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Processo nº 589/2018
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 28 de Janeiro de 2021

ASSUNTO:
- Caducidade da concessão do terreno
- Abuso de direito

SUMÁRIO:
- O termo do prazo da concessão provisória sem esta ter sido convertida em definitiva determina inevitavelmente a declaração da caducidade da concessão, o que se traduz numa actividade vinculada da Administração.
- O abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a lei e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões.
O Relator,

Ho Wai Neng
Processo nº 589/2018
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 28 de Janeiro de 2021
Recorrente: Sociedade de Investimento Imobiliário Va Keng Van, S.A.
Entidade Recorrida: O Chefe do Executivo da RAEM

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Sociedade de Investimento Imobiliário Va Keng Van, S.A., melhor identificada nos autos, vem interpor o presente Recurso Contencioso contra o despacho do Chefe do Executivo de 03/05/2018, que declarou a caducidade da concessão do terreno com a área de 8,523m2, designado por lote 2 da Zona D do empreendimento denominado “Fecho da Baía da Praia Grande”, concluíndo que:
1) Objecto do recurso:
A. O presente recurso tem por objecto o acto do Senhor Chefe do Executivo, exarado sobre despacho datado de 3 de Maio de 2018 e tornado público pelo despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas nº 14/2018, publicado no Boletim Oficial de Macau nº 20, II Série, de 16 de Maio de 2018 e notificado à ora Recorrente em 07 de Junho de 2018, que tem por objecto a declaração de caducidade da concessão do terreno com a área de 8523 m2, designado por lote 2 da zona D do empreendimento denominado "Fecho da Baía da Praia Grande", descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 22524 e cujos direitos resultantes da concessão se encontram registados a favor da ora Recorrente por força da inscrição nº 26678F;
B. O acto recorrido valeu-se integralmente e sem reserva, da fundamentação enunciada no Parecer do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 18 de Novembro de 2016, que, por sua vez, se louva no parecer da Comissão de Terras nº 137/2016, segundo os quais, em suma, - lavrando em graves erros quanto aos factos e quanto ao Direito - o Senhor Chefe do Executivo não teria outra alternativa que não a de declarar a referida caducidade, dado a sua ocorrência preclusiva impreterível por mero efeito da lei;
C. As erradas pressuposições de facto em que assenta do acto recorrido justificam, por isso, desde logo, a consideração de toda a factualidade relevante constante do Capítulo III do presente recurso, com o que resulta demonstrado, entre muitos outros factos relevantes, de que, contrariamente ao que invoca a fundamentação do acto recorrido, o prazo máximo legalmente previsto para a concessão provisória de que a ora Recorrente é titular não se encontra esgotado.
2) Quanto aos actos recorridos que rejeitam os pedidos de suspensão e prorrogação dos prazos de aproveitamento e de prorrogação ou renovacão dos prazos da concessão e, bem assim, de troca de terrenos:
a) O não esgotamento do prazo máximo legalmente previsto no artigo 47º, nº 1 da Lei de Terras - A Quaestio Facti;
D. A ora Recorrente é titular dos direitos resultantes da concessão, por arrendamento, sobre o lote de terreno designado por "D2" da Zona D do empreendimento designado por "Fecho da Baía da Praia Grande", descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 22524;
E. Tais direitos foram originariamente outorgados a favor da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A., em 1 de Junho de 1994, por força do Despacho nº 56/SATOP/94, publicado no Boletim Oficial de Macau, II Série, nº 22, de 1 de Junho de 1994, e não em 30 de Julho de 1991, como consta do ponto 1 da fundamentação do acto recorrido e, amiúde, do parecer nº 137/2016, da Comissão de Terras;
F. O contrato outorgado pela escritura pública de 30 de Julho de 1991, revisto pelo contrato titulado pelo Despacho nº 73/SATOP/92 teve por objecto apenas a concessão dos terrenos respeitantes à Zona A do referido empreendimento, e não teve por objecto os terrenos respeitantes às Zonas C e D, cuja concessão apenas foi atribuída em 1 de Junho de 1994;
G. Porque assim foi, é inevitável a conclusão factual de que o prazo contratualmente estipulado para a concessão dos terrenos das Zonas C e D e, em particular, para a concessão dos direitos sobre o Lote D2 não esgotou o, e é antes significativamente inferior ao prazo máximo de 25 anos a que faz referência o Artigo 47º da Lei de Terras.
b) O carácter meramente contratual e disponível da estipulação de prazo interior ao prazo de 25 anos previsto no artigo 47º da Lei de Terras;
H. Resulta expresso e inequívoco do que estatui o no nº 1 do Artigo 47º da Lei de Terras que o prazo da concessão por arrendamento pode ser objecto de acordo entre concedente e concessionário, podendo ser fixado qualquer prazo inicial inferior a 25 anos;
I. Tal significa que, mesmo que se entenda tratar-se de um prazo de caducidade preclusiva, a fixação do prazo inicial da concessão constitui matéria que se encontra na disponibilidade das partes, sem prejuízo da respectiva subordinacão ao limite legal de 25 anos, ou, por outras palavras, o prazo da concessão, até ao limite dos 25 anos estipulado no artigo 47º da Lei de Terras é exclusivamente um prazo contratual e, como tal, disponível para as partes.
J. Deste modo, as partes podem acordar validamente, quer um prazo inicial de concessão de 25 anos, quer um prazo inferior e posterionnente a sua prorrogação, por uma ou mais vezes, desde que o mesmo limite de 25 anos não seja ultrapassado; a tal possibilidade nem sequer obsta o disposto no artigo 48º da Lei de Terras: tal preceito refere-se apenas à renovação da concessão provisória, i.e., à possibilidade de manutenção da concessão para além do prazo máximo legalmente estipulado e não já à implementação do que a Administração poderia validamente ter contratado ab initio;
K. Este entendimento encontra-se expressamente admitido no Acórdão do Tribunal de Última Instância de pelo Tribunal de Última Instância, no seu Acórdão de 6 de Junho de 2018, proferido no processo nº 43/2018;
L. Como tal, pelo menos no limite do máximo legalmente previsto, o interesse das partes na modelacão do prazo de caducidade constitui um interesse disponível, integralmente compatível com o exercício de faculdade de prorrogação ou de renovação do contrato, desde logo como resultado da possibilidade prevista no artigo 322º do Código Civil de a Administração validamente convencionar ou renunciar sobre a caducidade decorrente do prazo de 30 de Julho de 2016;
M. Uma vez que a concessão de que a ora Recorrente é titulares não atingiu o prazo máximo de 25 anos previsto no artigo 47º da Lei de Terras, os actos recorridos lavraram em erro sobre os respectivos pressupostos de facto e de direito, o que determina a respectiva anulação.
c) O carácter absolutamente futuro do objecto das concessões e a consequência de tal caracterização para o apuramento do dies a quo no prazo de caducidade;
N. Acresce, por outro lado, que o objecto dos direitos titulados pelas concessões de que a ora Recorrente é titular, bem como dos demais lotes localizados nas Zonas C e D, apenas se constituiu como bem presente em momento significativamente posterior ao da outorga dos contratos respectivos;
O. O terreno objecto da concessão de que a ora Recorrente é titular, não existia no momento em que a concessão foi inicialmente outorgada, dado que os mesmos teriam que ser conquistados ao mar pela realização de aterros, tratando-se de bens absolutamente futuros, nos termos do disposto no artigo 202º do Código Civil;
P. Tais aterros apenas vieram a estar concluídos em condições de serem aproveitados em 10 de Dezembro de 2001, data em que as obras de aterro das zonas C e D, bem como das infra-estruturas necessárias ao respectivo aproveitamento foram definitivamente recebidas pelo Governo da RAEM;
Q. Sendo inequivocamente válido o negócio sobre coisa futura, a respectiva eficácia constitutiva apenas se verificou no momento em que os referidos lotes se tomaram bens presentes, com existência física e juridicamente autónoma.
R. E, se é assim, e porque é assim, apresenta-se como inevitável a conclusão de que o exercício do direito real titulado pela concessão por arrendamento não é possível juridicamente em momento anterior ao do surgimento do objecto susceptível de assumir o estatuto permanente de objecto de domínio - seja, a coisa, objecto mediato de arrendamento: dado que até então, tais bens não existiam fisica e juridicamente, não podendo sobre os mesmos incidir quaisquer direitos reais, muito menos poderia a Recorrente exercer qualquer dos direitos em que se analisam os direitos resultantes da concessão;
S. Do que resulta, nos termos do disposto no artigo 321º do Código Civil, que o prazo de caducidade não se iniciou enquanto tais direitos não se constituíram e enquanto não puderam ser (legalmente) exercidos;
T. Acresce que, sendo o conteúdo dos direitos resultantes da concessão por arrendamento constituído, em primeiro lugar, por direitos de construção, modificação ou manutenção de uma obra em terreno alheio (cfr. artigo 42º da Lei de Terras), in casu inexistência do terreno em condições de ser edificado representa a impossibilidade legal do exercício de tais direitos, como se comprova pela impossibilidade de obter o licenciamento da construção e cumprimento do demais regime legal aplicável à urbanização e edificação;
U. Em síntese: se o direito concreto não pôde ser exercido antes de 10 de Dezembro de 2001 - data em que o bem objecto da concessão se tomou presente -, o prazo máximo de caducidade previsto no nº. 1 do Artigo 47º da Lei de Terras não pode ser dado como esgotado em 30 de Julho de 2016, ao contrário do que, em erro, consignou a entidade recorrida, justificando-se, pois, também com este fundamento autónomo, a anulação do acto recorrido.
d) Abuso de Direito (a proibicão de venire contra factum proprium) como facto impeditivo da arguição de caducidade;
V. A situação de não aproveitamento do terreno concedidos à ora Recorrente é integral e exclusivamente imputável à RAEM, que impediu esse aproveitamento até à revisão/aprovação de novo Plano de Intervenção Urbanística para as Zona C e D da Baía do empreendimento Fecho da Baía da Praia Grande, que competia à Administração elaborar e aprovar, o que até à data não ocorreu, simplesmente porque esta se mostrou incapaz de o fazer, como reconhecidamente o assume no parecer 137/2016 da Comissão de Terrras, não obstante toda a colaboração que lhe foi prestada pela ora Recorrente e demais concessionários de terrenos das referidas zonas;
W. Não se encontrando esgotado prazo legal máximo da concessão, previsto no artigo 47º da Lei de Terras, a Administração tinha (e tem) a possibilidade de (i) prorrogar o prazo da concessão, pelo menos até ao limite máximo de 25 anos previsto na lei, modificando-o, nos termos do artigo 322º, nº 1 do Código Civil e nos termos consentidos pelo artigo 47º, nº 1 da Lei de Terras, (ii) renunciar à sua invocação, nos termos do artigo 322º, nº 1 do Código Civil, ou, simplesmente (iii) não o invocar para que o mesmo se não tome performante, nos termos do disposto no artigo 296º, aplicável ex vi o disposto no artigo 325º, nº 2, ambos do Código Civil.
X. Deste modo, contrariamente aos pressupostos do acto recorrido, que a Administração tem margem para decidir de outro modo relativamente à possibilidade de declaração de caducidade, fazê-lo, numa circunstância em que o não aproveitamento dos terrenos e, consequentemente, o decurso do respectivo prazo sem que as concessões se tenham tornado definitivas, e, como tal, renováveis, resulta de culpa exclusiva da Administração, constitui, objectivamente e portanto, independentemente das respectivas motivações (do erro em que incorre), uma actuação em manifesto abuso de direito, e como tal, ilegítima, nos termos do disposto no artigo 326º do Código Civil, devendo, também por essa razão, impor-se a anulação do acto recorrido.
e) O reconhecimento do direito como facto impeditivo da caducidade e da respectiva invocação ou conhecimento;
Y. A Administração reconheceu aos titulares de concessões de terrenos nas Zonas C e D, entre as quais a ora Recorrente, o direito de proceder ao aproveitamento dos seus terrenos logo que fosse aprovado o novo plano de intervenção urbanística; ou seja, a Administração reconheceu como subsistentes os direitos concretos fundados nas concessões de entre os quais avulta o de edificação e de manutenção de obra em bem integrado no domínio privado da RAEM.
Z. Tendo o prazo das concessões (30 de Julho de 2016) de que a ora Recorrente são titulares sido um prazo convencionado por contrato (nos limites da lei), aquele reconhecimento constitui, nos termos do disposto no primeiro inciso do nº. 2 do Artigo 323º do Código Civil ("prazo fixado por contrato") o reconhecimento válido e eficaz do direito da Recorrente de proceder ao aproveitamento dos direitos concretamente resultantes dos contratos de concessão, reconhecimento esse que tem como efeito legal o de impedir a caducidade que poderia de outro modo resultar do decurso do referido prazo.
f) A errónea ou duvidosa caracterização dos prazos de concessão como prazos de caducidade em sentido estrito e a sua errada caracterizacão corno prazos de caducidade sobre matéria excluída da disponibilidade das partes;
AA. É sabido que a "importação" da denominação "caducidade" para o domínio do direito administrativo não é isenta de dúvidas, na medida em que sendo este um instituto tradicionalmente civilístico nem sempre este se ajusta aos contornos, função e interesses específicos do direito administrativo, distinguindo-se, por isso, entre a caducidade-preclusiva e a caducidade-sanção;
BB. A distinção entre um e outro tipo de caducidade não assenta na existência/inexistência de um interesse público: ambas são justificadas por tal interesse, sendo que o que as distingue é que, num caso, a caducidade decorre de exigências de certeza, segurança e estabilidade no exercício de direitos (caducidade preclusiva), enquanto que no outro (caducidade sanção), a caducidade é uma consequência do incumprimento de um dever;
CC. Não há nenhum interesse público em que os direitos resultantes da concessão devam ser exercidos dentro de um determinado prazo sob pena de não o poderem ser mais. O que está em causa não é uma necessidade de certeza objectiva no exercício ou não exercício de um direito dentro de um determinado prazo, mas antes - e apenas - a necessidade (ou interesse público) no aproveitamento dos terrenos;
DD. A caducidade, sem possibilidade de renovação, das concessões provisórias prevista nos artigos 47 e 48º da Lei de Terras resulta, fundamental ou principalmente, do não aproveitamento legalmente imposto pelo Artigo 103º da Lei de Terras, ou seja, ainda, do não aproveitamento do terreno, pelo incumprimento pelo concessionário dos deveres que, quanto a tal, legal e contratualmente lhe competiam nos termos do disposto no artigo 103º da Lei de Terras;
EE. Nessa medida, não há nenhum interesse público imperativo, de segurança ou certeza, que imponha que a caducidade deva ocorrer automaticamente, sem verificação das razões do não aproveitamento: se o que está em causa é o aproveitamento do terreno, então a Administração deve poder avaliar e ponderar, sob o ponto de vista do interesse público, se tal circunstância deve determinar a extinção da concessão ou se, ao invés, a mesma não deve caducar até que aproveitamento possa ter lugar;
FF. É, aliás, essa, a razão pela qual a lei prevê que a também a caducidade decorrente do termo da concessão provisória tenha que ser declarada pela Administração (cf. artigo 167º da Lei de Terras) permitindo-lhe, assim, ponderar se a declaração de caducidade corresponde, ou não, ao interesse público;
GG. Ao que acresce, por outro lado, que apenas os terrenos do domínio privado da Administração podem ser objecto de concessão por arrendamento (cf. artigos 7º e 26º da Lei de Terras), ou seja, bens que (sic) "estão sujeitos a um regime de Direito privado e inseridos no comércio jurídico correspondente" tal como resulta, a contrario, da norma do artigo 193º do Código Civil, pelo que se tratam de bens de que a Administração pode dispor livremente, dentro dos limites da actuação administrativa, o que explica, designadamente, a sua liberdade para, dentro do limite máximo previsto no artigo 47º da Lei de Terras, poder acordar no prazo que melhor lhe aprouver;
HH. Do que resulta uma de duas soluções possíveis:
1) que o respectivo regime deva correctamente ser o da caducidade-sanção, caso em que a caducidade terá que ser declarada, mas só poderá ser declarada, após verificação das causas de incumprimento; ou
2) pelo menos, que, a aplicar-se o regime da caducidade-preclusão, se reconheça que a mesma incide sobre direitos disponíveis e, como tal, se lhe tornam aplicáveis as disposições próprias da caducidade relativa a direitos disponíveis, designadamente a necessidade de invocação por aquele a quem aproveita (artigos 296º e 325º, nº 2), a possibilidade de modificação ou renúncia à mesma (artigo 322º, nº 1), aplicação das disposições relativas à suspensão da prescrição (artigo 322º, nº 2) ou a possibilidade de reconhecimento do direito como causa impeditiva da caducidade (artigo 323º, nº 2).
II. Do que resultaria, em particular, quanto a este último regime, a aplicação do disposto no artigo 313º do Código Civil, encontrando-se suspenso, como seria da mais elementar justiça, o prazo da concessão e, como tal, não tendo ocorrido qualquer caducidade.
JJ. Dito de outro modo, se se continuar a sustentar o entendimento de que a caducidade de que se trata seja uma caducidade preclusão, então tem de admitir-se que (i) a respectiva operação possa ser afastada em resultado de negócio válido sobre a mesma (e.g. acordo de prazo de caducidade nos limites do máximo legalmente admitido), (ii) a mesma operação possa ser afastada pelo reconhecimento do direito ou, até, (iii) pela ocorrência de facto(s) que, nos termos gerais de direito, possam ser factos impeditivos (paralisadores) do direito de opor a prescrição.
g) O direito ao prazo convencionado como direito contratual formado sob o imperium da lei antiga e o seu significado em face do que dispõem o artigo 11º do Código Civil e o artigo 215º da nova Lei de Terras;
KK. Os artigos 212º a 216º da Nova Lei de Terras não recobrem toda a matéria para cujo tratamento são relevantes os princípios gerais do direito intertemporal consignados no Artigo 11º do Código Civil, nem, tão pouco, por outro lado, pode entender-se que cada urna das soluções previstas e disciplinadas naqueles mesmos artigos 212º a 216º da Nova Lei de Terras introduzam solução, ou conformes ou contrárias àquelas que resultariam da singela aplicação dos ditos princípios gerais do direito intertemporal;
LL. Pelo que que, para as situações que não se acham reguladas por norma de direito transitório especial e, bem assim, para aquelas relativamente às quais subsistam dúvidas sobre se as nonnas de direito transitório especial são aplicáveis e qual o sentido ou alcance com que as mesmas devam ser aplicáveis, o intérprete deve socorrer-se da disciplina geral do direito transitório enunciada no dito Artigo 11º do Código Civil;
MM. Não é questionável que, sob o imperium da Antiga Lei de Terras as partes podiam convencionar, válida e eficazmente, um prazo a que ficasse subordinado o contrato de concessão, nem é questionável, tão pouco, pelas razões mais acima apontadas, que, mesmo que tal prazo devesse ainda ser entendido como um prazo de caducidade, tal não prejudicava a qualificação dos direitos ao mesmo subordinados como direitos (ao menos parcial ou limitadamente) disponíveis;
NN. Se isto é assim, e é-o inquestionavelmente, é também inquestionável que, na ausência de uma disposição expressa da Nova Lei de Terras em sentido contrárioou seja, em sentido de que a Lei Nova se aplica aos prazos contratados no passado com retroactividade - se terão de ter por salvaguardados os efeitos já produzidos pelos factos ocorridos em momento anterior ao da sua entrada em vigor;
OO. O que significa, concretamente, que: (i) tendo sido validamente contratado um prazo para a concessão e (ii) devendo entender-se que, em momento anterior ao da entrada em vigor da Lei 10/2013, a caducidade associada ao decurso de tal prazo deixou de poder ser invocada pela Administração pelo facto do reconhecimento do direito, (iii) a Nova Lei de Terras que excluísse a relevância de tal reconhecimento (porque, por hipótese, configurasse tal direito como absolutamente indisponível) não poderia, nessa parte, ser aplicada aos contratos de pretérito;
PP. O mesmo ocorre, de resto, por maioria de razão, quanto aos efeitos de convenções modificativas do regime da caducidade que, sendo válidas e eficazes em face da Lei Antiga, hajam produzido o respectivo efeito (interruptivo ou suspensivo) em momento anterior ao da entrada em vigor da Nova Lei de Terras: na medida em que devesse entender-se que a Nova Lei de terras excluísse tais convenções (qualificando-as como inválidas ou como ineficazes porque se devesse entender que a mesma configurasse os direitos respectivos como absolutamente indisponíveis), os efeitos produzidos por tais convenções sob o império da Lei Antiga estarão sempre salvaguardados pelo disposto no nº. 1 do Artigo 11º do Código Civil.
h) O carácter prejudicial do recurso contencioso tramitado sob o número 355/2017 sobre os presentes autos;
QQ. Da procedência dos pedidos formulados pela ora Recorrente no recurso contencioso com os autos de numeração 355/2017 poderá resultar, entre outros, não apenas o reconhecimento da não ocorrência da extinção da concessão de que aquela é titular, como, do mesmo modo, a própria prorrogação da mesma e/ou a atribuição, por troca com a mesma, de outra concessão à ora Recorrente;
RR. Tal resultado prejudicará o objecto do presente recurso, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo Administrativo Contencioso, devendo, como tal, ser determinada a suspensão dos presentes autos até que seja proferida decisão no recurso contencioso com o número 355/2017.
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Regularmente citada, a Entidade Recorrida contestou nos termos constantes a fls. 646 a 664 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Tanto a Recorrente como a Entidade Recorrida ambas apresentaram as alegações facultativas, mantendo, no essencial, as posições já tomadas, respectivamente, na petição inicial e na contestação.
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O Ministério Público é de parecer pela improcedência do recurso, indeferindo-se o pedido da suspensão da instância.
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Por acórdão de 27/02/2020, este Tribunal indeferiu o pedido da suspensão da instância e julgou improcedente o recurso, confirmando o acto recorrido.
Dessa decisão veio recorrer a Recorrente para o TUI e este, por acórdão de 31/07/2020, julgou provido o recurso na parte do indeferimento do pedido da suspensão da instância, revogando o acórdão recorrido e determinando a baixa dos autos para conhecer de novo o pedido da suspensão da instância.
Por despacho do Relator de 21/09/2020, foi determinada a suspensão da instância, aguardando o trânsito em julgado da decisão final do Proc. nº 355/2017.
Por acórdão de 04/12/2020, o TUI negou provimento ao recurso jurisdicional interposto no Proc. nº 355/2017.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II – Pressupostos Processuais
O Tribunal é o competente.
As partes possuem personalidade e capacidade judiciárias.
Mostram-se regularmente patrocinadas.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – Factos
É assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa face aos elementos probatórios existentes nos autos:
1. Por escritura pública de 30 de Julho de 1991, exarada a fls. 4 e seguintes do livro 285 da Direcção dos Serviços de Finanças, celebrada em conformidade com o Despacho n.º 203/GM/89, publicado no 4.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, e com as alterações introduzidas pelos Despacho n.º 73/SATOP/92, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 27, de 06 de Julho de 1992, Despacho n.º 57/SATOP/93, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 17, de 26 de Abril de 1993, Despacho n.º 56/SATOP/94, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 22, II Série, de 01 de Junho de 1994, e Despacho n.º 71/SATOP/99, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 33, II Série, de 18 de Agosto de 1999, foi titulada a concessão por arrendamento de vários lotes de terreno inseridos nas zonas A, B, C e D do empreendimento denominado «Fecho da Baía da Praia Grande», situados na Baía da Praia Grande e nos Novos Aterros do Porto Exterior, a favor da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A., com sede na Avenida Comercial de Macau, Edifício FIT Center, 21.º andar B, em Macau, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis com o n.º 4144 (SO) a fls. 166 do livro C10.
2. Através do Despacho do STOP nº 91/2001, publicado no Boletim Oficial da RAEM nº 37, II Série, de 12 de Setembro de 2001, foi titulada a transmissão onerosa do direito resultante da concessão do terreno designado por lote 2 da zona D do referido empreendimento, a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Va Keng Van, S.A..
3. O mencionado lote está descrito na Conservatória do Registo Predial, adiante designada por CRP, sob o n.º 22524 a fls. 176 do livro B49K e o direito resultante da concessão inscrito a favor da convessionária sob o n.º 26678F, não se encontrando onerado com qualquer hipoteca.
4. O prazo de arrendamento do aludido terreno expirou em 30 de Julho de 2016.
5. Em 18/11/2016, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas emitiu o seguinte parecer:
“…
1. Em conformidade com o Despacho n.º 203/GM/89, publicado no 4.º Suplemento Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, por escritura de 30 Julho de 1991, exarada a fls. 4 e seguintes do livro n.º 285 da Direcção dos Serviços Finanças, com as alterações introduzidas pelos contratos de revisão titulados Despachos n.ºs 73/SATOP/92, 57/SATOP/93 e 56/SATOP/94, respectivamente no Boletim Oficial de Macau n.º 27, de 6 de Julho de 1992, Boletim Oficial de Macau n.º 17, de 26 de Abril de 1993 e no Boletim Oficial de Macau n.º 22, II Série, de 1 de Junho de 1994, foram concedidos por arrendamento a favor da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A., vários lotes de terreno inseridos nas zonas A, B, C e D do empreendimento denominado «Fecho da Baía da Praia Grande», situadas na Baía da Praia Grande e nos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE).
2. Nos termos do disposto na cláusula segunda do contrato de concessão titulado pela mencionada escritura, o arrendamento é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da mesma.
3. Através do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 91/2001, publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) n.º 37, II Série, de 12 de Setembro de 2001, foi titulada a transmissão onerosa do direito resultante da concessão do terreno designado por lote 2 da zona D do referido empreendimento, a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Va Keng Van, S.A..
4. De acordo com o estabelecido na cláusula segunda do sobredito contrato de transmissão do direito resultante da concessão do aludido lote, o prazo do arrendamento expirou em 30 de Julho de 2016.
5. Segundo o disposto na cláusula terceira do mesmo contrato, o terreno deveria ser aproveitado com a construção de um edifício em regime de propriedade horizontal, destinado à finalidade de hotel e de estacionamento, de acordo com as condições urbanísticas fixadas nos Regulamentos dos Planos de Pormenor do Plano de Reordenamento da Baía da Praia Grande aprovados pela Portaria n.º 69/91/M, publicada no 2.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 15, de 18 de Abril de 1991. A altura máxima permitida seria de 52 mNMM.
6. Uma vez que o prazo de arrendamento do terreno terminou em 30 de Julho de 2016 e o aproveitamento do terreno não foi concluído, a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes propôs que fosse autorizado o seguimento do procedimento relativo à declaração da caducidade da concessão por decurso do prazo de arrendamento e o envio do processo à Comissão de Terras para efeitos de parecer, o que mereceu a minha concordância, por despacho de 19 de Setembro de 2016.
7. Reunida em sessão de l7 de Novembro de 2016, a Comissão de Terras, após ter analisado o processo, tendo em consideração que o prazo de arrendamento terminou, sem que o aproveitamento estabelecido no contrato se mostre realizado, e que, sendo a concessão provisória, não pode ser renovada, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 48.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), aplicável por força dos seus artigos 212.º e 215.º. Deste modo, a concessão encontra-se caducada pelo termo do respectivo prazo de arrendamento (caducidade prec1usiva), devendo esta caducidade ser declarada por despacho do Chefe do Executivo.
Consultado o processo supramencionado e concordando com o que vem proposto, solicito a Sua Excelência o Chefe do Executivo que declare a caducidade da concessão do referido terreno…”.
6. Em 03/05/2018, o Senhor Chefe do Executivo proferiu o seguinte despacho:
“Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento, a que se refere o Processo n.º 71/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 18 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho”.
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IV – Fundamentação
O presente recurso contencioso consiste em apreciar a eventual legalidade/ilegalidade do acto recorrido, pelo qual se declarou a caducidade da concessão do terreno em questão.
Sobre o assunto, o Mº Pº emitiu o seguinte parecer:
“…
Na petição inicial e alegações facultativas, a recorrente solicitou a anulação do despacho recorrido que consubstancia em declarar caduca a concessão do terreno designado por Lote 2-D do empreendimento denominado “Fecho da Baia da Praia Grande”, invocando sucessivamente:
a)- O não esgotamento do prazo máximo legalmente previsto no n.º1 do art.47º da Lei n.º10/2013;
b)- O carácter meramente contratual e disponível da estipulação do prazo inferior ao prazo de 25 anos previsto no art.47º da Lei de Terras;
c)- O carácter absolutamente futuro do objecto das concessões e a consequência de tal caracterização para o apuramento do dies a quo no prazo de caducidade;
d)- Abuso de Direito (a proibição de venire contra factum proprium) com facto impeditivo da arguição de caducidade;
e)- O reconhecimento do direito como facto impeditivo da caducidade e da respectiva inovação ou conhecimento;
f)- A errónea ou duvidosa caracterização dos prazos de concessão como prazos de caducidade em sentido estrito e a sua errada caracterização como prazos de caducidade sobre matéria excluída da disponibilidade das partes;
g)- O direito ao prazo convencionado como direito contratual formado sob o imperium da lei antiga e o seu significado em face do que dispõe o artigo 11º do Código Civil e o artigo 215º da nova Lei das Terras;
Para além disso, requereu ela ainda a suspensão da presente instância até que seja proferida decisão no Processo n.º355/2017, fundamentando que o qual tem carácter prejudicial sobre o presente processo.
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1. Dos primeiros três argumentos
Em relação aos primeiros vícios supra referidos, impõe-se, desde já, assinalar que a recorrente não é a primitiva concessionária, mas sim a terceira outorgante e destinatária do contrato de transmissão da concessão titulado pelo Despacho do STOP n.º91/2001 que estabelece peremptoriamente que a concessão por arrendamento é válida até a 30/07/2016.
Ora, a disposição no n.º1 do art.47º da Lei n.º10/2013 revela, sem margem para dúvida, que o período de 25 anos não é o prazo fixo da concessão por arrendamento, sendo ante o limite máximo, pelo que qualquer concessão por arrendamento de terreno pode ser inferior a 25 anos, o que é proibido é que excede este período imperativamente fixado.
Nestes termos e ainda por o terreno designado por Lote 2-D ter já sido, na data da supramencionada transmissão, coisa presente em vez da coisa futura, afigura-se-nos certo que são infundados todos esses três argumentos, pese embora seja disponível a fixação do prazo concreto para cada concessão, desde que não exceda o apontado limite máximo.
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2. Da arguição do abuso de direito
Repare-se que o despacho em questão determina: “Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento e com dispensa da hasta pública, a que se refere o Processo n.º71/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 18 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho.” (vide. fls.108 verso dos autos).
Interpretando-o em articulação com o Parecer do Exmo. Sr. STOP e o Parecer n.º137/2016 (cfr. fls.110v a 112 e 112v a 116 dos autos), podemos extrair que esse despacho se traduz em declarar a caducidade da concessão com fundamento de a concessionário não acabar o aproveitamento do dito terreno dentro do prazo da concessão que terminou em 30/07/2016.
Ora, afirma deliberadamente o Venerando TUI (cfr. a título meramente ex-emplificativo, aresto no Processo n.º28/2017, sublinha nossa): Decorrido o prazo de 25 anos da concessão provisória (se outro prazo não estiver fixado no contrato) o Chefe do Executivo deve declarar a caducidade do contrato se considerar que, no referido prazo, não foram cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas, e o Chefe do Executivo não tem que apurar se o incumprimento das cláusulas de aproveitamento se deve ter por motivo não imputável ao concessionário. Com efeito, a jurisprudência de Macau vai no sentido de considerar a caducidade da concessão do terreno pelo decurso do prazo de arrendamento como caducidade preclusiva (cfr. nomeadamente os Acórdãos do TUI nos Processos n.º69/2017, n.º102/2018 e n.º26/2019).
Convém realçar que a jurisprudência consolidada do Venerando TSI vem navegando na mesma direcção, apontando constantemente que são vinculados os actos administrativos de declaração da caducidade das concessões provisórias de terrenos, desde que se trate de caducidade preclusiva cuja verificação depende do preenchimento de dois pressupostos cumulativos: de um lado, a constatada expiração do prazo máximo de 25 anos e, de outro, a inexistência da conversão da concessão provisória em definitiva. (a título exemplificativo, arestos nos Processos n.º672/2015, n.º375/2016 e 179/2016)
Ora bem, sem embargo do respeito pelo melhor entendimento em sentido contrário, tudo isto cauciona-nos a colher que o despacho atacado nestes autos assume a natureza jurídica de acto administrativo estritamente vinculado, não comportando o exercício do poder discricionário.
Bem, o abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excedos limites impostos pela boa fé (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º440/2010). E o abuso do direito manifestado no “venire contra factum proprium”, assenta numa estrutura que pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire contra”). É essa relação de oposição entre as duas que justifica a invocação do princípio do abuso do direito. (vide. Acórdão do TSI no Processo n.º693/2013)
Funcionalmente, ele constitui uma “válvula de segurança” com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça intolerável para o sentimento jurídico imperante, em que, por particulardades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito conferido por lei. (vide. Acórdão do TSI no Processo n.º577/2016)
No que diz respeito aos actos declarativos da caducidade preclusiva exactamente idênticos ao despacho ora recorrido, encontra-se firmemente consolidada a sábia jurisprudência que preconiza (vide. Acórdãos do TSI nos Pro-cessos n.º179/2016, n.º290/2017 e n.º419/2017): O abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões. (sublinha nossa)
Em consonância com as brilhantes inculcas jurisprudenciais acima aludidas, não podemos deixar de concluir que não existe in casu o abuso de direito assacado pelo recorrente ao despacho em escrutínio cuja prolação, como se aponta acima, é vinculada.
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3. Do invocado facto impeditivo da caducidade
Ora, o próprio Despacho do STOP n.º91/2001 estabelece, de modo claro e iniludível, que os direitos de aproveitamento transmitidos à recorrente em regime de concessão provisória por arrendamento eram válidos até a 30/07/2016, sob expressa cominação da caducidade.
Para além disso, interessa não esquecer que “Ainda que estivessem em causa direitos disponíveis, uma informação da Direcção dos Serviços de Programação e Coordenação de Empreendimentos, independentemente do que ela contivesse, nunca poderia constituir reconhecimento de nenhum direito da recorrente por parte da RAEM, dado que informações burocráticas de técnicos da Administração ou mesmo de directores de serviços não representam nem obrigam a RAEM, pelo que nunca poderiam reconhecer direito algum da recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º2 do artigo 323.º do Código Civil.” (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º16/2019)
Pois, as comunicações de serviço interno da DSSOPT, bem como a atitude da DSSOPT revelada nos ofícios, com os quais as recorrentes foram notificadas que os projectos apresentados eram passíveis de aprovação pela DSSOPT, mas que o procedimento administrativo ficava suspenso provisoriamente até que fosse aprovado o novo plano de intervenção urbanística da zona onde se encontram os terrenos concedidos, nunca poderiam constituir reconhecimento de nenhum direito das recorrentes por parte da RAEM, uma vez que as informações ou opiniões nelas contidas não representam nem obrigam a RAEM, muito menos depois do termo do prazo de arrendamento dos terrenos. (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º2/2019)
E, os actos praticados pela Administração, invocados pela recorrente para demonstrar que a Administração criou legítimas expectativas na recorrente, nomeadamente, ao afirmar que iria rever o contrato de concessão atenta a alteração de finalidade do terreno, nunca poderiam constituir o reconhecimento de algum direito da recorrente por parte da RAEM (por exemplo o direito de aproveitar o terreno depois do termo do prazo de arrendamento) nem obstar à declaração da caducidade pelo decurso de tal prazo. (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º12/2019)
Em sintonia com tais sensatas jurisprudências, estamos convictos de que falece incuravelmente a arguição da não verifica da caducidade e da existência da causa impeditiva da mesma, portanto, o despacho atacado no presente recurso não colide com o art.323º do Cód. Civil.
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4. Dos restantes vícios invocado pela recorrente
De resto, a recorrente arrogou ainda a errónea ou duvidosa caracterização dos prazos de concessão como prazos de caducidade em sentido estrito e a sua errada caracterização como prazos de caducidade sobre matéria excluída da disponibilidade das partes, bem como o direito ao prazo convencionado como direito contratual formado sob o imperium da lei antiga e o seu significado em face do que dispõe o artigo 11º do Código Civil e o artigo 215º da nova Lei das Terras.
Ressalvado respeito pela opinião diferente, não podemos deixar de realçar que a tese da recorrente é frontalmente contrária com a jurisprudência pacífica do Venerando TUI, que vem inculcando (a título exemplificativo, cfr. arestos do TUI nos Processos n.º90/2018 e n.º72/2019): Os arts.212.º e seguintes da nova Lei de Terras (Lei n.º10/2013), entrada em vigor em 1 de Março de 2014, prevalecem sobre as disposições gerais relativas a aplicação de leis no tempo constantes do Código Civil. No que respeita aos direitos e deveres dos concessionários a alínea 2) do artigo 215.º da nova Lei de Terras faz prevalecer o convencionado nos respectivos contratos sobre o disposto na lei. Na sua falta, aplica-se a nova lei e não a antiga lei (Lei n.º6/80/M), sem prejuízo do disposto no n.º1 do artigo 11.º do Código Civil nos termos do qual “a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”. Tendo em conta que o proémio do artigo 215.º da nova Lei de Terras já determina a aplicação da lei às concessões provisórias anteriores à sua entrada em vigor, a intenção da alínea 3) do art.215.º, é a de aplicar imediatamente dois preceitos da lei nova (n.º3 do artigo 104.º e artigo 166.º), mesmo contra o que esteja convencionado nos respectivos contratos (alínea anterior) e na lei antiga, quando tenha expirado o prazo anteriormente fixado para o aproveitamento do terreno e este não tenha sido realizado por culpa do concessionário.
E temos ainda por acertada e inatacável a inculca jurisprudencial no sentido de que “A Lei de Terras estabelece como princípio que as concessões provisórias não podem ser renovadas. A única excepção a esta regra é a seguinte: a concessão provisória só pode ser renovada a requerimento do concessionário e com autorização prévia do Chefe do Executivo, caso o respectivo terreno se encontre anexado a um terreno concedido a título definitivo e ambos estejam a ser aproveitados em conjunto (artigo 48.º).” (cfr. aresto do TUI no Processo n.º16/2019, no mesmo sentido o aresto no seu Processo n.º13/2018)
Em esteira, estamos convictos de que ao caso sub judice se aplica a Lei n.º10/2013 em vez da Lei n.º6/80/M, sobretudo a regra imperativa consagrada no n.º1 do art.48º da actual Lei de Terras, portanto, são igualmente descabidos os últimos dois argumentos da recorrente.
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…..
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Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso contencioso,…”.
Trata-se duma posição com a qual concordamos na sua íntegra e que está conforme com a jurisprudência do TUI e deste TSI nos processos congéneres.
A título exemplificativo, vide os Acs. do T.U.I. de 11/10/2017, Proc. n.º 28/2017; de 06/06/2018, Proc. n.º 43/2018; de 31/07/2018, Proc. nº 13/2018; de 05/12/2018, Proc. n.º 98/2018 e de 19/12/2018, Proc. n.º 91/2018.
Nesta conformidade e com a devida vénia, fazemos como nossos os fundamentos invocados no parecer acima transcrito para julgar a improcedência do presente recurso contencioso.
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V – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso, confirmando o acto recorrido.
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Custas pela Recorrente com 10UC de taxa de justiça.
Notifique e D.N..
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RAEM, aos 28 de Janeiro de 2021.

(Relator)
Ho Wai Neng

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong

(Segundo Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro

Mai Man Ieng
1


20
589/2018