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Processo nº 967/2020
(Autos de Recurso Cível e Laboral)

Data do Acórdão: 25 de Fevereiro de 2021

ASSUNTO:
- Consignação de rendimentos
- Aplicabilidade dos nºs 2 e 3 do artº 692º do C.Civ.
- Expurgação de hipoteca
- Cancelamento de registo

SUMÁRIO:
- O disposto nos nºs 2 e 3 do artº 692º são aplicáveis à consignação de rendimentos por força do disposto no artº 661º, ambos do C.Civ.;
- Tendo sido instaurada acção especial de expurgação de hipoteca na qual se decidiu pela extinção da dívida garantida pela hipoteca e consignação de rendimentos sobre a fracção autónoma que veio a resultar da constituição do prédio em propriedade horizontal, essa decisão é título bastante para o cancelamento do registo daquelas – hipoteca e consignação de rendimentos – sobre a fracção autónoma em causa.



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Rui Pereira Ribeiro


















Processo nº 967/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 25 de Fevereiro de 2021
Recorrente: A
Recorrido: Conservador do Registo Predial
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

A, com os demais sinais dos autos,
veio interpor recurso judicial do despacho do
Conservador do Registo Predial,
que recusou o registo do cancelamento parcial da consignação de rendimentos inscrita sob o nº 32858F, incidente sobre as fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito sob o nº XXX.
Proferida sentença julgando o recurso improcedente, vem o Recorrente interpor recurso da mesma para este tribunal, apresentando as seguintes conclusões:
a) O Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o recurso judicial argumentando que no caso concreto a Recorrente não apresentou título suficiente para registar o cancelamento parcial de consignação de rendimentos que onera as fracções autónomas “G16” e “F17”.
b) A primeira questão a indagar no pedido de cancelamento de um registo é se ocorreu a extinção de um direito, ónus ou encargo e, só depois, de que modo a mesma se demonstra “titulada”.
c) No despacho de recusa do pedido de cancelamento da consignação de rendimentos o Exmo. Senhor Conservador reconhece que a certidão judicial apresentada para o efeito pela Recorrente, conjuntamente com o requerimento, comprova a extinção parcial da dívida garantida, mas defende que, por força do princípio da indivisibilidade, este facto não determina a extinção parcial da consignação de rendimentos.
d) Já da sentença recorrida decorre que o Tribunal a quo acolheu o argumento da Recorrente no sentido de que a excepção ao princípio da indivisibilidade também se aplica à consignação de rendimentos, por remissão feita no art.º 661.º do Código Civil.
e) Simultaneamente na sentença em crise vem defendido que a consignação de rendimentos só se extingue pelo pagamento integral da dívida e não pelo pagamento parcial.
f) Trata-se de uma contradição evidente entre dois dos fundamentos da decisão: de uma banda entende-se que o art.º 692.º, números 2 e 3, é aplicável à consignação de rendimentos, de outra defende-se que a consignação de rendimentos só se extingue pelo pagamento integral da dívida e não pelo pagamento parcial da mesma.
g) O Tribunal a quo fez aqui uma errada interpretação e aplicação da lei (art.ºs 674.º e 692.º, n.ºs 2 e 3, do CC), pois não é admissível que o legislador tenha previsto a possibilidade da divisibilidade da consignação de rendimentos sobre o prédio em tantas consignações de rendimentos quantas as fracções autónomas em que o prédio se venha a dividir, para daí se extrair que a garantia só se extinguiria pelo pagamento integral da dívida em causa.
h) Esta errada interpretação e aplicação da lei configura um notório erro de julgamento.
i) Mas na sentença recorrida o Tribunal a quo comete outro erro de julgamento ao interpretar o disposto na parte final do art.º 692.º, n.º 2, do CC, no sentido de que a divisão da hipoteca incidente sobre o prédio em tantas hipotecas quantas as fracções autónomas em que o prédio se venha a dividir aplica-se para os estritos efeitos da alínea a) do art.º 716.º, pelo que para a expurgação da consignação de rendimentos será necessário obter uma decisão que o declare.
j) O legislador não previu que a extinção da consignação de rendimentos tivesse dependente de uma nova acção de expurgo, na qual o adquirente dos bens onerados tivesse de pagar novamente ao credor o valor que já havia pago para o expurgo da hipoteca.
k) A interpretação feita na sentença recorrida só é admissível nos casos em a única garantia incidente sobre os bens adquiridos seja a consignação de rendimentos, caso em que o adquirente dos bens não pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas deverá “expurgar” a consignação de rendimentos mediante o pagamento do valor proporcional correspondente às suas fracções autónomas e, desta forma, extinguir a obrigação.
l) No caso concreto o Tribunal a quo desconsidera que a obrigação garantida pela hipoteca e pela consignação de rendimentos era precisamente a mesma, pelo que tendo sido feito o pagamento ao credor em sede de acção para expurgação de hipoteca, qualquer acção subsequente para “expurgar” a consignação de rendimentos que visava garantir uma obrigação extinta é absurda e, em todo o caso, contrária à letra da lei.
m) No caso concreto o ora Recorrente também não requereu a redução da hipoteca por via do expurgo, mas sim o cancelamento parcial da hipoteca sobre as fracções autónomas de que é proprietário, com fundamento no pagamento da dívida garantida proporcional a essas fracções nos termos do art.º 716.º, alínea a), do Código Civil.
n) Na redução da hipoteca há uma só hipoteca, que passa a ter uma abrangência menor em razão de uma das eventualidades expressamente previstas no n.º 2 do art.º 715.º do Código Civil.
o) In casu ocorreu uma divisão da hipoteca (inicialmente constituída) em tantas hipotecas quantas as fracções autónomas que passaram a existir após a constituição do imóvel em regime de propriedade horizontal.
p) Por força da remissão do art.º 661.º do Código Civil, após a constituição do prédio em regime de propriedade horizontal, a consignação de rendimentos (inicialmente constituída) dividiu-se em tantas consignações de rendimentos quantas as fracções autónomas que passaram a existir após a constituição do imóvel em regime de propriedade horizontal.
q) O distrate é apenas uma das formas de extinção do contrato.
r) Sucede que a Consignação de Rendimentos não é um contrato, mas uma garantia geral das obrigações.
s) Da conjugação do disposto no art.º 660.º e do art.º 725.º, alínea a), do Código Civil resulta que a extinção da obrigação a que se serve de garantia é uma causa de extinção da consignação de rendimentos.
t) Decorre do art.º 752.º, n.º 1, do Código Civil, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado. Isto é, o cumprimento da obrigação é uma causa de extinção da obrigação.
u) No caso concreto a extinção da obrigação que era garantida pela consignação de rendimentos resultou, precisamente, do cumprimento da obrigação por via do pagamento da dívida garantida pela hipoteca, como resulta claro da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base de Macau nos autos CV3-19-0050-CPE.
v) A (garantia) consignação de rendimentos extinguiu-se pela mesma causa por que cessou o direito de hipoteca, ou seja, pela extinção da obrigação garantida, a qual se extinguiu pelo cumprimento (pagamento), como decidido pelo Tribunal.
w) Na sentença recorrida fez-se uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 661.º, 692.º, n.º 2 e 3, 716.º, alínea a), 660.º, 725.º, alínea a) e 752.º, n.º 1, todos do Código Civil, bem como do disposto no art.º 14.º, do Código do Registo Predial.
x) Acresce que da solução defendida na sentença ora recorrida resulta também a desconformidade entre a situação registral e a situação substantiva, o que derrota a finalidade do registo predial que é essencialmente a de dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio imobiliário (art.º 1.º do CRP).
y) Revogada a sentença recorrida deve esta ser substituída por outra que revogue o despacho de recusa do Exmo. Senhor Conservador do Registo Predial de Macau, com o n.º de ordem 7633 e ordene que seja lavrado o acto de cancelamento parcial da inscrição 32858F (consignação de rendimentos), quanto às fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do Registo predial sob o n.º XXX, requerido pela ora Recorrente através da apresentação n.º 105 de 14/01/2020.
z) A manter-se a decisão recorrida estar-se-ia a colocar em causa a autoridade de caso julgado (efeito positivo do caso julgado).
aa) No Processo n.º CV2-20-0019-CRJ foi proferida sentença julgando procedente um recurso contencioso interposto de um despacho do Exmo. Senhor Conservador do Registo Predial que recusou o cancelamento parcial da inscrição 32858F quanto às fracções autónomas “E17”, “E19” e “F19”, do prédio n.º XXX, a qual transitou em julgado em 18/05/2020.
bb) No Processo n.º CV2-20-0019-CRJ não foi interposto recurso da sentença, tendo a RAEM optado por se conformar com uma decisão absolutamente contrária à que proferida nos presentes autos e a Conservatória do Registo Predial dado cumprimento ao julgado nos termos do disposto no artigo 149.º, n.º 3, do Código do Registo Predial.
cc) A autoridade de caso julgado visa, não só o prestígio dos tribunais, mas fundamentalmente uma razão de certeza ou segurança jurídica, obstando a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença.
dd) Na “autoridade de caso julgado” não se exige a tríplice identidade (quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir) prevista no art.º 417.º do CPC para a “excepção de caso julgado”, podendo por isso ocorrer fora do processo em que se formou.
ee) No caso concreto, apesar das partes que interpuseram os recursos contenciosos não serem as mesmas em ambos os processos, a recorrida é a mesma, i.e., a Conservatória do Registo Predial, e os factos que serviram de base aos pedidos de cancelamento da consignação de rendimentos são idênticos.
ff) Não é, pois, admissível que a solução jurídica encontrada para a relação ora controvertida seja oposta à outra já encontrada na sentença transitada em julgado nos autos CV2-20-0019-CRJ por tal violar a “autoridade de caso julgado” (efeito positivo do caso julgado) e, por conseguinte, o disposto no artigo 576.º, n.º 1, do CPC.

Pelo Recorrido não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos:

Da sentença sob recurso consta a seguinte factualidade:
1. Em 14/01/2020, a Recorrente, por meio das apresentações n.º104 e 105, requereu o cancelamento parcial das inscrições nºs 116667C (hipoteca voluntária) e 32858F (consignação de rendimentos), quanto às fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do Registo predial sob o nºXXX, nos seguintes termos:
“Sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nºXXX foi inscrita hipoteca voluntária sob o nº116667C, para garantia de todos e quaisquer débitos, responsabilidades ou obrigações resultantes do contrato de “CONCESSÃO DE CRÉDITOS COM HIPOTECA E CONSIGNAÇÃO DE RENDIMENTOS” lavrado por escritura pública de 30/12/2010, a fls. 53 do Livro de Notas para escrituras diversas nº.129 da Notaria Privada Célia Rute da silva Pereira, até ao limite em capital de HKD$250.000.000,00.
 Para garantia das mesmas responsabilidades e dívidas resultantes do mesmo contrato de “CONCESSÃO DE CRÉDITOS COM HIPOTECA E CONSIGNAÇAO DE RENDIMENTOS” foi inscrita consignação de rendimentos sob o nº32858F sobre o mesmo prédio.
Por decisão de Tribunal Judicial de Base de Macau transitada em julgado em 17/12/2019 nos autos CV3-19-0050-CPE foi expurgada a hipoteca n.º 116667C na parte em que onerava as fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito sob o n.º XXX por o valor a elas proporcional da dívida hipotecária a que se refere o artigo 692.º, n.º3, do Código Civil já ter sido pago (ver certidão judicial do termo de pagamento e da decisão do expurgo ora em anexo).
O pagamento da dívida resultante do contrato de “CONCESSÃO DE CRÉDITOS COM HIPOTECA E CONSIGNAÇÃO DE RENDIMENTOS” ao BANCO B (MACAU), S.A., na parte relativa às fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito sob nºXXX extinguiu assim a hipoteca e a consignação de rendimentos que a garantiam.
Requer-se pois, ao abrigo do disposto nos artigos 14.º e 96.º, alínea t), do CRP, se proceda ao averbamento à inscrição n.º 116667 do cancelamento parcial da hipoteca voluntária quanto à fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito sob n.º XXX, bem como ao averbamento à inscrição nº.32858F do cancelamento parcial da consignação de rendimentos quanto às mesmas fracções, uma vez que à extinção da consignação de rendimentos se aplicam também as mesmas regras da extinção da hipoteca prevista no artigo 692.º, n.º 3 (ex vi do art.º661.º) e da alínea a) do art.º725.° (ex vi do art.º660.º), todos do Código Civil.”.
2. O pedido de Recorrente é instruído com a certidão judicial referente aos autos de expurgação de hipoteca n.ºCV3-19-0050-CPE, que correu os seus termos no 3.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base.
3. Na sequência do pedido formulado pela Recorrente, o Conservador do Registo Predial de Macau averbou à inscrição n.º116667 o cancelamento parcial da hipoteca voluntária quanto às fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito sob n.ºXXX.
4. Em 23/01/2020, através do Despacho n.º 7633, o Conservador do Registo Predial de Macau recusou o registo de cancelamento parcial da inscrição 32858F, quanto às fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº.XXX, requerido através da apresentação n.º105 de 14/01/2020, com os fundamentos que alinhou da seguinte forma:
“Embora a certidão judicial apresentada conjuntamente com o requerimento comprove a extinção parcial da dívida garantida, este facto não determina a extinção parcial da consignação de rendimentos relativamente ao seu objecto, porque o princípio da indivisibilidade se aplica à consignação de rendimentos, segundo o n.º1 do art.692.º do Código Civil (CC), ex vi do art.661.° do CC, e a consignação de rendimentos subsiste por inteiro sobre os imóveis onerados até à extinção total da dívida por ela garantida (al. a) do art.725.º do CC, ex vi do art.660.º do CC), No caso concreto, não foi entregue nenhum documento comprovativo da extinção total da dívida garantida.
A excepção à indivisibilidade só em lugar para efeitos da expurgação da hipoteca. Todavia, a lei só prevê a expurgação da hipoteca (n.ºs 2 e 3 do art.692.º, bem com o art.716º, ambos do CC), e não a da consignação de rendimentos. Mesmo que se admitisse a expurgação da consignação de rendimentos, a mesma seria declarada por via judicial. Ora, a certidão judicial acima referida diz respeito apenas à expurgação da hipoteca, e não da consignação de rendimentos.
O regime da redução da hipoteca não é aplicável à consignação de rendimentos (art.661.º do CC). Mesmo que fosse aplicável, a redução só poderia resultar do consentimento do credor prestado em documento autenticado (art.714.º do CC), ou da decisão judicial (n.º2 do art.715.º do CC), documentos que não foram apresentados no caso em apreço.
O distrate, total ou parcial, de consignação de rendimentos, quando onerarem bens imóveis, é titulado por escritura pública nos termos da al. q) do n.º2 do art.94.º do Código do Notariado.”.
5. O despacho de Recusa, de 23 de Janeiro de 2020, com o número de ordem 7633, foi notificado à Requerente no dia 1 de Fevereiro de 2020.
6. Apresentado Recurso Judicial pela Recorrente, sem Reclamação ou Recurso Administrativo prévio, foi proferido Despacho de Sustentação, em 9 de Março de 2020, nos termos do n.º2 do artigo 145.º do CRP, tendo o Conservador do Registo Predial mantido a decisão recorrida.
7. Pela escritura pública de concessão de créditos com hipoteca e consignação de rendimentos outorgada pelo BANCO B (MACAU) S.A. e SOCIEDADE DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO C. S.A.R.L., para assegurar as responsabilidades e dívidas da SOCIEDADE DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO C. S.A.R.L. nos termos descritos nessa escritura pública e ao abrigo do Contrato de Concessão de Crédito mencionado nessa escritura pública, nomeadamente para o pagamento do crédito no valor de HK$250.000.000,00, equivalentes, para efeitos fiscais, a MOP$257.250.000,00, seus juros e demais despesas, a SOCIEDADE DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO C. S.A.R.L. consignou, nos termos do artigo 652.º do CC, a favor do BANCO B (MACAU) S.A., as rendas e quaisquer outros rendimentos que aufere ou venha a auferir por conta do objecto onerado (os direitos resultantes da concessão por arrendamento do prédio rústico denominado FECHO BPG- Zona A- Lote 6, descrito sob o n.º XXX, a fls. 81, do Livro B8K), incluindo as fracções autónomas e os parques de estacionamentos, em especial, as unidades denominados como “Repayment Units” e “Free-payment Units”, todos integrados no prédio mencionado (fls. 20 a 26).
8. A consignação de rendimentos constituída a favor BANCO B (MACAU) S.A. está registada ao seu favor sob n.º 32858F (fls. 97 a 98).
9. Sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nºXXX foi inscrita hipoteca voluntária sob o nº116667C, para garantia de todos e quaisquer débitos, responsabilidades ou obrigações resultantes do contrato de “CONCESSÃO DE CRÉDITOS COM HIPOTECA E CONSIGNAÇÃO DE RENDIMENTOS” lavrado por escritura pública de 30/12/2010, a fls. 53 do Livro de Notas para escrituras diversas nº.129 da Notaria Privada Célia Rute da silva Pereira, até ao limite em capital de HKD$250.000.000,00.
10. Em 27 de Janeiro de 2014, o prédio descrito na Conservatória do Registo predial sob o nºXXX foi constituída em regime propriedade horizontal (fls. 100 a 102).
11. Pela sentença proferida no processo no CV1-14-0091-CAO, a recorrente, adquiriu o direito de propriedade das fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do Registo predial sob o nºXXX (fls. 105 e 106).
12. Por decisão de Tribunal Judicial de Base de Macau transitada em julgado em 17/12/2019 nos autos CV3-19-0050-CPE foi expurgada a hipoteca n.º 116667C na parte em que onerava as fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito sob o nº XXX por o valor a elas proporcional da dívida hipotecária a que se refere o artigo 692.º, n.º3, do Código Civil já ter sido pago.

b) Do Direito

Os fundamentos constantes do Despacho do Sr. Conservador do registo Predial para a recusa do registo do cancelamento da consignação de rendimentos assentam na indivisibilidade da consignação de rendimentos e a não aplicação a esta garantia especial da norma contida nos nºs 2 e 3 do artº 692º do CPC, ou se o fosse, da necessidade de decisão judicial a expurgar a consignação de rendimentos.
Já muito se desenvolveu, e bem, na decisão recorrida sob a indivisibilidade da hipoteca e da consignação de rendimentos, nada mais havendo nesta sede a acrescentar.
A questão que importa decidir consiste em saber se o nºs 2 e 3 do artº 692º do C.Civ. se aplicam ou não à consignação de rendimentos.
A redacção do artº 661º do C.Civ. é clara quanto à aplicação à consignação de rendimentos dos artºs 688º, 690º a 692º, 697º e 698º todos do mesmo diploma legal.
Dispõe o artº 692º do C.Civ. o seguinte:
«1. Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.
2. Porém, a hipoteca sobre imóvel, que venha a ficar sujeito ao regime da propriedade horizontal, é susceptível de ser dividida em tantas hipotecas quantas as fracções autónomas em que o prédio se venha a dividir, para os estritos efeitos da alínea a) do artigo 716.º
3. Cada uma das hipotecas referidas no número anterior garantirá um valor proporcional àquele que, nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal, a fracção autónoma represente no valor global do prédio.».
A alínea a) do artº 716º do C.Civ. consagra o direito daquele que adquiriu o bem hipotecado – neste caso uma das fracções do bem hipotecado que foi posteriormente constituído em propriedade horizontal – a expurgar a hipoteca pagando o valor indicado no nº 3 do artº 692º citado.
A norma dos nºs 2 e 3 do artº 692º do C.Civ. em termos de direito comparado não têm paralelo no direito português – cf. artº 696º do C.Civ. Português -.
A “ratio” dos nºs 2 e 3 do artº 692º do C.Civ. é permitir no caso do prédio hipotecado vir a ser constituído em propriedade horizontal e alguma das fracções ser vendida a terceiro, que este – o terceiro relativamente ao crédito garantido pela hipoteca e adquirente do bem – possa, independentemente da vontade do credor hipotecário, expurgar o bem da garantia especial pagando o valor do credito que proporcionalmente é garantido pela fracção autónoma que comprou.
No regime português nada obsta ao cancelamento da hipoteca sobre a fracção autónoma, mas ali depende do consentimento do credor hipotecário – veja-se Acórdão do STJ Português de 12.02.2004 Procº 03B2831 -.
Consagra o Código Civil de Macau um regime excepcional para a expurgação da hipoteca nos casos referidos.
Tal como a hipoteca também a consignação de rendimentos é uma garantia especial das obrigações e também ela uma garantia real1.
Tal como já se referiu entendeu o legislador aplicar à consignação de rendimentos as regras da hipoteca relativamente a indemnizações devidas (artº 688º), pacto comissório (artº 691º), cláusula da inalienabilidade dos bens hipotecados (artº 691º), indivisibilidade (artº692º), substituição ou reforço da hipoteca (artº 697º) e seguro (artº 698º).
Como se vê do elenco do artº 661º do C.Civ. o legislador foi criterioso escolhendo de entre os preceitos da hipoteca quais aqueles que se aplicavam à consignação de rendimentos, ressalvando apenas quanto a estes que haveria de se proceder “às necessárias adaptações”, mas não excluindo nada do regime consagrado naqueles preceitos.
Assim sendo, bem se andou na decisão sob recurso assim como na decisão proferida no processo que correu termos no TJB sob o processo nº CV2-20-0019-CRJ ao se entender que o regime consagrado no artº 692º do C.Civ. se aplica integralmente à consignação de rendimentos, nada mais havendo a acrescentar quanto ao que ali se diz a este respeito.
Porém, já não se acompanha a decisão recorrida quando conclui que havia de ter sido também pedida a expurgação judicial da consignação de rendimentos para se registar o cancelamento da mesma.
Conforme resulta da factualidade apurada há uma só obrigação para cujo cumprimento foram constituídas duas garantias: a hipoteca e a consignação de rendimentos.
Aplicando-se os nºs 2 e 3 do artº 692º do C.Civ. à consignação de rendimentos, o valor garantido por esta garantia e pela hipoteca é o mesmo e único.
Logo, sendo pago o valor garantido pelas fracções autónomas em causa para expurgação da hipoteca mostra-se liquidado o montante pelo qual estas respondiam. Isto é, a obrigação garantida por estas fracções fosse através da hipoteca, fosse através da consignação de rendimentos está cumprida, o mesmo é dizer, extinguiu-se.
Realizada a prestação está cumprida a obrigação – artº 752º do C.Civ. -, extinguindo-se a obrigação.
De acordo com o disposto no artº 660º do C.Civ. a consignação de rendimentos «extingue-se pelo decurso do prazo estipulado, e ainda pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca, com excepção da indicada na alínea b) do artigo 725», sendo que, nos termos da al. a) do artº 725º do C.Civ. a hipoteca – e também a consignação de rendimentos por força da remissão - se extingue pela extinção da obrigação a que serve de garantia.
Destarte, ao ter sido pago o valor garantido pelas fracções em sede de hipoteca e consignação de rendimentos extinguiu-se a obrigação garantida por estas.
Entende a decisão recorrida e o Sr. Conservador que apesar da decisão de expurgação de hipoteca não há título para se concluir pela extinção da obrigação.
Neste vector não acompanhamos a decisão recorrida.
É certo que a decisão proferida nos autos CV3-19-0050-CPE apenas decide pela expurgação da hipoteca, porém, faz parte dos pressupostos e fundamentos da decisão ter sido paga ou depositada a quantia do crédito garantida pela hipoteca e que nos termos do contrato de concessão de créditos é a mesma que é garantida pela consignação de rendimentos.
Tal como se sustenta na decisão proferida no processo que correu termos sob o nº CV2-20-0019-CRJ, cuja certidão foi junta aos autos, tem vindo a Doutrina e Jurisprudência recentes a reconhecer a autoridade de caso julgado não só à decisão “stricto sensu” mas também às questões que houve que resolver e fundamentos que constituem a premissa da conclusão e decisão a que se chegou.
Esta questão prende-se com a eficácia do caso julgado naquilo que a Doutrina tem vindo a qualificar como a função negativa do caso julgado.
A propósito veja-se na Jurisprudência Portuguesa, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 3435/16.3T8VIS-A.C1, datado de 12.12.2017:
«A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.
Figura essa que, como se sabe, constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. artºs. 577º, nº. 1 al. i), 576º, nºs. 1 e 2, e 578º do CPC, diploma o qual nos referiremos sempre que doravante mencionemos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).
Exceção essa que pressupõe, nos termos do artº. 580º, nºs. 1 e 2, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua o prof. Anselmo de Castro, (in “Processo Civil Declaratório, Vol. II, pág. 242”), ao escrever “tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias”.
O caso julgado, como refere o prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 307”), consiste, assim, “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”, ou então, como ensina o prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil, 1993, págs. 305 e 306”), o caso julgado consiste em “a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social”.
O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal (vide, por todos, o prof. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado, vol. III, pág. 93”, Ac, STJ de 16/09/2015, proc. 1918/11, in “Sumários, 2015, pag. 485”, e Ac. da RP de 24/11/2015, proc. 346/14.0T8PVZ.PT, disponível em www.dgsi.pt).
Compreende-se, desse modo, a razão de tal autoridade do caso julgado pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.
Tanto mais que a decisão transitada pode até ter apreciado mal os factos e interpretado e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça (cfr., a propósito, o prof. Alberto dos Reis, in “Ob. cit., pág. 94”).
Perante tais efeitos do caso julgado torna-se imperioso estabelecer, com nitidez, o conceito de repetição de uma causa.
Tal resposta é-nos dada pelo artº. 581º, nº. 1, ao estatuir que a causa se repete “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
Por seu lado, os nºs. 2, 3 e 4 desse mesmo preceito, concretizando melhor, dispõem que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”. Acrescentando-se, no último normativo, e para o caso que aqui nos importa, que “nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real”.
Num esforço de ainda maior concretização daquele tríade de conceitos (e sem a existência cumulativa dos quais não se pode falar de exceção de caso julgado) podemos dizer, tal como se escreveu, entre outros, nos Acordãos do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Coimbra, respectivamente, de 6/1/94 e 9/12/81, (in, respetivamente, “CJ, ano IX, T1 - 198 e CJ, ano X, T5 - 79”), que “as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial”. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as partes assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra (cfr., por todos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 319”).
Por sua vez, e tal como se escreveu também no 1º. daqueles arestos, haverá identidade de pedidos “se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter” e que a identidade da causa de pedir “pressupõe que o acto ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico”.
Há identidade de pedidos quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico, ou seja, terá de ser o mesmo direito subjetivo cujo reconhecimento se pretende, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, o que significa não ser exigível uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.
Como escreve Mariana Gouveia (in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, págs. 493 e 509”), a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, mas segundo o critério misto não pode deixar de prescindir de uma perspetiva material dos limites das normas e dos seus nexos, por referência ao direito substantivo, nem dos limites dos factos, tal como são apresentados na sentença, sendo este critério o que melhor responde aos problemas de concurso aparente de normas.
A identidade da causa de pedir há, assim, que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações (cfr., por todos, Ac. do STJ de 26/10/89, in “BMJ nº 390 - 379”).
Assim, em resumo e noutra linguagem, podemos dizer que a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito (facto jurídico de que procede a pretensão deduzida) - em consonância, assim, com o principio da substanciação consagrado pelo nosso ordenamento jurídico -, enquanto que o pedido se reconduz ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal - trata-se de um elemento fundamental, considerando as imposições do princípio do dispositivo: são os interessados que acionam os mecanismos jurisdicionais como ainda quem realiza a escolha das providências que os direitos subjetivos invocados garantem -, e, por fim, que o conceito de sujeito a atender para o efeito coincide com a noção (adjetiva) de parte.
A exceção de caso julgado consiste, assim, e para concluir, na constatação de que a mesma questão já foi deduzida num outro processo e nele apreciada e julgada por decisão que não admite reclamação ou recurso ordinário (cfr. artº. 628º).
Porém, e tal como já resulta do que supra deixámos expresso, importa dizer que a exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado. Ambos são efeitos diversos da mesma realidade jurídica, havendo mesmo quem, a esse propósito, defenda (naquilo que hoje começa a constituir-se em entendimento dominante) que para que autoridade do caso julgado atue não se exige sequer a coexistência das três identidades referidas no artº. 581º (cfr., quanto a este último entendimento, Ac. da RP de 24/11/2015, proc. 346/14.0T8PVZ.PT, disponível em www.dgsi.pt., Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24” e sentença da 1ª instância publicada in “CJ, Ano IV, pág. 1654”). No desenvolvimento daquela afirmação, escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 325”), que “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão” (...). “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
No mesmo sentido vai o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, págs. 49 e ss.”) quando escreve: “a excepção de caso julgado visa evitar que o orgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente”. (Vidé ainda, a propósito, Ac. do STJ de 26/1/1994, in “BMJ 433 – 515” e “Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24”).
E tal questão (da autoridade do caso julgado) conduz-nos à polémica e muito discutida questão da extensão ou alcance do caso julgado.
Nos termos do disposto no artº. 619º, nº. 1, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581º. …” (sublinhado nosso).
Por sua vez, sobre a epígrafe de “alcance do caso julgado” preceitua o artº. 621º que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”.
Resulta do exposto, que os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objeto e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender-se aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - valendo como lei – para qualquer processo futuro, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo. Daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu (cfr., a propósito, e para maior desenvolvimento, os profs. Manuel de Andrade, in “Ob. cit., pág. 285”; Castro Mendes, in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo em Processo Civil, 1968” e Miguel Teixeira de Sousa, in “Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, págs. 309  a 316”).
Na referida vexata quaestio vem hoje ganhando predominância a corrente que perfilha o entendimento mitigado no sentido de que muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não devendo, como princípio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se, apenas, à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final, mas sendo, todavia, já de estender-se também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado (cfr., entre muitos, e para maior desenvolvimento, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – págs. 55 e 56”, e a abundante doutrina aí citada; Ac. do STJ de 28/5/ 2002, in “Agravo nº 1043/02, 6ª sec., Sumários, 5/2002”; Ac. do STJ de 26/9002, in “Agravo nº 213/02, 2ª sec., Sumários 9/2002” e Ac. da RC de 18/10/94, in “BMJ 440 – 545”).
Daí que, e como se escreveu no Ac. do STJ de 3/4/1991 (in “AJ, 18º - 9”), no nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só possa ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga, tal como estipula o citado artº. 673º (atual artº. 621º do CPC).
Porém, muitas vezes, e como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 683”), “a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº. 621º. Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”.
Daí que igualmente vem sendo defendido que não seja de excluir recorrer à parte motivatória da sentença (ou seja, aos seus fundamentos) sempre que tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa (vidé, a propósito, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55”; Ac. da RP de 28/1/82, in “CJ, Ano VII, T1 – 266” e os profs. Manuel de Andrade e A. Varela, in “Ob. cits., respectivamente, págs. 318 e 696/697”).».
Ora, faz parte das permissas da decisão de expurgação da hipoteca que a obrigação esteja cumprida, sendo certo que, nos termos dos artºs 911º e 913º do CPC este – o cumprimento da obrigação - é mesmo o único fundamento para a expurgação da hipoteca.
Destarte, a decisão da expurgação de hipoteca documenta que a obrigação garantida por estas garantias especiais está cumprida e extinta.
Segundo o disposto no artº 14º do Código do Registo Predial os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos ou em execução de decisão judicial transitada em julgado.
Exigindo o artº 37º do Código do Registo Predial que os factos sujeitos a registo estejam documentados, e resultando da decisão de expurgação da hipoteca que a obrigação se extinguiu, entendemos que havia documento suficiente para o cancelamento do registo da consignação de rendimentos sem necessidade de instaurar outra acção para o efeito.
Até porque, contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida qualquer outra acção que se instaurasse para expurgação da consignação de rendimentos tem objecto impossível uma vez que estando cumprida a obrigação já não se pode proceder de acordo com o disposto no artº 911º e seguintes do CPC pois nada mais há a pagar ou a depositar e por outro lado face ao efeito positivo do caso julgado nunca poderia o tribunal ser colocado na situação de se voltar a pronunciar sobre a mesma questão relativamente à mesma relação material controvertida.
Termos em que, se impõe revogar a decisão recorrida e concedendo provimento ao recurso judicial decidir no sentido de ser feito o registo recusado.

III. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso judicial, revoga-se a decisão recorrida, e em substituição ordena-se que se proceda ao registo do cancelamento da consignação de rendimentos a que se reporta a inscrição nº 32858F relativamente às fracções “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº XXX.

Sem custas por delas estar isenta a entidade Recorrida.

Registe, Notifique e cumpra o disposto no artº 149º nº 1 do CRP.

RAEM, 25 de Fevereiro de 2021

Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong


1 Luis Manuel Teles de Mezes Leitão em Garantia das Obrigações, 2ª Ed., pág. 188.

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967/2020 CÍVEL 25