打印全文
Processo nº 168/2020 Data: 18.12.2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : “Contratação de trabalhadores não residentes”.
Revogação da autorização.
Motivação da decisão.
Recurso contencioso.



SUMÁRIO

1. A “motivação” de uma decisão deve ser “expressa”, (ou explícita, não sendo assim aceitável uma fundamentação meramente implícita), “clara”, (inteligível, congruente, lógica e coerente), e “bastante”, (suficiente, completa).

2. Nesta conformidade – e atento o prescrito no art. 115° do C.P.A. – adequada, (legal), não é uma decisão (administrativa) em que a “situação” sobre a qual se decide não se apresenta clara, e onde (completamente) omitida é a “fundamentação de direito”.

3. Em sede de recurso contencioso de uma decisão administrativa proferida no âmbito do exercício do poder discricionário, o Tribunal não pode invocar – como que em “substituição” da entidade recorrida – fundamentação jurídica por aquela não indicada para justificar o acerto do decidido.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 168/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 28.05.2020, (Proc. n.° 522/2018), negou-se provimento ao recurso contencioso que a sociedade “A”, (“甲”), com os sinais dos autos, interpôs do despacho do SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS de 30.04.2018, com o qual, (em sede de recurso hierárquico), se confirmou a decisão do Director dos Serviços de Assuntos Laborais que revogou a antes concedida autorização de contratação por parte da recorrente de 13 trabalhadores não residentes; (cfr., fls. 83 a 88-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada com o assim decidido, traz a recorrente o presente recurso, pedindo a revogação do dito Acórdão com a consequente anulação do acto administrativo recorrido; (cfr., fls. 95 a 101-v).

*

Em sede de vista, e em douto Parecer, é o Ministério Público de opinião que deve ser dado provimento ao recurso.

Tem o Parecer teor seguinte:

“Nos termos previstos na norma do artigo 157.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), vem o Ministério Público pronunciar-se nos termos que seguem:
1.
Inconformada com a decisão do Tribunal de Segunda Instância proferida nos presentes autos a fls. 83 a 88 que julgou improcedente o recurso contencioso que interpôs do acto do Secretário para a Economia e Finanças de 30 de Abril de 2018 que negou provimento ao recurso hierárquico da decisão do Director dos Serviços para os Assuntos Laborais que revogou a autorização de 13 trabalhadores não residentes, veio a sociedade comercial A, melhor identificada nos autos, interpor o presente recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância.
Alega, no essencial e em síntese, que a decisão recorrida:
(i) enferma do vício de violação do ónus da prova;
(ii) errou na interpretação e aplicação das normas dos artigos 32.º, n.º 2, alínea 6) e do artigo 33.º, n.º 1, alínea 1) da Lei 21/2009;
(iii) errou ao considerar revogável um acto que é irrevogável face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 129.º do Código do Procedimento Administrativo.
2.
2.1.
Quanto ao primeiro fundamento do presente recurso jurisdicional parece-nos manifesto que esse Tribunal de Última Instância não pode conhecer do mesmo.
Na verdade, de acordo com o artigo 152.º do CPAC, «o recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada».
Resulta, pois, da citada norma, entre o mais, que o Tribunal de Última Instância não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova (neste sentido, veja-se o acórdão de 2.6.2004, Processo n.º 17/2003) e é disso que se trata na questão suscitada pelo Recorrente. O que esta pretende discutir é a convicção formada pelo Tribunal recorrido relativamente à ocorrência dos factos que serviram de pressuposto à prática do acto recorrido e isso, manifestamente, extravasa dos poderes de cognição desse Tribunal.
Teria havido violação das regras do ónus da prova se o Tribunal recorrido, colocado perante uma situação de dúvida sobre a realidade de determinado facto tivesse decidido contra quem não tinha a seu cargo o ónus da prova (cfr. artigo 437.º do Código de Processo Civil e artigo 339.º, in fine do Código Civil). Como se sabe, «as normas sobre a distribuição do ónus da prova constituem normas de decisão, pois, se destinam, em primeira linha, a possibilitar a decisão no caso de falta de prova» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 29.11.2005, processo n.º 05A3539). Mas não é disto que se trata na questão suscitada pelo Recorrente. O Tribunal recorrido, apelando às regras da experiência comum e a considerações de razoabilidade, considerou que determinada factualidade se devia considerar provada. Como assim, não tendo havido dúvida do julgador não há lugar à intervenção das regras do ónus da prova que, como vimos se destinam, justamente, a superar essa dúvida.
Somos a concluir, pois, que a primeira questão suscitada pelo Recorrente está subtraída à cognição desse Tribunal.
2.2.
2.2.1.
A segunda questão que é trazida pelo Recorrente para fundamentar a sua pretensão impugnatória é a de saber se a douta decisão recorrida errou na interpretação e na aplicação das normas dos artigos 32.º, n.º 2, alínea 6) e do artigo 33.º, n.º 1, alínea 1) da Lei 21/2009.
Vejamos.
Esta questão não constituiu fundamento do recurso contencioso interposto pelo Recorrente. Certamente, dizemos nós, porque essas normas não integraram a fundamentação jurídica do acto administrativo recorrido nem, antes dele, do acto de 1.º grau praticado pela Administração (diga-se, aliás, que nem essas nem quaisquer outras, pois que da leitura do referido acto o que resulta é uma absoluta omissão de qualquer fundamento legal ao abrigo do qual tenha sido praticado, em evidente violação, salvo o devido respeito, do dever de fundamentação dos actos administrativos que a norma do artigo 114.º, conjugadamente com o n.º 1 do artigo 115.º, inequivocamente consagra. A verdade, no entanto, é que o vício da falta de fundamentação não foi suscitado em sede de recurso contencioso pelo que também não pode ser conhecido nesta fase processual).
O que sucedeu foi que a douta decisão recorrida, ela própria, justificou a legalidade do acto administrativo contenciosamente impugnado nos referidos artigos 32.º, n.º 2, alínea 6) e do artigo 33.º, n.º 1, alínea 1) da Lei 21/2009, como que fundamentando, a posterior, esse mesmo acto.
Com todo o respeito, pensamos que estava vedado ao douto Tribunal a quo fazê-lo. Nem sequer ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo pois que, neste caso, não havia uma vinculação legal da Administração a revogar o acto ao abrigo da norma do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 21/2009, dado que esta norma, tipicamente, concede discricionariedade, tal como resulta da utilização da palavra «podem». Daí que nos pareça não ser aqui aplicável a jurisprudência desse Tribunal consagrada no acórdão tirado no processo n.º 54/2011 e que a douta decisão recorrida invocou.
Donde, tratando-se de um poder discricionário, era a Administração que estava obrigada a invocar a norma habilitante do respectivo exercício e o facto é que, da fundamentação do acto nada resulta a esse propósito. Cremos, modestamente e com todo o respeito, que não cabia ao tribunal fazê-lo.
Seja como for, o acórdão recorrido sustentou a legalidade do acto na conjugação que fez do artigo 130.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e das já referidas normas dos artigos 32.º, n.º 2, alínea 6) e do artigo 33.º, n.º 1, alínea 1) da Lei 21/2009 e por isso, apesar de, como dissemos, a questão ter sido antes suscitada, parece-nos que não pode a mesma deixar de ser conhecida por esse Tribunal de Última Instância.
2.2.2.
A nosso ver, salvo o devido respeito, que é muito, pelo entendimento contrário, o Recorrente tem razão.
Vamos procurar demonstrar porquê.
De acordo com o artigo 130.º do CPA, os actos administrativos, mesmo os actos constitutivos de direitos, podem ser revogados com fundamento na sua ilegalidade.
No caso, não se vislumbra, nem foi invocada pela Administração qualquer ilegalidade no acto de autorização da contratação de trabalhadores não residentes que foi revogado pelo acto administrativo que a Entidade Recorrida confirmou através do acto contenciosamente recorrido. De resto, esse acto de autorização de contratação de trabalhadores não residentes não foi anulado, mas foi revogado.
Daí que, com todo o respeito, nos pareça que o Tribunal recorrido terá feito uma aplicação errada daquela norma.
Por outro lado, de acordo com o artigo 33.º, n.º 1, alínea 1) conjugado com artigo 32.º, n.º 2, alínea 6) da Lei n.º 21/2009, a Administração pode revogar «todas ou parte das autorizações de contratação de trabalhadores não residentes» quando o empregador utilize o trabalhador não residente em local diferente do expressamente autorizado. Trata-se, parece-nos de uma situação de revogação-sanção que se afasta, em todo o caso, do regime da anulação administrativa, também chamada de revogação anulatória.
Ora, como alega o Recorrente no presente recurso, os indivíduos mencionados na decisão administrativa cujos dados teriam sido transferidos para outras duas empresas sem o respectivo conhecimento e consentimento são trabalhadores residentes, ou, o que é processualmente equivalente, não foi alegado pela Administração nem se prova que os mesmos sejam trabalhadores não residentes.
Daí que falte o pressuposto que integra a previsão da norma que resulta da conjugação da alínea 6), do n.º 2 do artigo 32.º e da alínea 1) do n.º 1 do artigo 33.º, n.º 1 da Lei 21/2009, qual seja, o de que teriam sido utilizados trabalhadores não residentes em local diferente daquele que foi expressamente autorizado.
Salvo o devido respeito, parece, pois, que a decisão recorrida fez uma interpretação e aplicação errada das referidas normas que deve implicar a respectiva revogação.
2.3.
A última questão que vem suscitada pelo Recorrente no presente recurso jurisdicional já havia sido invocada no recurso contencioso e é a de saber se o acto administrativo recorrido violou a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 129.º do CPA.
A decisão recorrida não tomou uma posição explícita sobre a questão porque, como vimos, considerou que a revogação tinha fundamento na norma do artigo 130.º do CPA.
Sabemos que a nossa lei distingue entre a revogação de actos válidos ou revogação propriamente dita ou abrogatória (artigo 129.º do CPA) e a revogação de actos inválidos ou revogação anulatória ou, mais rigorosamente, pelo menos para nós, anulação administrativa (artigo 130.º do CPA).
Já vimos que, no caso, deve ter-se por afastado o regime da anulação administrativa e, por outro lado, não existe fundamento para a revogação sanção prevista no artigo 33.º da Lei 21/2009.
Daí que caiba a pergunta: encontrará o acto administrativo contenciosamente recorrido suporte na norma do artigo 129.º do CPA?
Cremos que não.
É certo que, de acordo com o corpo do n.º 1 do artigo 129.º do CPA, a regra entre nós consagrada é a de que os actos administrativos discricionários são livremente revogáveis (apesar de a letra da lei não distinguir entre actos discricionários e actos vinculados, deve entender-se que relativamente aos actos administrativos praticados no exercício de poderes vinculados a regra é a da respectiva irrevogabilidade: já neste sentido, JOSÉ ROBIN DE ANDRADE, A Revogação dos Actos Administrativos, 2.ª edição, Coimbra, 1985, p. 197 e, mais recentemente, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, temas nucleares, Coimbra, 2012, p. 238). No entanto, nas diversas alíneas daquele n.º 1 do artigo 129.º estão previstas excepções àquela regra.
Não são livremente revogáveis os actos administrativos válidos que forem constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos (alínea b) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 129.º do CPA). Tais actos apenas são revogáveis com fundamento na respectiva invalidade e dentro do condicionalismo legal previsto no artigo 130.º do CPA.
O acto revogado pelo acto que foi atacado contenciosamente, que autorizou a contratação de trabalhadores não residentes é, fora de dúvida, um acto que constituiu direitos na esfera jurídica da Recorrente e por isso a sua revogação que não seja feita com fundamento em invalidade é, ela própria, ilegal. Também neste ponto a razão está, em nosso entender, do lado da Recorrente.
3.
Deve ser dado provimento ao presente recurso jurisdicional e, consequentemente, revogada a douta decisão recorrida.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público”; (cfr., fls. 120 a 123-v).

*

Cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. No segmento decisório respeitante à “matéria de facto” tem o Acórdão recorrido o teor seguinte:

«Analisados os dados constantes dos presentes autos e dos autos administrativos, dão-se como provados os seguintes factos relevantes para o conhecimento da causa:
A recorrente possuía 13 autorizações de contratação de trabalhadores não residentes (1 trabalhador administrativo de classe média, 1 auxiliar de serviços urgentes de apoio técnico, 2 técnicos informáticos, 2 administradores da rede, 1 administrador da estrutura, 1 auxiliar informático, 3 operadores dos serviços de assistência telefónica e 2 auxiliares informáticos(sic)).
Por despacho do director da DSAL n.º 21861/IMO/DSAL/2017, foram revogadas as supra mencionadas autorizações de contratação de trabalhadores não residentes.
A recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para a entidade recorrida.
A DSAL formulou superiormente as seguintes propostas:
“Não obstante a justificação escrita e os documentos apresentados pela requerente, os mesmos não constituem fundamentos suficientes para suportar a sua pretensão. Além disso, devem ser considerados ainda os seguintes factos: 1. A justificação da interessada não se apresenta compatível com as declarações dos respectivos trabalhadores prestadas na DSAL. 2. Realizada a investigação pela DSAL, ficou provado que a interessada transferiu os dados dos seus trabalhadores D (丁), E (戊), F (己), G (庚), H (辛) e I (壬), para a B (乙), sem conhecimento e consentimento dos referidos indivíduos; e transferiu os dados dos seus trabalhadores J (癸), K (甲甲), L (甲乙), M (甲丙), N (甲丁), O (甲戊), P (甲己), Q, R (甲辛), S (甲壬), T (甲癸), U (乙甲), V (乙乙), W (乙丙), X (乙丁), Y (乙戊), Z (乙己) e AA (乙庚), para a C (丙), sem conhecimento e consentimento dos mesmos. Além disso, foi só durante a investigação da DSAL que a interessada pediu aos trabalhadores no activo ou já desligados do serviço para celebrarem contratos de trabalho com efeitos retroactivos emitidos em nome da B e procedeu à inscrição e contribuição para a segurança social dos respectivos trabalhadores. 3. Os ofícios do FSS apresentados pela interessada não podem comprovar a existência de relação laboral entre os ditos trabalhadores e as faladas empresas. 4. Há residentes que se candidatam aos empregos em questão.
Pelo exposto, sugere-se a manutenção da decisão proferida no despacho em causa.”
Em 30 de Abril de 2018, o Sr. SEF exarou o seguinte despacho (fls. 28):
“Mantenha-se a decisão do despacho em questão.”»; (cfr., fls. 86-v a 87 e 15 a 17 do Apenso).

Do direito

3. Como se deixou relatado, o presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que negou provimento ao anterior recurso contencioso da ora recorrente onde esta impugnava a decisão administrativa que lhe tinha revogado a autorização para a contratação de 13 trabalhadores não residentes.

Neste aresto, (após se indicar como “matéria de facto provada” e que se deixou transcrita, e), apreciando-se os vícios pela recorrente então imputados ao dito acto administrativo recorrido consignou-se o seguinte:

“Erro nos pressupostos do facto
Segundo a recorrente, a sua empresa presta serviços de gestão dos recursos humanos à B e à C.
A fim de provar isso, a recorrente apresentou como testemunhas vários indivíduos que trabalham ou trabalhavam na B, C ou A como responsáveis ou empregados.
Analisadas integralmente todas as provas constantes dos autos, incluindo as declarações prestadas por outros trabalhadores junto das autoridades, constata-se que a maioria dos declarantes disse que só foi contratada pela recorrente, sem que nunca tenha prestado trabalho à B ou C.
Alguns declarantes mesmo afirmaram que o contrato de trabalho foi assinado retroactivamente, a pedido da recorrente, ou seja, a A, após a desligação deles da mesma. Segundo os mesmos, foi-lhes dito que a A, a B e C eram possuídas pela mesma pessoa ou eram empresas parceiras, pelo que foram transferidos para as últimas duas empresas. Acresce que, alguns desses trabalhadores alegaram que as suas notas de vencimentos não continham o nome da B nem da C, e alguns mesmo disseram que as notas que tinham recebido da recorrente eram diferentes das apresentadas por esta à DSAL.
Por outro lado, mesmo que a B e C tenham pago contribuições ao FSS em nome dos referidos empregados, somos da opinião de que a verificação da relação laboral depende da existência dos elementos tais como a prestação de serviço, o pagamento de retribuição e a relação subordinativa; a contribuição à segurança social por si só não significa necessariamente que existe a relação de trabalho.
Na verdade, de acordo com as regras da experiência comum, é impossível que os contratados não saibam para quem trabalham. Logo, propendemos a acreditar nas declarações prestadas pelos outros trabalhadores no processo administrativo, por serem mais verosímeis e razoáveis.
Assim sendo, entendemos que o acto administrativo recorrido não padece do vício do erro nos pressupostos de facto.
*
Revogabilidade do acto administrativo
A recorrente ainda sustenta que a revogação livre do acto administrativo (concessão das autorizações de contratação de trabalhadores não residentes) pela Administração violou o disposto no artigo 129.º, n.º 1, al. a) do CPA porque tal acto conferiu-lhe o direito de contratar empregados não residentes e assim constituiu um acto de natureza benéfica.
Ao abrigo do disposto no artigo 129.º, n.º 1 do CPA, os actos administrativos que sejam válidos são livremente revogáveis, excepto nos casos seguintes:
- Quando a sua irrevogabilidade resultar de vinculação legal;
- Quando forem constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos;
- Quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis.
E dispõe o artigo 130.º do mesmo Código que, os actos administrativos anuláveis só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida.
Atentas as normas, sabemos que os actos administrativos válidos são, em geral, livremente revogáveis salvo casos excepcionais legalmente previstos; e os actos administrativos inválidos podem ser revogados dentro de determinado prazo.
Nos termos do disposto no artigo 32.º, n.º 2, al. 6) da Lei n.º 21/2009, É punido com multa de $5 000,00 (cinco mil patacas) a $10 000,00 (dez mil patacas) por cada trabalhador em relação ao qual se verifique a infracção, o empregador que utilize o trabalhador não residente em local diferente do expressamente autorizado.
O artigo 33.º, n.º 1, al. 1) da mesma Lei estatui que, Pelas infracções previstas nos n.os 1 a 3 do artigo anterior podem ser aplicadas as seguintes sanções acessórias: Ao empregador, revogação de todas ou parte das autorizações de contratação de trabalhadores não residentes concedidas, acompanhada da privação, pelo período de seis meses a dois anos, do direito de pedir novas autorizações.
Como refere o acórdão do TUI no processo n.º 54/2011, “A Administração está vinculada a revogar os actos ilegais anuláveis, sejam desfavoráveis ou favoráveis aos particulares.”
Compulsados os factos dados como provados, constata-se que a recorrente transferiu, sem consentimento dos trabalhadores envolvidos, empregados da A à B e à C. Tal conduta violou o disposto no artigo 32.º, n. 2, al. 6) da Lei n.º 21/2009 bem como preencheu as condições para revogar as autorizações de contratação de trabalhadores não residentes concedidas à recorrente.
(…)”; (cfr., fls. 87 a 88 e 17 a 21 do Apenso).

Como se vê, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que o “acto administrativo recorrido não padecia do vício de erro nos pressupostos de facto”, e considerando que a recorrente “violou o disposto no artigo 32.º, n. 2, al. 6) da Lei n.º 21/2009”, deu como verificadas as “condições para revogar as autorizações de contratação de trabalhadores não residentes concedidas”, assim negando-se provimento ao recurso.

Antes de mais, tem-se por útil e oportuno consignar que esta referida Lei n.° 21/2009 – “Lei da contratação de trabalhadores não residentes” – estabelece o regime geral da contratação de trabalhadores não residentes para prestarem trabalho na R.A.E.M., (cfr., art. 1°, n.° 1), que o atrás citado art. 32°, n.° 2, al. 6) pune, a título de “infracção administrativa”, o empregador que “Utilize o trabalhador não residente em local diferente do expressamente autorizado, ainda que se trate de outro estabelecimento pertencente ao mesmo empregador”, estabelecendo, o art. 33°, n.° 1, al. 1) que como sanção acessória de tal infracção pode ser aplicada “Ao empregador, revogação de todas ou parte das autorizações de contratação de trabalhadores não residentes concedidas, acompanhada da privação, pelo período de seis meses a dois anos, do direito de pedir novas autorizações”.

Aqui chegados, esclarecidos os termos em que se proferiu a “decisão administrativa” objecto do anterior recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância e expostas as razões que levaram a se decidir pela sua improcedência, cabe porém dizer que se mostra de subscrever – e adoptar – as considerações pelo Ministério Público tecidas no seu Parecer, que dão clara e adequada resposta – solução – ao presente recurso.

Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.

Pois bem, com recurso aos elementos constantes nas supra referidas decisões, (“administrativa” e “jurisdicional”), sabe-se que à ora recorrente foi “autorizada a contratação de 13 trabalhadores não residentes”, e que, (posteriormente), por despacho de 07.08.2017 do Director da D.S.A.L., foi esta mesma autorização “revogada”.

Sabe-se também que, do assim decidido interpôs a ora recorrente recurso hierárquico, que no âmbito deste, em 30.04.2018, pelo Secretário para a Economia e Finanças foi decidido confirmar tal revogação, e que, com o Acórdão ora recorrido se decidiu manter tal acto administrativo.

E, para além disto, em nossa opinião, (e infelizmente), pouco mais se sabe, (afigurando-se-nos que tal “dificuldade” terá sido igualmente sentida pelo Tribunal de Segunda Instância que, em sede da sua “decisão da matéria de facto” consignou o que já se deixou relatado).

Ora, como cremos ser normal, (ou natural), toda a “decisão”, (opção ou escolha), tem uma “justificação”, (uma causa, ou razão de ser).

Pode até não ser muito “clara”, (perceptível ou nítida), mas, em princípio, (e pelo menos, para a grande maioria das pessoas), existe sempre um “motivo” para uma tomada de posição.

E se assim é em questões do “foro pessoal”, o mesmo sucede – ou melhor, deve suceder – no caso de decisões proferidas em “procedimentos administrativos”, (contenciosos ou não), como as que em causa estão, (e quaisquer outros).

Existem, porém, diferenças.

É que enquanto para as primeiras, (as do “foro pessoal”), a justificação não precisa de ser revelada, (ou exteriorizada), nas segundas, a “motivação da decisão”, para além de constituir “exigência legal”, deve ser “expressa”, (ou explícita, não sendo assim aceitável uma fundamentação meramente implícita), “clara”, (inteligível, congruente, lógica e coerente), e “bastante”, (suficiente, completa), assumindo tal aspecto primordial importância.

Aliás, só assim se compreende o que terá levado a que no Código de Procedimento Administrativo se tenha regulamentado a matéria respeitante ao “acto administrativo” da forma que aí consta nos art°s 110° e seguintes, em especial, sobre a sua “forma” e “menções obrigatórias”, e, com especial relevância para os presentes autos, no que diz respeito ao “dever” e “requisitos da (sua) fundamentação”; (cfr., art. 114° e 115°; podendo-se, sobre esta matéria ver, v.g., Lino Ribeiro e J. Cândido Pinho in, “C.P.A. de Macau, Anotado e Comentado”, pág. 593 e segs.).

Tenha-se se pois presente que no que toca aos “requisitos da fundamentação” se prescreve no art. 115° do C.P.A. que:

“1. A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.
2. Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
3. Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos administrados”.

De facto, e como se nos mostra evidente, da “fundamentação” de uma decisão, (e, mais precisamente, do seu “teor”), depende a sua (boa) “compreensão”.

E desta, a sua concordância ou discordância pelo seu destinatário (e interessados em geral), para a sua consequente aceitação (ou não), e, eventual contestação.

Daí que se apresente igualmente evidente que a ausência de uma adequada – clara e suficiente – fundamentação de uma decisão, impossibilita a sua compreensão, e, (consequentemente), sem se saber ou alcançar o “porque do decidido”, inviável é uma necessária ponderação para efeitos de eventual pedido de reforma ou correcção em sede da sua impugnação; (cfr., v.g., o Ac. de 27.11.2020, Proc. n.° 142/2020).

De nada valeria então a consagração do “princípio do devido processo legal”, (ou “due process of law”, expressão pela primeira vez invocada em 1354; cfr., v.g., Manuel Ferreira Filho in, “Curso de Direito Constitucional”, pág. 212), o mesmo sucedendo com o “princípio da tutela jurisdicional efectiva” estatuído no art. 2° do C.P.A.C..

Isto dito, voltemos à situação dos autos.

Pois bem, a “decisão administrativa” objecto do anterior recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância assentou na “Informação/Parecer” que atrás – em sede de “matéria de facto” – já se deixou (integralmente) transcrita.

Nenhuma questão se mostrando de colocar ao facto de se tratar de uma decisão consistente numa ”declaração de concordância” com tal “expediente”, (até porque legalmente permitida pelo n.° 1 do art. 115° do C.P.A.), o mesmo já não parece poder suceder com este último.

Com efeito, e sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, a dita “Informação/Parecer” – que, recorde-se, constitui a “fundamentação” da decisão administrativa objecto do anterior recurso contencioso – apresenta-se-nos incompatível com o que legalmente se exige.

Para além de ser uma (quase integral) repetição da “decisão (revogatória) da D.S.A.L.” de 07.08.2017, empregam-se nela expressões, no mínimo, “dúbias” – “transferiu dados dos seus trabalhadores”, sem se concretizar quais, (nada se explicitando quanto à sua “natureza”), o mesmo sucedendo com os ditos “trabalhadores”, onde também não se explicita sequer se eram “residentes ou não”.

Por sua vez, importa igualmente notar que completamente omitida foi a “fundamentação de direito”, pois que nenhuma referência é feita à norma (ou normas) que, em concreto, regula(m) a situação para efeitos da decisão proferida, (tanto pela D.S.A.L., no sentido da “revogação da autorização de contratação de trabalhadores não residentes” antes concedida, assim como para a sua confirmação).

E, perante isto, cremos pois que justa e acertada se nos mostra ser a posição pelo Exmo. Representante do Ministério Público assumida no Parecer junto em sede de vista, onde, em nossa opinião, é feita uma adequada identificação e enquadramento jurídico-legal da “questão” e suas implicações.

De facto, e independentemente do demais, não se pode deixar de ter presente que, como se referiu, a “decisão administrativa” não indicou a sua “base legal”, e que, assim sendo, a invocação (oficiosa) dos artigos 32° e 33° da Lei n.° 21/2009 pelo Tribunal de Segunda Instância (para efeitos da sua justificação) não se mostra de subscrever.

Como – bem – se salienta no referido Parecer, (e vale a pena aqui recordar): “O que sucedeu foi que a douta decisão recorrida, ela própria, justificou a legalidade do acto administrativo contenciosamente impugnado nos referidos artigos 32.º, n.º 2, alínea 6) e do artigo 33.º, n.º 1, alínea 1) da Lei 21/2009, como que fundamentando, a posteriori, esse mesmo acto.
Com todo o respeito, pensamos que estava vedado ao douto Tribunal a quo fazê-lo. Nem sequer ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo pois que, neste caso, não havia uma vinculação legal da Administração a revogar o acto ao abrigo da norma do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 21/2009, dado que esta norma, tipicamente, concede discricionariedade, tal como resulta da utilização da palavra «podem». Daí que nos pareça não ser aqui aplicável a jurisprudência desse Tribunal consagrada no acórdão tirado no processo n.º 54/2011 e que a douta decisão recorrida invocou.
Donde, tratando-se de um poder discricionário, era a Administração que estava obrigada a invocar a norma habilitante do respectivo exercício e o facto é que, da fundamentação do acto nada resulta a esse propósito. Cremos, modestamente e com todo o respeito, que não cabia ao tribunal fazê-lo”; (cfr., fls. 121-v).

Assim, impõe-se-nos a procedência do presente recurso.

Na verdade – para além de se apresentar (excessivamente) sintético na sua “decisão de facto”, não se podendo olvidar que, nesta sede, adequado é relatar “factos”, “acontecimentos”, que permitam alcançar o que efectivamente sucedeu e qual a “concreta situação” em questão, sendo de notar que o “teor” de uma decisão nem sempre equivale a tal – o Acórdão ora recorrido não se mostra correcto no que toca à sua “fundamentação de direito”, na medida em que, como que em “substituição” da entidade administrativa que praticou o acto administrativo recorrido no âmbito do exercício de um “poder discricionário”, invoca base jurídica que aquele não invocou, certo sendo que não o podia fazer.

Atente-se pois na expressão “podem” do art. 33°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 21/2009, inquestionável sendo assim que a aí prevista “revogação da autorização de contratação de trabalhadores não residentes” constitui (tão só) uma “medida possível”, a adoptar pela Administração, de acordo com critérios (subjectivos) de oportunidade, conveniência, e de melhor, ou maior, utilidade pública.

Contudo, e independentemente do demais, cabe salientar também que a própria aplicação – pelo Tribunal de Segunda Instância – dos ditos preceitos legais não se mostra acertada.

Dade já, e como já se deixou referido, em nenhum ponto da decisão da matéria de facto elencada como “provada” no Acórdão recorrido se indicou – como “assente” (ou “adquirido”) – que a imputada “conduta” da ora recorrente (na “transferência de dados”) implicou, ou diz respeito, a “trabalhadores não residentes”.

E, desta forma, como cremos que resulta evidente, em causa não está o art. 32°, n.° 2, al. 6) da Lei n.° 21/2009, o que, por sua vez, afasta (totalmente) a aplicação da (eventual) “sanção acessória” da (possível) revogação das anteriores autorizações concedidas.

Por sua vez, adequado também não foi o decidido a respeito do art. 130° do C.P.A..

Com efeito, regulando a “revogabilidade de actos anuláveis” prescreve este normativo que:

“1. Os actos administrativos anuláveis só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida.
2. Se houver prazos diferentes para o recurso contencioso atende-se ao que terminar em último lugar”.

E no caso, e como se vê, (aplicável não sendo o art. 32°, n.° 2, al. 6) da Lei n.° 21/2009), não se vislumbra qual a “invalidade” da antes concedida “autorização de contratação de trabalhadores não residentes” para efeitos da sua (possível) revogação; (cfr., L. Ribeiro e C. Pinho in, ob. cit., pág. 757 e segs.).

Nesta conformidade, (e verificados também não estando os pressupostos para a aplicação do art. 129° do C.P.A. quanto à possibilidade da “revogabilidade de actos válidos”), vista está a solução para o presente recurso, havendo que se revogar o Acórdão recorrido.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido com a consequente anulação do acto administrativo praticado.

Sem tributação.

Registe e notifique.

Macau, aos 18 de Dezembro de 2020


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

Proc. 168/2020 Pág. 26

Proc. 168/2020 Pág. 25