Processo n.º 101/2020 Data do acórdão: 2021-2-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– confissão sem reservas dos factos acusados
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
Tendo a arguida recorrente confessado sem reservas os factos penais por que vinha acusada, não pode ela vir suscitar o vício de erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal a quo no referente à circunstância descrita num desses factos.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 101/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 467 a 481v do Processo Comum Colectivo n.° CR5-18-0342-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida desse processo chamada A ficou condenada, em matéria penal, como autora material, na forma consumada, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência no exercício da condução, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 1, do Código Penal (CP), conjugado com o art.o 93.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de um ano de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de um ano e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, para além de ficar condenada na pena de inibição de condução, prevista no art.o 94.o, alínea 1), da LTR, pelo período de um ano e seis meses.
Inconformada, veio recorrer a arguida para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na motivação apresentada a fls. 494 a 514 dos presentes autos correspondentes, que a decisão penal condenatória recorrida estava a padecer do vício de erro notório na apreciação da prova (por não haver provas, nos autos, a suportar cabalmente a comprovação de que o embate do veículo automóvel então por ela conduzido na parte transeira do veículo automóvel da frente se tenha dado com força de impacto violenta mencionada no facto provado penal n.o 5), e ainda do vício de contradição insanável da fundamentação (concretamente, contradição entre o teor dos factos penais provados n.os 6 e 7 com o teor dos seguintes factos civis não provados: a arguida conduzia o veículo automóvel de matrícula MW-XXXX à velocidade não inferior a 80 km/hora; a distância com que o veículo automóvel de matrícula MK-XXXX MK-XXXX (i.e., veículo conduzido pela demandante civil B foi projectado para a frente foi mais de seis metros; a demandante B, após ocorrido o embate, perdeu de imediato consciência cerca de um minuto) (não se devendo, pois, concluir que o embate do veículo conduzido pela própria recorrente tenha provocado consequências graves)) – e, subsidiariamente falando, também da injustiça relativa na medida da pena (posto que se as lesões sofridas pelos dois lesados demandantes foram em grau diferente, por quê é que os dois crimes em causa foram punidos com uma mesma dose de pena de prisão?) e do excesso na medida da pena, devendo ela passar a ser condenada, à luz do art.o 64.o do CP, em pena de multa por estes dois crimes, em vez da pena de prisão, ou, com pena de prisão especialmente atenuada nos termos dos art.os 66.o e 67.o do CP, ou, fosse como fosse, em penas parcelares de prisão não superiores a dez e a nove meses, e em nova pena única de prisão não superior a onze meses, com suspensão na execução por um período não superior a um ano e seis meses, e com redução também do período da inibição de condução a não mais do que cinco meses de tempo.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 518 a 521v, opinando pela improcedência total do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 536 a 539, pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão recorrido ficou proferido a fls. 467 a 481v dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. De acordo com a acta da audiência de julgamento realizada perante o Tribunal sentenciador recorrido, lavrada a fls. 464 a 466 dos autos, a arguida confessou sem reservas os factos penais por que vinha acusada.
3. O facto descrito sob o n.o 5 na acusação pública deduzida a fls. 76 a 77v foi integralmente dado por provado como facto provado penal n.o 5 descrito na fundamentação fáctica do acórdão recorrido. Nesse facto provado penal n.o 5, descreveu-se que devido à enorme força de impacto do embate dado pelo veículo automóvel conduzido pela arguida na parte traseira do veículo automóvel MN-XXXX, este, por sua vez, embateu na parte traseira do veículo automóvel MK-XXXX (conduzido na altura pela ofendida B).
4. Conforme os factos penais provados n.os 6 e 7, foi estimado que as lesões sofridas pela ofendida B e as sofridas pelo passageiro do veículo por ela conduzido lhes demandassem, respectivamente, três dias e um dia para convalescença.
5. Foram dados inclusivamente por não provados os seguintes factos civis: a arguida conduzia o veículo automóvel de matrícula MW-XXXX à velocidade não inferior a 80 km/hora; a distância com que o veículo automóvel de matrícula MK-XXXX (i.e., veículo conduzido pela demandante B) foi projectado para a frente foi mais de seis metros; a demandante B, após ocorrido o embate, perdeu de imediato consciência cerca de um minuto.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A arguida recorrente começou por imputar à decisão penal condenatória ora recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova.
Contudo, a arguida, tendo confessado sem reservas os factos penais por que vinha acusada (incluindo, pois, o facto penal provado n.o 5), não pôde vir suscitar o vício de erro notório na apreciação da prova na parte referente à circunstância fáctica descrita nesse facto provado 5 no respeitante à enorme força de impacto do embate dado pelo veículo conduzido pela arguida na parte traseira do veículo de frente, o qual, por sua vez, embateu assim na parte traseira do veículo conduzido pela ofendida B.
Por outra banda, não deixou a arguida de levantar a questão de contradição insanável da fundamentação na decisão condenatória penal recorrida. Mas, sem razão, porquanto o facto de não ter sido provado, na causa civil então enxertada aos presentes autos penais, que a arguida tenha conduzido o veículo automóvel de matrícula MW-XXXX à velocidade não inferior a 80 km/hora, que a distância com que o veículo automóvel de matrícula MK-XXXX conduzido pela demandante civil B foi projectado para a frente tenha sido mais de seis metros, e que a demandante B, após ocorrido o embate, tenha perdido de imediato consciência cerca de um minuto, não contradiz com os dias de convalescença então estimados para esta ofendida e para o passageiro do veículo então por ela conduzida. É que uma coisa é “período estimado” de convalescença, e outra coisa, bem distinta, é período concreto de convalescença. Por outro lado, se o veículo MN-XXXX, inicialmente parado na via pública em causa (cfr. o facto penal provado n.o 4), embateu na parte traseira do veículo conduzido pela mesma ofendida por causa da enorme força de impacto do embate dado pelo veículo da arguida, crê-se que qualquer homem médio colocado na situação concreta do acidente de viação dos autos não pode aceitar a conclusão, sustentada pela arguida recorrente, de que as consequências causadas pelo embate dado pelo veículo conduzido pela arguida não são graves (ainda que a condutora B e o passageiro do veículo por ela conduzido não tenha sofrido lesões corporais graves mencionadas em qualquer das quatro alíneas do art.o 138.o do CP, pois caso contrário a recorrente teria que responder penalmente por prática de dois crimes consumados de ofensa grave à integridade física por negligência no exercício da condução), por aí se vê que é infundado o vício de contradição insanável da fundamentação apontado pela recorrente.
E agora da questão da opção da pena: é inviável a opção pela pena de multa, já que há que aplicar a pena de prisão ao caso, por serem elevadas as exigências da prevenção geral do tipo delitual penal em causa (cfr. o critério material vertido no art.o 64.o do CP para efeitos de decisão sobre qual a espécie da pena a aplicar).
Quanto à pretendida atenuação especial da pena: ainda que a recorrente tenha confessado sem reservas os factos penais acusados, e sem antecedentes criminais em Macau, não se pode atenuar especialmente a pena dos dois crimes cometidos por ela, por razões ligadas também às prementes necessidades da prevenção geral do tipo legal delitual penal em causa, cometido no exercício da condução, necessidades essas que reclamam a aplicação da pena concreta dentro da moldura penal ordinária respectiva (cfr. o critério material consagrado no art.o 66.o, n.o 1, do CP, para efeitos de decisão sobre a atenuação especial, ou não, da pena).
No tangente à medida concreta da pena de cada um dos dois crimes em causa:
Por efeito do art.o 93.o, n.o 1, da LTR, o limite mínimo da pena de prisão aplicável é de nove meses (cfr. também os art.os 41.o, n.o 1, e 142.o, n.o 1, do CP), e o seu limite máximo é de dois anos.
Assim sendo, vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal recorrido em primeira instância, aos padrões da medida concreta da pena vertidos nos art.os 64.o e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, a pena de um ano de prisão aplicada ao crime cometido pela arguida contra o ofendido passageiro do veículo conduzido pela ofendida B já não é nada de excessiva, mas a pena de um ano de prisão aí aplicada ao crime contra a ofendida B já é algo benévola, visto que as lesões sofridas por ela foram mais graves do que as do seu passageiro. Entretanto, tratando-se de recurso interposto pela arguida, não é de agravar a pena de prisão já achada no acórdão recorrido para este crime contra a ofendida condutora B. E no concernente à pena úníca de prisão fixada pelo Tribunal recorrido em um ano e quatro meses de prisão, não se mostrando injustiça notória na gradução dessa pena única (dentro das “premissas” de um ano de prisão parcelar mais um ano de prisão parcelar como elementos para operação do cúmulo jurídico nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP), não é de mexer nesse julgado, e o mesmo se pode dizer em relação ao período da suspensão da execução dessa pena única.
Por fim, atentas as circunstâncias fácticas apuradas no caso dos autos, apresenta-se justo e adequado o período de um ano e seis meses de inibição de condução como tal fixado no acórdão recorrido.
Improcede, pois, in totum, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso penal da arguida.
Custas do recurso pela recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão à ofendida B.
Macau, 10 de Fevereiro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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