Processo nº 1126/2020
(Autos de Recurso Cível e Laboral)
Data do Acórdão: 10 de Fevereiro de 2021
ASSUNTO:
- Divórcio
- Bens comuns
- Participações sociais
- Direito de voto
- Administração
SUMÁRIO:
- A personalidade jurídica das sociedades ainda que sejam unipessoais não se confunde com a dos sócios,
- Apesar das participações sociais serem bens comuns, a comunhão não se estende ao património social que é pertença apenas da sociedade;
- O direito de votar as deliberações da sociedade é inerente ao sócio não dependendo de autorização do cônjuge para o exercer;
- A Administração é exercida pela pessoa que foi nomeada para o cargo, respondendo esta apenas perante a sociedade e não perante o seu cônjuge (do administrador) pelos actos praticados no exercício do cargo;
- As decisões da sociedade quanto à compra e venda ou promessa de, relativamente a activos sejam eles imoveis, moveis ou direitos respeita apenas ao património da sociedade e ao giro comercial desta;
- Ainda que o valor dos bens – activos e passivos – da sociedade influencie o valor da participação social a transacção ou oneração daqueles não tem qualquer conexão com o património comum do casal de que um dos sócios faça parte;
- Para efeitos de partilha na sequência de divórcio apenas releva o valor da participação social no momento em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 1126/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 10 de Fevereiro de 2021
Recorrente: A
Recorrida: B
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
B, com os demais sinais dos autos,
Veio instaurar procedimento cautelar contra
A, também ele com os demais sinais dos autos,
Pedindo que:
1) a apresentação, pelo requerido, de dados destinados ao cálculo do valor, no momento do pedido do divórcio, das acções de empresas que se integram no património comum do casal; 2) a partilha provisória do património comum do casal. Os pedidos subsidiários: 3) a proibição do requerido praticar, sem notificação à requerente e consentimento desta, qualquer acto de alienação dos bens sociais em causa e de constituição de ónus; 4) qualquer acto praticado ou contrato celebrado pelo requerido em desrespeito do número anterior não produz efeito em relação à requerente; 5) notificar as conservatórias do Registo para recusarem o registo pretendido pelo requerido quando se verifique a violação do descrito no número 3).
Proferido despacho a deferir parcialmente a providência cautelar com dispensa de audição do Requerido veio este após notificação a deduzir oposição, vindo a ser mantida a providência decretada.
Não se conformando com a decisão proferida veio o Requerido interpor o presente recurso do mesmo, apresentando as seguintes conclusões:
1. Recorre-se presentemente do deferimento da providência cautelar não especificada, complementada pela decisão de manutenção da providência proferida no seguimento da oposição apresentada pelo Recorrente.
2. Deviam os arts. 15, 24, 26, 41, 43 e 44 da oposição ter sido dados como provados e elencados como tal na decisão recorrida, porquanto se afiguram relevantes para a boa decisão da causa e devidamente provados face aos meios de prova trazidos aos autos. Em concreto,
3. Quanto ao art. 15, está o valor dos imóveis em causa (não se infere que seja o exclusivo património da sociedade, apenas com base na lista do arrolamento referida pela Recorrida) plenamente provado pelo relatório constante de fls. 171 a 174 do proc., sendo este facto importante para dissipar dúvidas sobre a intenção de sonegar património.
4. Quanto ao art. 24, considera-se o mesmo provado atendendo ao depoimento da testemunha na gravação entre os minutos 10:27 e 12:10 - Translator 3 (file: Recorded on 14-July-2020 at 16.57.08 (30B#PG7G04520319).
5. Quanto ao art. 26, considera-se o mesmo provado atendendo ao depoimento da testemunha na gravação (supra identificada) entre os minutos 53:30 e 54:50.
6. Quanto ao art. 41, considera-se o mesmo provado atendendo ao depoimento da testemunha na gravação (supra identificada) entre os minutos 39:39 e 42:09.
7. Quanto ao art. 43, considera-se o mesmo provado atendendo ao depoimento da testemunha na gravação (supra identificada) entre os minutos 59:58 e 01:00:09.
8. Quanto ao art. 44, considera-se o mesmo provado com base no doc. 23 junto com a oposição, retirando depois o Tribunal as ilações que considerar relevantes.
9. Os autos correram por apenso aos de divórcio, os quais já têm apenso um procedimento cautelar, de arrolamento, que incide sobre as participações sociais relativamente às quais os direitos do respectivo titular, o Recorrente, foram limitados através desta providência.
10. Por decisão de 22/5/2020, este Tribunal determinou que o Requerido, enquanto sócio e / ou administrador das sociedades onde detém participações, estaria impedido de, em geral, praticar actos de disposição, de distribuição de dividendos, liquidação, entre outros.
11. Os requisitos da providência cautelar não especificada são (a) a probabilidade séria da existência do direito; (b) o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável; (c) adequação da providência à iminente lesão; (d) o prejuízo resultante da providência não ser superior ao dano que com ela se pretende evitar; e (e) inexistência de providência especificada. Nem sempre é fácil compartimentar os mesmos com rigor.
12. No âmbito do designado fumus boni juris, é difícil justificar uma intromissão na vida das sociedades, as quais representam uma pessoa e património diferentes dos respectivos sócios.
13. Pereira de Almeida refere que com a constituição da sociedade, os bens com que o sócio entra para a sociedade não ficam no regime da compropriedade, tanto mais que os credores pessoais do sócio deixam de poder perseguir esses mesmos bens, apenas a participação social.
14. A Recorrida não tem (actualmente) qualquer direito em relação ao património das sociedades de que o Recorrente é sócio, nem terá, pois que mesmo que se venha a tornar sócia em virtude da partilha, ainda assim o património da sociedade é distinto da sua esfera patrimonial.
15. Este Tribunal (proc. 23/2016) decidiu contra o deferimento do arrolamento do património da sociedade em que o cônjuge era sócio pois que afectaria os direitos da sociedade sem que a mesma tivesse sido chamada aos autos para se pronunciar. Disse mais, arrolar bens da sociedade poderia equivaler a impedir que a mesma realize o seu objecto social.
16. Embora através desta providência refira-se à proibição de determinadas acções pelo Recorrente, a mesma incide sobre bens das sociedades, os quais não integram o património comum, mas outro distinto deste.
17. As medidas decretadas inclusivamente vão além da questão patrimonial, pois que interferem com o interesse do sócio no desenvolvimento da sociedade, nomeadamente a rentabilização do capital investido.
18. Não parece admissível que a interferência no fiel exercício das funções de administrador de uma sociedade e dos direitos enquanto sócio (que não seja pelas vias normais, como a penhora ou o arrolamento) possa sequer ser um direito quando está na base uma relação estranha à sociedade.
19. Um administrador está obrigado a gerir a sociedade (em benefício da mesma), não tendo essa obrigação uma componente patrimonial (quanto muito, a remuneração daí decorrente). O impedimento do administrador único tem toda a susceptibilidade de afectar gravemente o funcionamento da sociedade.
20. Ainda que se admitisse o contrário, é tão distante o direito da Recorrida aos bens da sociedade que nem se pode falar propriamente num direito - se e quando decretado o divórcio, tem a Recorrida o direito à partilha do património comum, mas tal não significa necessariamente o direito a metade das participações sociais nas sociedades que foram alvo desta providência.
21. A pendência do processo de divórcio, antecedente da partilha do património comum do casal, desde logo torna mais ténue o direito da Recorrida ao património das sociedades.
22. Admitindo que entre o casal vigora o regime de bens supletivo, i.e. a comunhão de adquiridos, sem prejuízo dos bens excluídos da comunhão, em princípio, são comuns todos os bens que entram na esfera patrimonial de cada um dos cônjuges após o matrimónio.
23. No âmbito da partilha após divórcio, será sempre necessário provar quais os bens que integram o património comum, sendo que parece insuficiente uma mera remissão para os bens que integram o arrolamento também apenso aos autos de divórcio (como fez a Recorrida).
24. Não obstante virem detalhadas as participações sociais que o Recorrente tem registadas em seu nome (com a presunção de que é efectivamente sócio decorrente da lei), não há menção nos autos ao momento em que foram adquiridas.
25. A título exemplificativo, o Recorrente trouxe elementos aos autos para provar que uma participação que detém na C Limitada, adquirida em 1992, quando ainda era solteiro, não integra o património comum.
26. O Recorrente é um empresário, cuja actividade passa pela gestão das participações sociais de que é titular, pelo que as essas participações sociais poderiam ser consideradas como instrumentos de trabalho.
27. Numa interpretação actualizada do art. 1608.º do Cód. Civil, diríamos que o Recorrente teria eventual prioridade em ser encabeçado nas quotas que integram o património comum, evidentemente sem prejuízo da Recorrida ser compensada com outros bens no âmbito dessa partilha.
28. A decisão recorrida refere-se ao direito da Recorrida a metade do património comum, mas tal não significa o direito a metade do património das sociedades (em função da participação social detida pelo Recorrente) ou sequer metade da quota que o Recorrente é titular.
29. De qualquer maneira, o direito da Recorrida ao património comum não tem relação com o exercícios dos direitos sociais e/ou deveres como administrador do Recorrente.
30. Não se afigura correcta a conclusão do Tribunal a quo de que o Recorrente não contesta a existência do direito - não se põe em causa o direito à partilha do património comum se o divórcio for decretado, questão diferente é o conteúdo desse direito e que não inclui o património das sociedades.
31. Admitindo (como hipótese académica) a existência do direito, a verificação do designado periculum in mora implica in casu a potencialidade de uma lesão grave ou dificilmente reparável, ou seja, uma confusão entre os patrimónios do sócio e da respectiva sociedade (que a lei pretende segregar ao prever duas pessoas jurídicas distintas).
32. Ou seja, teria de haver a aparência de uma descaracterização da personalidade jurídica ou que a actuação do administrador seja desleal para com a sociedade e em benefício próprio.
33. Pedro Cordeiro refere que a desconsideração da personalidade jurídica traduzse no desrespeito pela separação entre a pessoa colectiva e os seus membros, adoptando aquela, através dos seus sócios, um comportamento abusivo e fraudulento que não se reconduz ao que a lei traçou para a sociedade.
34. O Tribunal a quo bastou-se neste âmbito com a transmissão de alguns dos inúmeros bens que integram as sociedades de que o Recorrente é sócio - não é por si revelador de qualquer desvio ao objecto social, tanto mais que existiram contrapartidas.
35. A actividade de uma pessoa colectiva não se pode reconduzir a ser um aglomerado de activos - há toda uma outra dinâmica relativa a rendimentos, custos, dívidas, custo de oportunidade e sobre a qual a Recorrida nada refere (pois que nunca esteve envolvida e portanto desconhece), limitando-se apenas ao activo da sociedade, o que é redutor.
36. A Relação de Guimarães considerou improcedente um procedimento cautelar em que o requerente nem se dignou a alegar a diferença entre o valor pelo qual os bens foram alienados e o respectivo valor de mercado.
37. A Recorrida nem sequer fez qualquer alegou e provou que as transmissões foram inferiores ao valor de mercado dos bens, sendo o Recorrente em contraditório veio precisamente demonstrar a existência de uma contrapartida e que a mesma assentava no valor de mercado dos bens em causa (cfr. avaliações feitas por entidade de reputação mundial).
38. Nesse sentido, não fica demonstrado qualquer prejuízo ou perigosidade do mesmo em relação às transacções que servem de base para a Recorrida alegar uma suposta situação de lesão iminente.
39. Este Tribunal considerou no proc. 255/2017 que a desconsideração da personalidade jurídica tem carácter excepcional pois que derroga o princípio fundamental da separação entre sociedades e respectivos sócios e só se pode verificar se houver um abuso objectivo da personalidade jurídica e o domínio.
40. Este Tribunal no proc. 486/2006 referiu que na apreciação do fundado receio de prejuízo, não basta um juízo de probabilidade ou um exame precipitado das circunstâncias, mas sim pressupõe que haja uma ameaça actual.
41. Se poderia aparentar uma suposta conduta de dissipação de activos, com o contraditório do Recorrente, este veio completar a história lacónica da Recorrida relativamente aos actos em causa, trazendo factos concretos que demonstram a inexistência de um prejuízo (ainda que somente indirecto) para o património comum.
42. E ainda que houvesse um potencial prejuízo, nunca seria de difícil reparação porquanto há normas do direito comercial que visam rectificar situações irregulares na vivência societária resultantes do abuso por parte de um sócio ou administrador.
43. A título exemplificativo, no Código Comercial há a obrigação do empresário comercial prestar contas (art. 63.º), responsabilidade de sócio dominante (art. 212.º) e responsabilidade dos titulares dos órgãos sociais (art. 245.º e ss.).
44. A Relação do Porto (proc. 0524260) considerou que a o levantamento da personalidade colectiva implica uma utilização da mesma de forma abusiva para prejudicar terceiros e quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio / sociedade.
45. Além dos meios a nível do direito comercial, também no âmbito do direito civil poderia a Recorrida reagir contra a sociedade em relação à própria da transmissão, se a mesma fosse efectivamente ilegal.
46. Na motivação da decisão recorrida vem referido que o Recorrente controla 18 das sociedades objecto do arrolamento e que como tal pode transferir bens do património daquelas, situação que pode vir afectar (negativamente) o valor da sociedade.
47. Seguidamente, o Tribunal a quo alude às quatro transferências realizadas pelas sociedades representadas pelo Recorrente e como as transferências, embora não evidenciando um prejuízo efectivo, mostram a facilidade do Recorrente em afectar o valor da sociedade. Também se refere na decisão recorrida que o Recorrente não justifica a alienação de um activo pelo valor declarado de 68 milhões.
48. Recorde-se que as quatro transferências respeitam a bens que integram um universo de mais de duas centenas que totalizam os imóveis ou móveis registados das sociedade nas quais o Recorrente tem participações sociais.
49. O património imobiliário das sociedades que o Recorrente é sócio foi avaliado em mais de 600 milhões, pelo que 68 milhões afigura-se um montante não tão significativo.
50. A decisão recorrida refere que estas transferências são suspeitas atendendo à instauração do divórcio, mas ignora que o objecto social de algumas é precisamente o fomento predial (compra e venda de imóveis) e que não suspendem a sua actividade com a instauração daquela acção.
51. Aliás, a actividade empresarial tem uma dinâmica muito além dos respectivos activos, mostrando-se por vezes necessário alienar alguns activos para gerar fundos para desenvolver activos existentes ou investir noutros projectos.
52. No âmbito das alterações estatutárias, em que o Recorrente chama para si mais poderes de controlo da actividade C Lda, em parte alguma evidenciam as mesmas uma intenção de sonegar activos e contrariamente ao referido na decisão recorrida, são essas alterações facilmente explicáveis.
53. O Recorrente é presentemente administrador das sociedades, logo as alterações não lhe conferem actualmente na prática direitos adicionais.
54. As alterações são medidas preventivas de futuro para assegurar a continuidade da sociedade em consonância com a sua fundação, da qual o Recorrente integrou, sendo actual sócio maioritário.
55. As alterações permitem proteger a sociedade, impedindo a entrada de sócios que não partilhem a mesma visão para a sociedade que foi fundada em 1992 e desde então opera com sucesso.
56. As referidas alterações estatutárias permitem aliás a defesa contra actos de dissipação por terceiros no caso do Recorrente deixar de ter mais de 50% do capital da sociedade e assim fique esta à mercê de terceiros.
57. É pois essencial ter em conta que se deu por provado que a Recorrida andou a praticar actos de dissipação do 'património de uma sociedade e aquela sim desviandose do objecto social e agindo em interesse próprio.
58. Contrariamente ao alegado e decidido, as alterações estatutárias provam não a intenção de dissipação, mas sim uma manifesta vontade em preservar o património societário.
59. Não e atípico os sócios fundadores incluírem normas que lhes confiram direitos especiais relativamente à sociedade - o Código Comercial acautela essa situação no art. 378.º.
60. Tal em nada afectou a distribuição de lucros.
61. Até em grandes sociedades a nível mundial e antes de serem listadas na bolsa (veja-se o Facebook ou o Alibaba), e portanto atraem enorme escrutínio, é comum o sócio fundador ficar com determinados direito de voto superiores ao que lhe caberia ordinariamente em função da respectiva participação social. Até a bolsa de Hong Kong alterou as regras de listing para permitir essa situação.
62. A relação entre os cônjuges é manifestamente hostil, o que resulta desde logo do facto de serem partes num divórcio litigioso, e mais evidenciado pelo arrolamento instaurado pela Recorrida e até pelos presentes autos também movidas por esta. Aliás, não há diálogo extra judicial entre as partes.
63. Ou seja, qualquer actuação (ou proposta· nesse sentido) por parte do Recorrente é sempre vista com desconfiança pela Recorrida e nesses termos seria impossível ao Recorrente obter consentimento da Recorrida para qualquer transacção. E recorde-se que o Recorrente tem um dever de gerir as sociedades como administrador e é um imperativo para gerar rendimentos exercer os seus direitos como sócio.
64. Além disso, a Recorrida não tem qualquer conhecimento a nível da gestão das sociedades em causa (porque nunca esteve envolvida), pelo que não poderia, salvo melhor opinião, formar uma apreciação técnica neste âmbito.
65. A título exemplificativo, a C Lda, que tem como objecto social a construção civil e comércio de bens imobiliários, sendo a essência a compra e venda de imóveis, não se obtendo o consentimento da Recorrida pelas razões supra expostas, essa actividade fica suspensa por um período indeterminado e por razões que são alheias à sociedade.
66. A diminuição de valor que a Recorrida parece temer pode suceder de outra forma - a sociedade não prosseguir o seu objecto social.
67. Uma sociedade que não gera rendimentos também não poderá distribuir lucros, sendo essa fonte de rendimento importante para quem não trabalhe por conta de outrem e viva desses rendimentos, é essencial continuar a desenvolver a actividade das sociedades.
68. Como se referiu, a Recorrida não está impedida de agir contra o Recorrente ou as sociedades por alegados actos ilegais no seio empresarial - é que a Recorrida nem sequer alegou que não lhe seria possível obter ressarcimento caso tivesse vencimento de causa.
69. Pelo que sempre se diria que a decisão recorrida inclusivamente viola o art. 332.º n.º 2 do CPC porquanto o prejuízo resultante da providência é superior ao dano que se pretende evitar.
70. O art. 328.º do CPC dispõe que o procedimento cautelar depende de uma causa principal e nos presentes autos consideramos inexistir uma conexão que permita essa dependência.
71. Uma providência cautelar visa proteger o resultado de uma acção principal cujo tempo inerente ao processamento pode constituir um risco à utilidade da decisão a final. Pretende-se congelar a situação actual para permitir a execução de uma decisão final nos autos principais.
72. Abrantes Geraldes refere que tem de haver uma identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo.
73. Os factos que servem de suporte à providência são os supostos actos de dissipação, mas no âmbito do divórcio discute-se a violação de deveres conjugais que serve de fundamento à destruição do matrimónio.
74. Se considerava os actos ilegais por representarem uma dissipação do património social, deveria a Recorrida atacar esses actos e eventualmente instaurando uma providência destinada a preservar os bens na esfera do terceiro por forma a decisão nos autos principais fosse susceptível de produzir efeitos e os bens pudessem retornar à esfera patrimonial onde se encontravam.
75. O art. 368.º n.º 1 do CPC veio precisamente abrir a possibilidade, excepcional, de uma acção de divórcio poder servir de causa principal ao arrolamento, porquanto é manifesta a ausência de identidade de pedido ou da causa de pedir em ambos os processos.
76. Não podendo a providência estar na dependência dos autos de divórcio, não pode a mesma deixar de decair por falha desse mesmo pressuposto essencial.
77. Ademais, viola ainda a decisão decorrida o disposto no art. 326. n.º 1 do CPC porquanto existe uma providência especificada adequada a assegurar o direito da requerente (ora Recorrida), in casu, o arrolamento.
78. A Relação de Lisboa no proc. 3376/14.9T8FNC-A.L1-6 refere que o arrolamento visa acautelar situações de receio de extravio / dissipação de bens do património comum do casal, não se justificando em tal caso o recurso a procedimento cautelar não especificado.
79. Nesse caso, estavam em causa depósitos bancários e dinheiro, cujo risco de dissipação é incomparavelmente superior ao de imóveis como sucede in casu.
80. Recorde-se que a Recorrida alegou precisamente um receio de ocultação / dissipação de bens em decorrência do divórcio.
81. Como refere Viriato Lima e Cândida Pires, a dispensa da prova indiciária do periculum in mora no arrolamento apenso a divórcio é intuitivo, visto que a situação de divórcio justifica o interesse nessa providência.
82. A Recorrida intentou um arrolamento no âmbito do divórcio, a qual foi procedente, portanto ficou assim acautelado o seu direito à metade do património comum.
83. O art. 365.º n.º 1 do CPC refere que o arrolamento consiste no relacionamento e avaliação dos bens, ou seja, através do mesmo faz-se um acervo do património comum bem como do respectivo valor.
84. Qualquer acto que o Recorrente viesse então posteriormente a praticar, sempre haveria um ajuste de contas a final, porque o Recorrente teria sempre de justificar a diferença entre o valor da avaliação e eventual valor diferente na partilha.
85. Por isso é que a Relação do Porto no proc. 309-C/98 referiu que o arrolamento de um saldo bancária de uma conta não impede a respectiva movimentação.
86. Desde logo, a C Lda é uma sociedade auditada, pelo que com a referida avaliação no processo de arrolamento, sempre seria depois possível reconstruir os movimentos que levariam a um eventual valor distinto aquando da partilha.
87. A Relação do Porto no proc. 0452888 referiu que o arrolamento como preliminar à acção de divórcio não visa impedir a utilização dos bens arrolados - tem apenas o objectivo de apurar a existência dos mesmo e salvaguardar a sua conservação.
88. Através destes autos, a Recorrida conseguiu aquilo que não tinha direito através do arrolamento e que era a providência indicada face à situação em causa.
89. A Relação do Porto em acórdão de 19.12.1996 refere que o arrolamento como preliminar do divórcio visa obviar ao seu extravio ou dissipação, o que se consegue com a descrição, avaliação e depósito dos bens.
90. Se o arrolamento não é suficiente como alega a decisão recorrida, então não se compreenderia qual a utilidade do mesmo. Para ir além, teria a Recorrida de alegar e provar uma intenção do Recorrente de frustrar a avaliação das sociedades (que já decorre do arrolamento).
91. E diria-se mais, nos termos do art. 326.º n.º 5 do CPC, não pode haver repetição da providência que tenha sido julgado injustificada, sendo que a Recorrida já no proc. de arrolamento fez petição semelhante à dos presentes autos (aí de arrolamento sobre os bens, aqui de limitação de actuação do Recorrente relativamente aos mesmos), tendo sido determinado improcedente por este douto Tribunal.
92. Tal norma não seria necessária se tivermos em conta a excepção de caso julgado - cremos portanto que o legislador tenha ido mais além no sentido de obstar pequenas alterações ao pedido e respectiva causa de pedir.
93. A norma compreende-se visto que o tribunal já teria ajuizado sobre a aparência do direito e perigo de lesão, bem como os demais requisitos, sempre com base na mesma acção principal, e tendo determinado a improcedência, não se justifica que volta a fazer nova apreciação.
94. Enferma, portanto, a decisão recorrida de, com o devido respeito, diversos vícios de violação de lei.
95. Também não consideramos que esta providência seja adequada à lesão iminente ou prejuízo alegado, o qual assenta essencialmente no risco de sonegação de bens atendendo ao alegado controlo que o Recorrente tem sobre as sociedades (e portanto sobre o património destas), sem o conhecimento da Recorrida (que não participa na gestão das quotas sociais que supostamente integram o património comum).
96. A preocupação da Recorrida de desconhecer a gestão que o Recorrente faz das sociedades é acautelado pelo direito à informação que terá, admitindo que se venha a tornar sócia das sociedades.
97. A medida tomada é de tal maneira restrictiva que atribui à Recorrida mais direitos que um sócio maioritário (que é o máximo que a Recorrida pode ambicionar no âmbito da eventual partilha) - qualquer operação que envolva alienação de activos implica o consentimento da Recorrida.
98. As medidas impostas com a providência não representam o meio adequado para acautelar o (eventual) direito da Recorrida - sendo o risco a sonegação por desconhecimento da actividade, bastaria a comunicação dos actos, sendo a obtenção de consentimento excessiva.
99. A decisão recorrida viola portanto o disposto no art. 326.º n.º 1 do CPC no sentido em que não há adequação entre as medidas impostas e aquelas que seriam adequadas face ao alegado direito e potencial lesão.
100. Quanto muito, à cautela, na base do art. 326.º n.º 3 do CPC, que não tendo sido aplicado (e impostas outras medidas menos restrictivas e mais adequadas ao alegado direito e lesão iminente), inquina a decisão recorrida de violação de lei.
Pela Recorrida e Requerente da providência foram apresentadas contra-alegações de onde constam as seguintes conclusões:
1. O recorrente está inconformado com o despacho do Juiz a quo proferido a 17 de Julho de 2020 no sentido de manter as providências cautelares decretadas em 22 de Maio, entendendo que o mesmo não deu como provados os factos por ele alegados e violou a lei. A alegante discorda.
2. Em primeiro lugar, quanto à questão invocada pelo recorrente sobre a matéria de facto, a alegante entende que o Tribunal apenas considerou provados os factos relevantes para a causa, e apreciou as provas apresentadas pelo recorrente de acordo com o princípio da livre apreciação, acto que não tem nada de errado. Pelo que a convicção do Tribunal não devia ter sido posta em causa.
3. Além disso, a decisão do Tribunal a quo não padece de qualquer vício de ilegalidade, já que estão reunidos todos os requisitos previstos no artigo 326.º do CPC para o decretamento de providência cautelar comum.
4. Quanto aos requisitos constitutivos das providências cautelares em causa, a alegante mantém por inteiro os fundamentos fácticos e jurídicos inicialmente alegados nos autos e concorda totalmente com a posição do Tribunal a quo.
5. A existência do “direito” exigida pelos requisitos é, obviamente, incontestável, porque no procedimento cautelar de arrolamento, incidente ao presente processo, as participações sociais já são indicadas como património comum.
6. Quanto à questão de se a requerente conseguirá obter as aludidas acções na partilha de bens pós divórcio, a mesma não se enquadra no âmbito do presente caso.
7. Além disso, apesar dos activos sociais não pertencerem ao património comum do casal, nós, com o respeito pelo “princípio da separação de activos” e pela “existência independente dos bens sociais” que o recorrente sempre tem enfatizado, não podemos deixar de sublinhar que, a existência ou não de activos sociais e o valor dos bens das empresas afectam necessaria e directamente o valor das acções destas, pondo assim em causa o direito da requerente.
8. No que diz respeito ao receio da “lesão grave e dificilmente reparável”, os factos provados nos autos servem de prova dessas preocupações.
9. O recorrente, aproveitando-se do seu poder de controlo sobre as empresas em causa, alienou a terceiros bens sociais no valor de mais de 100 milhões de patacas numa só semana (compreendida entre 26 de Março e 3 de Abril de 2020).
10. Apesar do recorrente ter vindo a reiterar que a venda dos terrenos e outros bens imóveis esteve em conformidade com o bom cumprimento dos deveres da gestão das empresas, os dados e provas por ele apresentados mostram que tais transacções não trouxeram qualquer lucro para as empresas, ou até mesmo se pode dizer que eram vendas com perdas. Acresce que, o recorrente não deu explicações e justificações plausíveis em relação à alienação de alguns títulos de acções de enorme valor.
11. As “preocupações” da requerente não só se limitem a se o requerido vendeu e alienou os bens pelo preço de mercado, como ainda residem no facto de ela não ter qualquer conhecimento dessas transacções nem dispor de qualquer meio para as prevenir.
12. Tais condutas podem em realidade lesar gravemente o valor das acções das empresas pertencentes ao património comum do casal, sendo que tal perda de valor é dificilmente reparável e afecta directamente a sua quota de metade.
13. De resto, o facto de o recorrente alterar propositadamente os estatutos das empresas para obter o controlo único e absoluto sobre as mesmas também agravou o receio da requerente.
14. Por conseguinte, é fundado o receio da “lesão grave e dificilmente reparável” ao direito da requerente, pelo que é necessário tomar providências cautelares adequadas.
15. As providências cautelares decretadas são obviamente adequadas, uma vez que não proíbem o requerido da gestão ou disposição, na qualidade do accionista ou administrador de controlo, de qualquer activos detidos pelas empresas, nem comprometem o funcionamento normal das mesmas.
16. O decretamento de tais providências apenas atribui à requerente, até certo ponto, direitos de conhecimento e de supervisão, sem impedir ou restringir qualquer acto das empresas, nem afectar as actividades comerciais normais destas.
17. É manifesto que a providência cautelar de arrolamento já existente no caso em apreço não é suficiente para garantir que o património comum do casal não seja prejudicado ou perdido.
18. Atentos os factos provados nos autos, constata-se que foi exactamente após a efectuação do arrolamento que o recorrente alienou a terceiros os respectivos bens sociais de enorme valor!
19. Disso resulta que o mero arrolamento não basta para proteger o direito da requerente. É necessário, portanto, o decretamento de providências que lhe confiram direitos de conhecimento e de supervisão.
20. Por outro lado, não assiste razão ao recorrente quando alega que o presente procedimento cautelar não devia ter sido instaurado como incidente do processo de divórcio. A futura acção de partilha do património comum do casal pós-divórcio será necessariamente instaurada como incidente da acção principal de divórcio. Razão pela qual, não há nada de errado em instaurar o presente procedimento cautelar, destinado a conservar o valor do património comum, também como incidente da mesma acção principal.
21. Ultimamente, tal como atrás se referiu, as providências cautelares decretadas não causaram qualquer dano ao recorrente ou às suas empresas, nem comprometeram o funcionamento normal e as transacções das mesmas.
22. Na verdade, decorridos cinco meses desde o decretamento das faladas providências, o requerido nunca notificou a requerente de qualquer plano de venda ou disposição de bens sociais, nem lhe pediu consentimento a esse respeito.
23. Portanto, o recorrente está meramente a conjecturar hipoteticamente quando alega nos articulados de recurso a impossibilidade de obter o consentimento da alegante devido ao rompimento da relação conjugal.
24. Sabemos dos factos supra expostos que as empresas em causa podem funcionar normalmente mesmo que tenham sido mantidas as respectivas providências cautelares. Quer dizer que, a execução das providências não danificou as empresas.
25. Face ao exposto, considerando que estão reunidos os pressupostos do decretamento das providências cautelares comuns, sem o recorrente ter apresentado qualquer fundamento que possa alterar ou ilidir os factos provados ou ter requerido outra providência cautelar mais leve, e que as providências cautelares decretadas pelo Tribuna a quo são totalmente legais, não padecendo qualquer erro nos pressupostos de facto, nem interpretando ou aplicando erradamente a lei, afigura-se-nos que, a fim de conservar o valor do património comum do casal, é necessário manter as providências em questão e, em consequência, rejeitar o presente recurso.
26. Caso assim se não entenda, pede que se decrete, nos termos do disposto no artigo 326.º, n.º 3 do CPC, outra providência que se considere adequada para garantir os direitos e interesses da requerente.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Factos
Da decisão sob recurso consta a seguinte factualidade:
1. A requerente e o requerido celebraram matrimónio em Macau a 16 de Setembro de 1994, sem convenção antenupcial.
2. Em 24 de Novembro de 2017, a requerente intentou neste Tribunal acção de divórcio litigioso.
3. O Tribunal proferiu decisão em 24 de Janeiro de 2019.
4. Inconformado, o requerido interpôs recurso para o TSI, onde o processo se encontra pendente.
5. A requerente instaurou contra o requerido, em 6 de Dezembro de 2017, acção de arrolamento. Em 18 de Dezembro do mesmo ano, este Tribunal tomou decisão, deferindo apenas a elaboração da relação dos bens comuns do casal.
6. No supra mencionado processo de arrolamento, foi elaborada a relação dos bens comuns do requerente e requerido, incluindo as seguintes acções de empresas detidas pelo requerido:
1) O requerido e a D, Lda. (D有限公司) (doravante designada por D, Lda.) são, respectivamente, titulares de 79% e 21% das participações sociais na C, Limitada (C有限公司) (doravante designada por C, Lda.); o requerido é titular de 100% das acções da D, Lda.
2) O requerido detém 75% do capital social da E, Limitada (E有限公司) (doravante designada por E, Lda.).
3) O mesmo possui 50% das acções da sociedade limitada “F”.
4) Ele é titular de 100% das acções da G, Limitada (G有限公司) (doravante designada por G, Lda.).
5) É titular de 90% do capital social da H, Limitada (H有限公司) (doravante designada por H, Lda.), sendo o restante 10% detido pela requerente.
6) O requerido detém 60% das participações sociais na I, Limitada (I有限公司) (doravante designada por I, Lda.).
7) O requerido e a requerente possuem, respectivamente, 10% e 40% do capital social da sociedade limitada “J”.
8) O requerido é titular de 100% do capital social da K Limitada (K有限公司) (doravante designada por K, Lda.).
9) O requerido é titular de 100% do capital social da L, Lda. (L有限公司) (doravante designada por L, Lda.).
10) O requerido é titular de 100% do capital social da M, Lda. (M有限公司) (doravante designada por M, Lda.).
11) O requerido é titular de 100% do capital social da N, Lda. (N有限公司) (doravante designada por N, Lda.).
12) O requerido é titular de 48,3% do capital social da O Limitada (O有限公司) (doravante designada por O, Lda.).
13) O requerido é titular de 40% do capital social da P Limitada (P有限公司) (doravante designada por P, Lda.).
14) O requerido é titular de 100% das acções da Q, Limitada (Q有限公司) (doravante designada por Q, Lda.), com o valor nominal de 30.000 patacas.
15) O requerido é titular de 100% das acções da R, Limitada (R有限公司) (doravante designada por R, Lda.), com o valor nominal de 30.000 patacas.
16) O requerido é titular de 100% das acções da S, Limitada (S有限公司) (doravante designada por S, Lda.), com o valor nominal de 30.000 patacas.
17) O requerido é titular de 100% das acções da T, Limitada (T有限公司) (doravante designada por T, Lda.).
7. As supra mencionadas empresas, das quais o requerido é accionista único ou maioritário, possuem diversos activos de valor consideravelmente elevado, tais como bens imóveis e direitos a aproveitamento de terreno.
8. Em 26 de Março de 2020, o requerido alineou a favor da U LIMITED (doravante designada por U, Lda.), pelo preço de 60.000.000 de dólares de Hong Kong, as acções da C Lda., com o valor nominal de 25.000 patacas, detidas pela D, Lda., cujo capital social é inteiramente detido pelo requerido (vide fls. 13 a 16 dos autos).
9. Em 2 de Abril de 2020, o requerido, aproveitando-se da sua qualidade de accionista de controlo da L, Lda., vendeu o direito de propriedade sobre um terreno situado no XX, n.º XX à V, Limitada (V有限公司) (doravante designada por V, Lda.), pelo preço de 2.400.000 de dólares de Hong Kong (vide fls. 17 a 21 dos autos).
10. Em 2 de Abril de 2020, o requerido, aproveitando-se da sua qualidade de accionista de controlo da K, Lda., vendeu o direito de propriedade sobre um terreno situado na Travessa do XX, n.º XX à W, Limitada (W有限公司) (doravante designada por W, Lda.), pelo preço de 2.700.000 de dólares de Hong Kong (vide fls. 22 a 26 dos autos).
11. Em 3 de Abril de 2020, o requerido, aproveitando-se da sua qualidade de accionista de controlo da M, Lda., da N, Lda. e da X, Lda. (X有限公司) (doravante designada por X, Lda.), vendeu o direito de aproveitamento dum terreno possuído pela X, Lda. e sito na XX, n.º XX, e Travessa do XX, n.º XX, à Y, Lda. (Y有限公司) (doravante designada por Y, Lda.), pelo preço de 68.000.000 de dólares de Hong Kong.
12. O requerido é o único accionista da D, Lda., L, Lda., K, Lda., M, Lda. e N, Lda. (fls. 35 a 79 dos presentes autos), e detém, através das faladas empresas, a C, Lda. e a X, Lda., das quais é o único membro da administração (vide fls. 80 a 101 dos autos).
13. Em 3 de Janeiro de 2018, o requerido procedeu à alteração aos estatutos das supra mencionadas empresas, adicionado “a alienação das acções deve ser consentida pelo accionista A, que concorda em ter a primeira preferência” e “estão sujeitos ao consentimento de A os seguintes actos: nomeação e exoneração do membro do órgão administrativo, altercação do estatuto da empresa, alienação de bens sociais e constituição de encargos sobre estes” (fls. 35 a 94 dos autos).
14. Em 4 de Janeiro de 2018, o requerido alterou o artigo 9.º do estatuto da X, Lda. no sentido de referir expressamente que as duas accionistas/pessoas jurídicas M, Lda. e N, Lda. são representadas por A (fls. 95 a 101 dos autos).
15. A requerente não conseguiu ter acesso às contas das atrás mencionadas empresas, nem teve meio de saber ou impedir os supra aludidos actos do requerido.
(II) Na fase de oposição, ouvidas as testemunhas do requerido, Z, AA e AB, e analisados os autos, é dado como provado o seguinte factualismo:
1. Da lista que a requerente junta como fls. 9 a 12v com o requerimento inicial pertencente a diferentes sociedades, resulta que apenas 4 dos mais de 202 bens integrantes dessa lista foram alienados.
2. Relativamente à participação do requerido de MOP60.000 no capital da C, Limitada (doravante “C Lda.”), com a matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis (CRCBM) n.º 6XX2 SO, a que corresponde a inscrição n.º XT.1/28042000, o requerente (sic) figura como “solteiro”, cfr. fls. 80 junto com o requerimento inicial da requerente.
3. A referida inscrição n.º XT.1/28042000 (DE CONSTITUICAO DA C Lda.) é feita com base nas escrituras de 24/07/1992 e de 28/04/1995, aí constando que a C Lda. iniciou operações em 24/07/1992, cfr. fls.81.
4. Além do requerido, a C Lda. tem actualmente como sócios a AC Limited (AC Ltd) e a D Limitada (D Lda.), cfr. fls. 88.
5. Os actuais sócios e respectivas participações sociais na C Lda. nos termos do registo (cfr. fls. 88) correspondem a:
a) AC Ltd – 12,5%;
b) D Ltd – 8,5%;
c) A (antes do casamento) – 30%;
d) A (depois do casamento) – 49%.
6. A AC Limited, que tem como administrador o Sr. AD, cfr. fls. 102 a 105v.
7. Os bens listados sob os n.º 6 a 200 do cfr. fls. 9 a 12v junto com o RI vêm referidos como pertencentes à C Lda.
8. Diga-se que os imóveis mencionados sob os n.ºs 192 a 195 de fls. 12v, ou seja, fracções B20, C20, D20 e E20 do prédio n.º 9150, foram alienados pela C Lda. a terceiros no ano de 2018 e 2019, cfr. fls. 138 a 165.
9. Os referidos terceiros efectuaram, respectivamente, o pagamento dos preços acordados pelas transmissões desses imóveis, por meio de cheques emitidos em nome da C Lda., cfr. fls. 166 a 172.
10. Relativamente aos imóveis mencionados sob os n.ºs 199 a 200 a fls. 12v, os mesmos não existem porque o edifício tem apenas 20 andares, cfr. fls. 139.
11. A C Lda. tem actualmente como único administrador o requerido, cfr. fls. 102 a 105v.
12. A C Lda. tem como objecto, entre outros, o “comércio de bens imobiliários”, cfr. 102 a 105.
13. A alienação da quota com o valor nominal de MOP25.000 (equivalentea 12,5% do capital social) que a D Lda. detinha na C Lda. foi realizada pelo valor de MOP61.800.000 através do contrato de 26/03/2020 (inscrição n.º AP. 28/27032020), cfr. fls. 87 a 88.
14. O pagamento do preço da transmissão foi realizado pela compradora, no equivalente em dólares de Hong Kong ao valor supra referido, através do cashier order emitido em nome da vendedora, a D Lda., pelo AE Ltd. (AE Bank) n.º 10XXX96 de 25/03/2020 no montante de HKD$60.000.000, cfr. fls. 173.
15. A D Lda. tem como objecto a gestão de participações sociais, cfr. fls. 35.
16. A transmissão do prédio registado na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.º 2XX6, situado no Pátio da Pomba s/n, pela L Limitada (L Lda.) foi realizada pelo montante de HKD$2.400.000, através de escritura de 02/04/2020, cfr. fls. 17 a 21.
17. O aludido preço de HKD$2.400.000 foi pago através do cashier orders emitidos em nome da vendedora, L Lda., pelo AE Bank n.º 1023230 de 27/03/2020 no valor de HKD$800.000 e n.º 10XXX11 de 31/03/2020 no valor de HKD$1.600.000, cfr. fls. 176 a 177.
18. O prédio n.º 2XX6 foi avaliado pela imobiliária AF Limited – Macau Branch (doravante AF) pelo valor de HKD$2.500.000 à data de 24/03/2020, cfr. fls. 178 a 179 (extracto do relatório).
19. O prédio n.º 2XX6 é um terreno rústico, para construção, cujo edifício aí existente foi demolido em 25/02/2013, cfr. fls. 17 a 21.
20. O prédio n.º 2XX6 está rodeado de prédios antigos e degradados.
21. Ademais, embora ainda não tenha sido submetido nenhum projecto de construção, as autoridades competentes só permitem a edificação de prédios com um andar nessa localização, o que será igualmente aplicável ao prédio n.º 2XX6, cfr. fls. 180v.
22. A transmissão do prédio n.º 1XX2 registado na CRP, situado na Calçada da XX XX com a Travessa do XX XX, pela X Limitada (X, Lda.) por escritura de 03/04/2020, foi realizada pelo montante de HKD$68.000.000 (equivalente a MOP70.040.000 ao câmbio de HKD$1=MOP1,03), cfr. fls. 34.
23. O referido preço de HKD$68.000.000(MOP70.040.000) foi pago através dos cashier orders emitidos a favor da vendedora, X Ldas, pelo AE Bank n.º 10XXX50 de 01/04/2020 no montante de HKD$25.000.000 e n.º 10XXX71 de 03/04/2020 no montante de HKD$43.000.000, cfr. fls. 181 a 182.
24. O valor matricial definitivo fixado em 01/07/2019 pela Direcção dos Serviços de Finanças (DSF) do Governo da RAEM para o prédio situado na Calçada da XX XX e Travessa do XX XX (ou seja, o prédio n.º 1662) foi de MOP66.000.000, cfr. fls. 183.
25. O prédio n.º 1XX2 havia sido concedido à X Lda. por despacho do Secretário dos Transportes e Obras Públicas n.º 70/2015 de 15/07/2015, cfr. fls. 31 a 32.
26. O prédio n.º 1XX2 é destinado a “pensão”, e a conversão da concessão em definitiva foi registada em 09/09/2019, cfr. fls. 28.
27. A X Lda. é uma sociedade que se dedica ao investimento e formento predial, cfr. fls. 95.
28. A transmissão do prédio n.º 7XX.º registado na CRP, situado na Travessa do XX XX, pela K Limitada (K Lda.) através de escritura de 09/03/2012, foi realizada pelo valor de HKD$2.700.000, cfr. fls. 25 a 26.
29. O referido preço de HKD$2.700.000 foi pago através dos cashier orders emitidos a favor da vendedora K Lda. pelo AE Bank n.º 01XXX12 no montante de HKD$900.000 de 27/03/2020 e n.º 10XXX31 no montante de HKD$1.800.000 de 31/03/2020, cfr. fls. 184 a 185.
30. A K Lda. adquiriu o referido prédio pelo montante de MOP825.200 em 2012, cfr. fls. 25.
31. O prédio n.º 7XX é adjacente ao prédio n.º 1XX2, se pode ver no website dos Serviços de Cartografia de Macau (webmap.gis.gov.mo), cujo screenshot ora se junta como fls. 186.
32. O prédio n.º 7XX foi adquirido com o propósito de sevir de apoio ao aproveitamento do terreno n.º 1XX2, como uma espécie de depósito dos materiais de construção.
33. A K Lda. cedeu o uso do prédio n.º 7XX à X Lda. durante o período de construção do edifício no terreno n.º 1XX2, após a conclusão do qual, deixou de ter qualquer propósito.
34. O terreno é de reduzida dimensão (aproximadamente 28 m2), o que torna a edificação do mesmo pouco rentável.
35. O terreno em causa foi abrangido pelas delimitações geográficas que determinam a classificação dos prédios integrantes do património cultural nos termos do Reg. Adm. n.º 31/2018, e registado na CRP sob o averbamento oficioso n.º 2 de 1 de Abril de 2019, cfr. fls. 23.
36. O terreno foi avaliado pela AF pelo valor de HKD$3.500.000, cfr. fls. 188.
37. A E, Limitada (E, Lda.), transmitiu a AI em 04/09/2015 a fracção C7 do prédio registado na CRP sob o n.º 2XXX5, pelo montante declarado de MOP2.060.000, cfr. fls. 200.
38. A fracção C7 do prédio n.º 21945 foi avaliada a respeito da data de 11.09.2015 pela AG, S.A.R.L (AG) pelo valor de HKD$7.400.000, cfr. fls. 203.
39. A E Lda. foi representada nessa transacção pela requerente na qualidade de administradora, cujos poderes foram comprovados pelo notário meramente com base no registo comercial (ou seja, não decorrente de uma acta dos órgãos sociais), cfr. fls. 207, que se dá por integralmente reproduzido.
40. Em 17/07/2018, a referida fracção C7-2XXX5 é transmitida a favor de AH pelo valor declarado de HKD$6.880.000, cfr. fls. 201.
41. Em 19/10/2015, a E Lda. transmitiu novamente a AI uma quota de 1/123 da fracção B2 do prédio registado na CRP sob o n.º 2XXX5, pelo valor declarado de MOP1.000.000, cfr. fls. 225.
42. Uma quota de 1/123 da fracção B2 nesse prédio n.º 2XXX5 foi avaliada a respeito da data de 11.09.2015 pela AG pelo valor de HKD$1.700.000, cfr. fls. 226.
43. A E Lda. Foi de novo representada nessa transacção pela requerente na qualidade de administradora, e também os poderes foram comprovados pelo notário meramente com base no registo comercial, cfr. fls. 227 a 230, que se dá por integralmente reproduzido.
44. De todo o modo, a requerente nunca providenciou os fundos que declarou em noma da E Lda. ter recebido com as alienações supra-mencioandas (cfr. fls. 206 e 230), à referida E Lda.
2. Do Direito.
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
1) Proibir o requerido de, sem notificação à requerente ou consentimento desta, praticar, em nome dele próprio, ou mediante constituinte(sic), representante ou qualquer intermediário, os seguintes actos comprometedores do valor do património comum:
* Em nome de accionista, através de deliberação tomada na assembleia de accionistas ou de outros meios, prometer alienar ou alienar, a qualquer título ou por qualquer forma, os bens sociais das empresas acima referidas (incluindo mas não se limitando aos bens móveis e imóveis e outros direitos), transferir o direito de propriedade ou jus possessionis destes, prometer constituir ónus e/ou constituir ónus sobre os mesmos, ou tomar deliberação no sentido de distribuir os lucros das empresas aos sócios ou de dissolver e liquidar as empresas.
* Em nome de administrador, gerente ou outro representante das empresas, prometer alienar ou alienar, a qualquer título ou por qualquer forma, os bens sociais das empresas acima referidas (incluindo mas não se limitando aos bens móveis e imóveis e outros direitos), ou prometer constituir ónus e/ou constituir ónus sobre os mesmos.
2) Proibir o requerido, o seu constituinte(sic), representante ou qualquer intermediário de praticar qualquer acto ou celebrar qualquer contrato em violação das ordens anteriores, sob pena de tais actos não produzir efeito em relação à requerente.
3) Notificar a Conservatória do Registo Predial, a Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis e os cartórios notariais, públicos e privados, para recusarem o registo ou a escrituração de actos em desrespeito das supra referidas ordens.
Da leitura da primeira parte do ponto 1 da decisão recorrida o que resulta é que o Requerido/Recorrente enquanto “accionista” – entenda-se sócio - das sociedades indicadas nos autos não pode votar a favor de deliberação ou decidir naquelas em que é único sócio, por si ou através de representante legal, no sentido de serem alienados, prometidos alienar, ou constituídos ónus sobre bens imoveis, moveis ou outros direitos que pertençam às sociedades, bem como qualquer decisão que implique a distribuição de lucros, dissolução ou liquidação da sociedade sem que para tal tenha obtido o consentimento da Requerente.
Na segunda parte do ponto 1 do dispositivo impõe-se que o Recorrente/requerido no exercício do cargo de administrador não possa praticar determinados actos (os supra indicados) sem autorização da Recorrida/Requerente.
É contra esta parte da decisão em que se impede que o Requerido delibere no sentido de serem alienados, prometidos alienar, ou constituídos ónus sobre bens imoveis, moveis ou outros direitos que pertençam às sociedades, e que no exercício das funções de administrador pratique esses actos que o Recorrente se insurge e ataca a decisão recorrida, invocando no início das suas alegações pela impossibilidade do ordenado face às sociedades serem pessoas jurídicas distintas da Requerente e do Requerido.
No fundo a ideia subjacente a esta providência cautelar é impedir as sociedades onde o Requerido/Recorrente tem participação social de praticar actos de disposição de bens que integrem o seu activo de modo a evitar que o valor das mesmas diminua protegendo os direitos e interesses da Requerente numa eventual (porque ainda incerta) partilha dos bens comuns do casal.
Porém, embora as participações sociais de que o Requerido seja titular nessas sociedades, incluindo as unipessoais, façam parte do acervo da comunhão conjugal se adquiridas na pendência do matrimónio, o certo é que, as sociedades são pessoas jurídicas distintas da Requerente e do Requerido.
Tendo casado em Macau em 1994 sem convenção antenupcial, estão Requerente e Requerido casados segundo o regime de bens de comunhão de adquiridos – artº 1717º do C.Civ. vigente em Macau ate 1999 -.
O que integrará o acervo dos bens comuns serão apenas as participações sociais e não o património das sociedades.
Por sua vez como o Recorrente também invoca, de acordo com o disposto no artº 328º do CPC a providência cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado.
Ora, o direito a acautelar no caso em apreço é a integridade e valor do património comum para efeito de partilhas evitando a dissipação do mesmo – daí o arrolamento dos bens comuns do casal -, mas com isto não se confunde a actividade comercial das sociedades onde os cônjuges tenham participações sociais.
No que concerne à primeira parte da decisão recorrida o que está em causa é o exercício do direito de voto e/ou decisão enquanto sócio inerentes às participações sociais tituladas pelo Recorrente/Requerido e que são bens comuns, nomeadamente no que concerne à tomada de posição quanto à disposição e oneração de bens imoveis, moveis e direitos, bem como distribuição de lucros, dissolução e liquidação das sociedades.
O direito de voto nos termos da alínea d) do artº 195º do C.Com. é um direito do sócio.
O exercício do direito de voto é feito nos termos dos artº 217º e 218º do C.Com, estando limitada a intervenção em assembleia geral ao sócio ou ao seu representante nos termos do nº 2 do artº 218º do C.Com..
O exercício do direito de voto pressupor também a informação sobre todas as questões relativas à sociedade, informação essa que por força do sigilo da sociedade quanto à sua actividade apenas pode ser dispensada aos sócios e nos termos legalmente e estatutariamente fixados – artº 209º do C.Com. -.
Em casos de quotas indivisas estabelece o artº 365º do C.Com. que os direitos inerentes à quota são exercidos pelo representante comum.
Ou seja, sendo o direito de voto um direito inerente ao sócio é por este que deve ser exercido.
O facto da quota pertencer a alguém que seja casado num qualquer regime de comunhão não altera a forma de exercício do respectivos direitos e obrigações nem faz com que essa quota passe a ser indivisa.
Com fundamento no processo de divórcio autoriza o legislador que os cônjuges possam requerer o arrolamento dos bens comuns do casal – artº 368º do CPC – o que consiste na descrição de todos os bens que fazem parte do acervo comum ou de bens próprios sob administração do outro, providência essa já antes decretada e de onde supostamente constam as participações sociais do requerido objecto destes autos.
Permitir, como foi ordenado que determinadas deliberações sejam tomadas após obtido o consentimento do cônjuge do sócio é ir para além do que a própria lei permite no caso de quotas indivisas no artº 365º do C.Com., impondo à sociedade a ingerência nas suas deliberações de uma pessoa que não é sócia, relativamente a uma quota que não é indivisa, para além de, implicar uma limitação aos direitos do sócio sem qualquer fundamento legal.
Os actos que o cônjuge só pode praticar com autorização do outro resulta de disposição legal não sendo permitido ao tribunal impor restrições que não tenham fundamento na letra da lei.
Destarte, carece em absoluto de fundamento legal a imposição do direito de voto ou de decisão do sócio no caso das sociedades unipessoais (artº 392º) só poder exercido mediante o consentimento do cônjuge, pelo que nunca poderá subsistir a primeira parte do ponto 1 da decisão recorrida.
Outra questão é no que concerne à segunda parte do ponto 1 do dispositivo.
Nesta parte do dispositivo pretende impor-se que o Recorrente/Requerido no exercício do cargo de administrador e/ou gerente não possa praticar determinados actos sem autorização da Recorrida/Requerente.
Ora, a administração/gerência da sociedade é exercida por uma pessoa singular ainda que o exercício do cargo seja atribuído a uma pessoa colectiva – nº 2 do artº 234º do C.Com. -.
O administrador é nomeado pelos sócios e responsável perante a sociedade.
Admitir-se que a actuação enquanto administrador do Requerente esteja condicionada a autorizações de alguém alheio à sociedade desvirtua todo o regime ainda que relativamente a sociedades unipessoais cuja quota única seja bem comum do casal.
Dos elementos juntos aos autos – embora não tenha sido levado à factualidade assente – resulta que a administração das sociedades pode praticar actos de disposição e oneração dos activos destas.
Porém, os eventuais direitos patrimoniais dos cônjuges relativamente às quotas que integrem o património comum, não se confundem com o exercício do cargo de administrador.
Logo, não tem qualquer fundamento legal a sujeição do administrador das sociedades a autorização do cônjuge, para a prática de determinados actos no âmbito da administração da sociedade que lhe compete exercer.
Para além de que, qualquer limitação no que concerne aos actos que a administração da sociedade pudesse praticar sempre haveria de ser decidida em acção ou providência cautelar de que a própria sociedade fosse parte.
A menos que haja fundamento para instaurar providência cautelar contra as sociedades impedindo-as de praticar actos que diminuam o seu valor seja por redução do activo, seja por aumento do passivo, é impossível impor ao cônjuge titular da participação social injunções que evitem esse desiderato a menos que se recorra à figura da separação ou afastamento da personalidade jurídica da sociedade, se se verificarem os respectivos pressupostos, situação essa que no caso em apreço nem sequer é invocada, mas que, sempre haveria de ser dirimida em acção, também, instaurada contra a sociedade por se tratar de pessoa jurídica distinta dos sócios.
Resumindo, o que a Requerente pede é “a proibição do Requerido de praticar actos de alienação ou oneração de bens que façam parte dos activos das sociedades”.
Sendo as sociedades pessoas jurídicas distintas do Requerido e Requerente, ainda que sejam sociedades unipessoais, sendo o exercício da administração das sociedades um acto pessoal, não sendo a Requerente tão pouco sócia da maioria das sociedades, carece em absoluto a Requerente de legitimidade para formular tal pedido, para além de que, para se conseguir esse desiderato sempre haveria a providência de ter sido deduzida contra as sociedades por quem tivesse legitimidade e fundamento para o efeito, sendo certo que, o direito a acautelar nunca seria no âmbito de um processo de divórcio, pelo que, também nunca seria por dependência deste (do divórcio) que tal providência havia de ser instaurada.
Destarte, porque as participações sociais que o Requerido tem nas sociedades, algumas unipessoais, são bem comum do casal, não tem a Requerente legitimidade para intervir no giro comercial impondo regras de conduta e de decisão ao Requerido enquanto administrador da sociedade.
Logo, nunca poderiam ter sido ordenadas as injunções que constam do ponto 1 da decisão ou deferido o que se pedia em 3 do requerimento inicial.
Não podendo ser ordenada a injunção que consta do ponto 1 da decisão, igualmente não podia ser ordenado o que consta do ponto 2 e 3.
O Recorrente insurge-se também contra a matéria de facto apurada na decisão recorrida por entender que haviam de ter sido dados por provados factos que o não foram.
Em regra a apreciação da matéria de facto precede a de direito, contudo, no caso em apreço, a impossibilidade da providência ser decretada nos termos em que era pedida ou nos termos em que o foi resulta das regras de direito, sendo por isso irrelevante estar a apreciar do acerto da decisão quanto à matéria de facto.
Destarte, impondo-se conceder provimento ao recurso e negar a concessão da providência pelos fundamentos referidos supra, fica prejudicada a apreciação dos demais argumentos invocados em sede de conclusões de recurso.
Em sentido idêntico ao desta decisão se decidiu no Acórdão deste Tribunal de 25.02.2016 proferido no processo nº 23/2016.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida negando a concessão da providência.
Custas a cargo da Requerente e Recorrida em ambas as instâncias.
Registe e Notifique.
RAEM, 10 de Fevereiro de 2021
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
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Lai Kin Hong
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Fong Man Chong
1126/2020 CÍVEL 39