípio da proporcionalidade.
*
De acordo com a doutrina e jurisprudência assentes (a título exemplificativo, vide. Lino Ribeiro, José Cândido de Pinho: Código do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, pp. 90 a 95; Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim: Código do Procedimento Administrativo de Macau Comentado, Almedina 2ª ed., pp. 104 a 105; Acórdão do TSI no Processo n.º 548/2012), o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três máximas ou subprincípios, quais são o da adequação (ou da idoneidade), o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido restrito.
A adequação exige que o acto deva servir o fim em vista do qual a norma jurídica configura o poder que este acto exercita e caracteriza-se pela eficácia do meio utilizado (José Manuel Santos Botelho, Américo Pires Esteves, José Cândido de Pinho: Código do Procedimento Administrativo Anotado e Comentado, Almedina 4ª ed., pp. 67 a 68). Significa o corolário da adequação que a medida adoptada para a prossecução do interesse público deve ser apropriada para a prossecução do fim ou fins a ele subjacentes, e no caso de a medida ser acto administrativo, o conteúdo do acto escolhido tem que constituir um meio adequado à realização do fim ditado pela norma (Lino Ribeiro, José Cândido de Pinho: obra cit., p. 91).
Essas brilhantes inculcas doutrinais aconselham-nos a indagar se a censura aplicada ao advogado estagiário Dr. A pela deliberação em questão for ou não adequada para alcançar o fim subjacente. Para tal efeito, importa ter presente que como as penas penais, as disciplinares têm igualmente por objectivo e finalidade as prevenções geral e especial.
Dado que o Código Disciplinar dos Advogados não exemplifica quaisquer indicadores da correspondência entre as infracções disciplinares e as penas disciplinares, afigura-se-nos que é útil e legítimo in casu chamar à colação as disposições nos arts. 312º a 314º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau aprovado pelo D.L. n.º 87/89/M.
Ressalvado merecido respeito pela opinião diferente, inclinamos a concluir que próxima da repreensão escrita contemplada no art. 312º do apontado Estatuto, a censura consagrada na alínea b) do n.º 1 do art.41º do Código Disciplinar dos Advogados se aplica às infracções leves.
No caso sub judice, estão indubitavelmente provados os seguintes factos: - em 02/05/2018 o advogado estagiário Sr. Dr. A não compareceu ao debate instrutório agendado e para o qual ele havia sido tempestiva e regularmente notificado; - o Juízo de instrução Criminal ainda tentou, naquela altura, contactar telefonicamente o mesmo, mas isso revelou-se impossível porque ele não estava contactável; - em 03/05/2018 ele foi notificado, por via da carta registada, para justificar a sua ausência ao referido debate; - Expirado o prazo fixado pelo MMº Juiz para justificação, ele nada disse; - Ele agira livre e conscientemente, bem sabendo que, com a sua conduta, violou os dever deontológicos inerentes.
Em relação à consequência, estamos convictos de ser penetrante e acertada a observação do ilustre instrutor que apontou: Ademais, veja-se, de um ponto de vista prático (esperando assim ilucidar o participado), o enorme constrangimento que causa com a sua falta porquanto o agendamento de uma sessão no tribunal envolve não apenas o Merítissimo juiz, juízes quando se trata de um colectivo, funcionários, partes do processo, mandatários e outros.
E de outra banda, entendemos ser mais sagaz o douto entendimento de que “Se faltar à sessão agendada pelo Tribunal já é grave, mais ainda é desconsiderar por absoluto um pedido de esclarecimento veiculado pelo Tribunal perante essa falta que apenas ao participado era imputável.”
Ora bem, tudo isto revela incontestável que Dr. A incorreu dolosamente em duas condutas disciplinarmente ilícitas e sancionáveis que, por seu turno, provocam consequência não indiferente. Pois, essas condutas mostram-se grosseiramente indigno da honra e responsabilidade que é inerente a ele como advogado estagiário (art. 1º, n.º 1, do Código Deontológico).
Nestes termos, e com todo o respeito pela melhor opinião em sentido contrário, não podemos deixar de extrair que a censura incorporada na deliberação em questão não é idónea para alcançar cabalmente a prevenção especial e a geral, e assim, essa censura infringiu decerto o princípio da proporcionalidade na sua vertente do corolário da adequação.
*
Recorde-se que que Dr. A praticou dolosamente duas condutas disciplinarmente ilícitas que se traduzem em não comparecer ao debate instrutório para o qual ele havia sido tempestivamente notificado e, de outro lado, em incumprir por completo o mandato pelo qual o MMº Juiz ordenou o mesmo para justificar a não comparência.
Ora, a Decisão constante da deliberação em causa reza: Nos termos expostos, considerando ter o Sr. Advogado estagiário A violado, em autoria material, o dever deontológico previsto art. 16.º n.º 2 do Código Deontológico, em concurso aparente, com o art.1.º do mesmo corpo de normas, deve ao mesmo ser imposta a pena disciplinar de censura. (sublinha nossa)
Com todo o respeito pela melhor opinião em sentido contrário, inclinamos a entender que a supramencionada deliberação enferma ainda do erro da qualificação jurídica consubstanciado em omitir, indevida e ilegalmente, a subsunção da conduta de incumprir o mandato dado pelo MMº Juiz ao A para ele justificar a não comparência.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pela total procedência do recurso contencioso em apreço.”
*
Coloca-se apenas a questão de saber se o acto administrativo impugnado teria violado o princípio da proporcionalidade, na vertente da aplicação da pena disciplinar.
Mais precisamente, assaca a recorrente ao acto administrativo violação do princípio da proporcionalidade, alegando que a pena disciplinar aplicada ao advogado estagiário - pena de censura -, é demasiada leve, sendo, na sua perspectiva, o comportamento do visado bastante desrespeitador do tribunal e dos colegas que nele marcaram presença, para além do prejuízo que a falta de defesa poderá causar ao seu patrocionado, devendo, no seu entender, ser anulado o acto recorrido por enfermar do vício apontado.
Vejamos.
Prevê o artigo 41.º do Código Disciplinar dos Advogados o seguinte:
1. As penas disciplinares são as seguintes:
a) Advertência;
b) Censura;
c) Multa até cem mil patacas;
d) Suspensão de dez dias a cento e oitenta dias;
e) Suspensão de seis meses a cinco anos;
f) Suspensão de cinco anos a quinze anos.

2. As penas previstas nas alíneas c), d), e) e f) do número anterior só serão aplicadas mediante deliberação que obtenha dois terços dos votos de todos os membros do Conselho.
3. Cumulativamente com quaisquer penas, pode ser imposta a restituição de quantias, documentos ou objectos e, conjunta ou separadamente, a perda de honorários.”

Mais determina o artigo 42.º do Código Disciplinar dos Advogados o seguinte:
“Na aplicação das penas deve atender-se aos antecedentes profissionais e disciplinares do arguido, ao grau de culpabilidade, às consequências da infracção e a todas as circunstâncias agravantes ou atenuantes.”

Seguramente, os Tribunais da RAEM têm reiterada e pacificamente decidido que a violação dos princípios gerais da actividade administrativa, incluindo o princípio da proporcionalidade que agora está em causa, só releva no âmbito no exercício de poderes discricionários, e apenas é sindicável pelo Tribunal em caso de erro grosseiro ou utilização de critério manifestamente inadequado.
Estatui-se no n.º 2 do artigo 16.º do Código Deontológico de Advogados que “o advogado deve estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando, para o efeito, todos os recursos da sua experiência, saber e actividade.”
No presente caso, segundo a matéria de facto dada como provada, demonstrado ficou que o advogado estagiário não colaborou com o Tribunal por ter faltado ao debate instrutório, bem como não justificou a sua falta, após devidamente notificado para o efeito.
Perante essa situação, entendemos que não restam dúvidas de que o advogado estagiário violou o dever de zelo previsto no citado n.º 2 do artigo 16.º do Código Deontológico de Advogados. Entretanto, cremos que a entidade administrativa ao apreciar o caso, já teve a oportunidade de ponderar todas as circunstâncias e por isso não aplicou a pena mais leve, que é a pena de advertência, antes escolheu uma pena ligeiramente mais gravosa, que é a pena de censura.
Ademais, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra que a conduta do advogado estagiário, embora seja culposa, tenha causado graves consequências para quem quer que seja, pelo que, somos a concluir que a decisão da entidade administrativa, que aplicou ao advogado estagiário a pena de censura, não está enfermada de qualquer erro grosseiro ou manifesto.
Posto isto, há-de julgar improcedente o recurso contencioso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI acorda em julgar improcedente o recurso contencioso interposto pela Associação dos Advogados de Macau, mantendo o acto administrativo impugnado.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 8 U.C.
Registe e notifique.
***
RAEM, 28 de Janeiro de 2021
Tong Hio Fong
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Mai Man Ieng



Recurso Contencioso 71/2020 Página 35