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Processo nº 191/2020 Data: 03.02.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : “Troca de direitos sobre terrenos”.
Lei de Terras.
Declaração de extinção do procedimento.
Interesse público.



SUMÁRIO

1. O art. 86° da “Lei de Terras” consagra o “princípio da proporção” (e da “razoabilidade”) para a troca de direitos sobre terrenos entre a Administração e entidades particulares.

2. Verificando-se que uma projectada troca de terrenos não se mostra em conformidade com tal “princípio da proporção” (e da “razoabilidade”) em virtude da “dimensão” e “valor” dos terrenos em questão, nenhuma censura merece a decisão administrativa que, no exercício de um poder vinculado e na defesa do interesse público, declara extinto o procedimento administrativo que tinha como objectivo a concretização da dita troca de terrenos.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 191/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “DESENVOLVIMENTO PREDIAL BAÍA DA NOSSA SENHORA DA ESPERANÇA, S.A.”, (“聖母灣發展股份有限公司”), sociedade com sede em Macau, interpôs, no Tribunal de Segunda Instância, recurso contencioso do despacho do CHEFE DO EXECUTIVO de 25.07.2017 que declarou a extinção do procedimento de troca do terreno da “Fábrica de Panchões Iec Long”, situada na Ilha da Taipa, na Rua Direita de Carlos Eugénio n°s 38-64 e junto à Rua Fernão Mendes Pinto; (cfr., fls. 2 a 38 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por Acórdão de 09.07.2020, (Proc. n.° 842/2017), negou-se provimento ao recurso; (cfr., fls. 315 a 336).

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Inconformada com o decidido, do mesmo, traz a recorrente o presente recurso, alegando para, em conclusões, dizer o que segue:

“I. A Proposta 255/DSO/2017, de 22 de Junho de 2017, sobre a qual são exarados os despachos, incluindo o do Senhor Chefe do executivo, que unilateralmente extingue o qualificado como Procedimento de Troca, não apresenta qualquer critério objectivo que fundamente a conclusão fáctica no sentido da desproporção valorativa entre os terrenos e que pudesse ser subsumida ao pressuposto legal constante do n.° 2 do artigo 86.° da Lei de Terras, limitando-se a afirmar que existe a impossibilidade legal sobre os fins a alcançar mas sem a justificar, pois o n.° 2 do artigo 86.° da Lei de Terras não fala em áreas mas em valores;
2. Maior não significa necessariamente mais valioso;
3. Seja como for, o essencial a reter da lei (n.° 2 do artigo 86.° da Lei de Terras) é que o critério para legalizar uma eventual troca é o valor e nunca a área, pelo que o Acórdão recorrido aplicou mal a Lei de Terras;
4. Nem o acto opinativo e ilegal da administração, aquando da interpretação das cláusulas contratuais constantes do Termo de Compromisso, nem a fundamentação do Acórdão aqui recorrido respeitam os critérios impostos pelo n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras, no intuito de, objectivamente, com critério e como manda a lei, concluir que há desequilíbrio no valor dos terrenos eventualmente a trocar, e, após essa conclusão objectiva e nos termos da lei, então, eventualmente tomar posição quanto à hipotética desproporção, o que necessariamente, diga-se e adiante-se, também não teria de ser a extinção do procedimento;
5. A fundamentação do Acórdão recorrido alicerça-se na imperatividade do artigo 86.° da Lei de Terras (cfr. a pág. 39 do Acórdão); ora, sendo imperativo o n.° 2 do artigo 86.° também o será o seu n.° 3;
6. Discordamos da classificação do acto em causa como vinculado, assim como com a fundamentação da classificação, no entanto, sem prejuízo e sem prescindir, sempre se alegará nesta sede que se o acto é vinculado, por força da imposição à Administração para o cumprimento do disposto no n.° 2 do artigo 86.° da Lei de Terras, também o será por força da imposição à Administração para o cumprimento do disposto no n.° 3 do artigo 86.° da mesma Lei de Terras, o que não aconteceu, não podendo o Acórdão recorrido, discricionariamente, estabelecer que normas são imperativas e que normas não são;
7. É objectivamente claro que a desigualdade das prestações, que hipoteticamente advenham das valorações atribuídas aos terrenos, resultarão da aplicação dos critérios imperativamente definidos no n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras e nunca da opinião da Administração ou do Tribunal a quo;
8. Por outro lado, foi considerado provado, o que de facto aconteceu, que a Administração deduziu a área de 99.000 m2 aos 152.073 m2 inicialmente prometidos conceder à aqui Recorrente, cedendo-os à sociedade "Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A.", pelo que quer a Proposta n.° 255/DSO/2017, de 22.06.2017, quer o Despacho do Senhor do Executivo quer o Acórdão aqui recorrido navegam em erro quanto à questão da área do terreno da zona da Baía a ser concedido à aqui Recorrente, porquanto, a executar-se tal concessão à aqui Recorrente tal como contratualmente estabelecido, nunca seria concedida uma área de 152.073 m2 mas sim de 53.073 m2 (152.073 m2 deduzidos dos 99.000 m2 concedidos à sociedade "Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A.");
9. Subsidiariamente, refira-se que o Termo de Compromisso é uma promessa de concessão e não uma concessão, pelo que não pode violar qualquer preceito da Lei de Terras, nomeadamente o artigo 86.°, pela simples razão de inexistir, por enquanto, concessão, em relação à qual nada impede alterações ao procedimento em curso - aliás impõem-se - para lograr o seu ajuste às novas regulamentações (cfr. o artigo 213.° da Lei de Terras), o que nunca foi feito pela Administração, razão pela qual o artigo 86.° da Lei de Terras não deveria servir propósito fundamentador de nulidade do Termo de Compromisso;
10. Ainda subsidiariamente, não obstante as partes terem até aqui qualificado o procedimento como de troca, colocamos dúvidas sobre essa qualificação, e se não se estará perante uma promessa de concessão (de terrenos na zona da Baía), acordando-se que o pagamento do seu prémio será parte em numerário e parte em espécie;
11. Ou seja, na realidade não existe um compromisso de troca mas sim de uma concessão e pagamento do seu prémio por: (1) numerário, a ser liquidado no futuro; e (2) em espécie, consubstanciada esta na cedência de direitos sobre os terrenos da fábrica e na execução de trabalhos de infraestruturas;
12. Nestes termos, a motivação do acto que extingue o procedimento qualificado como de troca (e consequente invalidade do Termo de Compromisso), expresso na Proposta n.° 255/DSO/2017, de 22.06.2017, que é a desproporção das prestações nos termos do artigo 86.° da Lei de Terras, designadamente das áreas dos terrenos, carecerá de fundamento e aplicabilidade, porquanto não se estará em face de uma troca, carecendo também de fundamento o Acórdão aqui recorrido;
13. O n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras é disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto, ou seja, estabelece a forma como a Administração e os Tribunais deverão dar como provada a valorização dos terrenos que, em consequência, permita a conclusão por hipotético desequilíbrio nas prestações, e nunca como operado pela Administração, com o apoio do Acórdão recorrido, em atropelo ao critério definido legalmente para prova da existência do facto;
14. A Recorrente irá, subsidiariamente, requerer a ampliação da matéria de facto, caso este Venerando Tribunal desconsidere a arguição da nulidade do Acórdão nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 571.° do Código de Processo Civil, infra deduzida;
15. Nestes termos, pelas razões expostas, o Acórdão ora recorrido, ao não efectuar uma correcta aplicação dos n.° 2 e n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras, violou tais disposições, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva e processual, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
16. Subsidiariamente, o Acórdão ora recorrido, ao aplicar o artigo 86.° da Lei de Terras a uma promessa de concessão, violou tal disposição porque é inaplicável, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
17. Ainda subsidiariamente, o Acórdão ora recorrido, ao aplicar o artigo 86.° da Lei de Terras a uma promessa de concessão, a qual não configura de facto uma troca mas sim uma promessa de concessão, acordando-se que o pagamento do seu prémio será parte em numerário e parte em espécie, violou tal disposição porque inaplicável, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
18. O fundamento para a declarada extinção do qualificado como procedimento de troca foi a opinião da Administração no âmbito da interpretação de clausulas contratuais e sua validade;
19. Derivando o Acto que decidiu pela extinção do qualificado como Procedimento de Troca de um acto opinativo sobre contrato administrativo emitido pela Administração, a extinção do procedimento é ilegal, pois deveria a Administração lograr a produção desse efeito por via de acção sobre contrato, tal como impõe o estatuído no n.° 1 do artigo 173.° do CPA;
20. Assim não se entendendo, e através da aqui discutida extinção do procedimento de troca, estará a Administração a obter o mesmo resultado, definitividade e executoriedade, que lhe é vedado pelo artigo 173.° do CPA, no âmbito de divergência de opiniões entre a Administração e o Particular quanto a contrato administrativo, com sérios e graves prejuízos para a Recorrente, pelo menos enquanto não obter declaração judicial que lhe determine a produção do efeito que pretende, nos termos do n.° 1 do artigo 173.° do CPA;
21. Seria em sede de uma acção de tal natureza, de obtenção de declaração judicial a declarar, hipoteticamente, desigualdade de prestações, que a Administração deveria procurar e validar judicialmente tal efeito, em conjunto com o cumprimento dos critérios exigidos pelo n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras e competente prova em função da aplicação de tais critérios legais e nunca, de uma forma aleatória e sem critério, opinar que há desigualdade de prestações em sede de promessa de contrato administrativo, impondo os efeitos da sua opinião à aqui Recorrente;
22. Nestes termos, o Acórdão ora recorrido, ao não efectuar correcta aplicação do artigo 173.° do CPA, viola tal disposição, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva e processual, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
23. Aquando da entrada em vigor da Nova Lei de Terras, o regime da possibilidade de troca de terrenos vê um pressuposto ser aditado, sendo a necessidade de se verificar que o valor dos terrenos recebidos pela RAEM não seja inferior à metade do valor dos terrenos concedidos (cfr. o n.° 2 do artigo 86.° da nova Lei de Terras), pressuposto este inexistente no artigo 80.° da antiga Lei de Terras;
24. Perante este contexto, a Administração devia obediência à alínea a) do artigo 167.° do CPA, no sentido de modificar unilateralmente o conteúdo das prestações, desde que seja respeitado o objecto do contrato e o seu equilíbrio financeiro, na prossecução do designado pela doutrina de principio da adaptação ou adequação ao interesse público, devendo ter promovido a alteração do Termo de Compromisso, quando considerou que esse evento poderia causar desequilíbrio de prestações no âmbito do Termo de Compromisso a que se vinculou, e nunca extinguir o procedimento de troca ou concessão em curso, sem sequer validar o equilíbrio das prestações nos termos do n.° 3 do artigo 86.° da nova Lei de Terras, prescindido em absoluto da via da manutenção do contrato;
25. No seguimento do exposto, não podemos concordar com o decidido no Acórdão recorrido, porquanto não existiu qualquer impossibilidade superveniente nem o objecto do Termo de Compromisso se revelou impossível ou inútil, aliás tal não foi legalmente determinado e validado nos termos do n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras, tal como supra alegado (o desequilíbrio das prestações), tendo a Administração ao seu alcance, e sendo sua obrigação, aplicar a aludida modificação do conteúdo das prestações, ajustando-a aos novos termos decorrentes da nova Lei de Terras;
26. Nestes termos, o Acórdão ora recorrido, ao não efectuar correcta aplicação da alínea b) do n.° 2 do artigo 103.° e da alínea a) do artigo 167.°, ambos do CPA, violou tais disposições, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva e processual, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
27. Por outro lado, nos termos n.° 2 do artigo 213.° da Lei de Terras, a Administração poderia-deveria (1) providenciar alterações e (2) no estrito necessário e com o mínimo de prejuízo para a Recorrente, no momento em que entendeu poder observar-se desequilíbrio nas prestações, uma vez executada a promessa de concessão constante do Termo de Compromisso firmado;
28. Note-se que o n.° 2 do artigo 213.° da Lei de Terras já assume que existirão prejuízos para o Interessado, nunca se tendo a Recorrente, em qualquer momento do procedimento, alheado dessa realidade; portanto mais uma razão para inexistência de impossibilidade superveniente ou configuração do objecto do Termo de Compromisso como impossível ou inútil, tal como decidiu o Tribunal a quo;
29. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, a Decisão recorrida nesta parte é ininteligível, pois se de um lado reconhece que devem "os serviços competentes providenciar para que as alterações dos actos já praticados no procedimento se limitem ao estritamente indispensável", do outro afirma e aceita a pura extinção do procedimento. Assim sendo, não há alterações aos actos do procedimento, quer limitados ao indispensável quer até ao dispensável, mas somente a sua pura extinção. Simplesmente não há aplicabilidade, pelo Acórdão recorrido, do n.° 2 do artigo 213.° da Lei de Terras;
30. Providenciar alterações aos actos já praticados seria, por exemplo, no respeito e cumprimento pelo n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras, ordenar avaliação dos terrenos em questão, quer do terreno a ser concedido pela RAEM quer dos terrenos a serem usados pela Recorrente como pagamento, ou, se quisermos, em processo de troca, e, na eventualidade de desequilíbrios, ajustar as prestações das partes, para um lado ou para o outro, mantendo-se o procedimento de concessão ou de troca, porquanto essa é a ratio da norma, e nunca o extinguindo;
31. O n.° 2 do artigo 213.° da Lei de Terras é aplicável ao procedimento em análise e ordena que a Administração providencie alterações de conformação dos actos praticados nesse procedimento com os termos da nova Lei de Terras, o que deverá ser feito; em lado algum tal normativo ordena a extinção do procedimento por mor das novas regulamentações impostas por nova legislação;
32. Nestes termos, o Acórdão ora recorrido, ao não efectuar correcta aplicação do n.° 2 do artigo 213.° da Lei de Terras, violou tal disposição, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva e processual, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
33. Não poderão resultar dúvidas quanto à convicção do Tribunal a quo no que respeita à área a conceder à Recorrente aquando da outorga da concessão do terreno da zona da Baía, ou seja, 53.073 m2 e nunca 152.073 m2;
34. Pelo que existe oposição entre os fundamentos e a decisão contida no Acórdão aqui em crise, uma vez que o Tribunal a quo conclui "pela existência de uma manifesta desproporção entre o valor dos terrenos a receber pelo Governo (isto é, correspondente à área total de 3002 m2) e o valor do terreno a conceder à recorrente (com a área aproximada de 152073 m2). (realce nosso);
35. Tal oposição entre, os fundamentos e a decisão assume qualificada gravidade quando tal errado facto é decisivo na própria decisão, uma vez que o Tribunal a quo considera que há manifesta desproporção, tendo partido no entanto de premissas e factos errados, factos esses - os correctos – que fez constar da matéria dada como provada;
36. Nestes termos, o Acórdão aqui recorrido está ferido de nulidade nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 571.° do Código de Processo Civil, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo:
37. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, requer a Recorrente a ampliação da matéria de facto para melhor decisão da questão de direito, sendo a que resulta da aplicação do n.° 2 e n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras, porquanto também ocorrem contradições na decisão de facto que inviabilizam a decisão de direito, tudo nos termos previstos e permitidos no artigo 650.° do Código de Processo Civil;
38. O Acto ora Recorrido que ordena a extinção do procedimento de concessão de terreno ou de troca não é um acto vinculado, porquanto nada na lei estabelece qualquer circunstancialismo ou contexto no âmbito do qual o Sr. Chefe do Executivo pode-deve ordená-la;
39. Tal como alegado e cremos demonstrado, o fundamento eleito pela Administração para classificar o acto como vinculado, sendo a desigualdade de prestações, e sufragado pelo Acórdão aqui recorrido, carece, por diversas vias, de enquadramento legal;
40. Quer validando quer eliminando o apontado desequilíbrio de prestações, a Administração sempre poderia-deveria lançar mão a outros expedientes, e.g. "Modificar unilateralmente o conteúdo das prestações, desde que seja respeitado o objecto do contrato e o seu equilíbrio financeiro" [cfr. a alínea a) do artigo 167.° do CPA (Poderes da Administração)];
41. No pior dos cenários, validando-se o eleito desequilíbrio de prestações, poderia a Administração, por exemplo, ter proposto a redução da área do terreno a conceder, reequilibrando, na sua tese, as prestações contratuais, ao mesmo tempo que respeitaria o contrato e o seu equilíbrio financeiro;
42. Deveria a Administração, por exemplo, ter solicitado e procedido a uma rigorosa avaliação das diferentes parcelas de terreno para determinação "pericial", concreta, fundamentada, sustentada e como manda a lei, no que respeita às valorizações das mesmas, sendo o que releva nos termos do artigo 86.° da Lei de Terras é o valor e não as áreas, tal como erradamente defendido na Proposta n.° 255/DSO/2017, de 22.06.2017, sobre a qual é exarado o Despacho que dita o fim do procedimento, entendimento este seguido pelo Acórdão aqui recorrido;
43. Em esforço, assumindo a tese da Administração quanto a desproporção de áreas, o que não se concede como supra exposto, sempre deveria respeito ao estatuído no n.° 2 do artigo 213.° da Lei de Terras, o qual prescreve que: "Se a aplicação da presente lei a actos posteriores exigir a alteração dos já praticados no procedimento, os serviços competentes devem providenciar para que essas alterações se limitem ao estritamente indispensável e sejam feitas com o mínimo de prejuízo para os interessados." (realce nosso);
44. A extinção não era a única via de tratamento do procedimento em causa, pelo que o Acto que a ordena não é vinculado mas discricionário;
45. Por tudo como exposto, o comportamento da Administração, validado pelo Acórdão recorrido, configura uma manifesta violação ao princípio da boa fé e ao princípio da confiança, previstos no artigo 8.° do CPA;
46. Por outro lado, há também violação ao princípio da proporcionalidade, porquanto a Administração, não estando obrigada a extinguir o procedimento, decidiu fazê-lo, portanto recorrendo a meio desproporcionado, tanto que, tal como supra alegado, a extinção alicerça-se em acto opinativo sobre contrato administrativo, emitido pela Administração, sendo tal efeito apenas legalmente admissível possível por via de acção sobre contrato (cfr. o n.° 2 do artigo 5.° e o n.° 1 do artigo 173.°, ambos do CPA);
47. Não há qualquer interesse público urgente e inadiável que impusesse a necessidade de se proceder à extinção do procedimento de concessão ou de troca e que justificasse, na devida proporção, a lesão que se provoca aos direitos e interesses legalmente protegidos da Recorrente, tanto que, pelo menos desde 1997 e até 2017, portanto durante 20 anos no mínimo, a Administração sempre reconheceu a ocupação quer da Recorrente quer dos anteriores ocupantes, no que toca às restantes parcelas que o Acórdão recorrido refere serem alheias à titularidade da Recorrente;
48. Assim, uma extinção de procedimento que não tinha de existir, configura, para além de ilegal como demonstrado, acto desproporcional, sem justa medida e equilíbrio, em qualquer das vertentes do Princípio, sendo adequação, necessidade, exigibilidade e oportunidade, porquanto, mais adequado, medido, equilibrado e menos lesivo seria valorar os terrenos em questão, como aliás manda a lei, e, caso necessário, em função dos resultados valorativos, proceder a ajustamentos nas prestações, tal como também manda a Lei de Terras (cfr. o artigo 213.°) e o CPA (cfr. o artigo 167.°);
49. Pelo exposto, no seguimento do acto que ordenou a extinção do procedimento, a Decisão aqui recorrida que o validou e desatendeu à alegação de violação de princípios norteadores da actividade administrativa, viola o princípio da boa fé, o princípio da confiança e o princípio da proporcionalidade, previstos nos artigos 8.° e 5.° do CPA, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva, devendo ser revogada e substituída por outra que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo;
50. Nos termos da lei civil, a actuação da Administração enquadra-se num abuso de direito, em face da contrariedade entre o seu comportamento, ao longo de mais de 20 anos, a qual provocou uma intensa confiança e expectativa por parte da Recorrente no firmado Termo de Compromisso, e a sua decisão em, unilateralmente, extinguir o procedimento de concessão ou troca, como se entenda;
51. A iniciativa da própria Administração em iniciar um processo de extinção com base na invalidade do Termo de Compromisso que ela própria desenhou e apresentou à ora Recorrente, por suposta ofensa ao artigo 86.° da lei de Terras, que não pode proceder conforme demonstrado supra, configura manifesto abuso do direito na vertente de venire contra factum proprium;
52. Decidiu o TSI, no Acórdão de 18 de Janeiro de 2007, proferido no processo n.° 577/2006, que, nos termos do artigo 326.° do Código Civil, "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito";
53. Nesse Acórdão, mais se decidiu que: "Age com abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium", o promitente comprador que após cerca de dez anos de uma conduta demonstrativa de que válido e eficaz era o contrato promessa de compra e venda verbal que com o promitente vendedor celebrou, invoca a nulidade do mesmo por falta de forma a fim de obter a devolução de todos os montantes que no âmbito do acordo a este entregou.";
54. Note-se que a Administração, invocando imperativo legal que inclusivamente não cumpriu (cfr. o n.° 2 e n.° 3 do artigo 86.° da Lei de terras), mormente a validação da desigualdade das valorações, aplicando os critérios que a lei impõe, vem, passados 17 anos, invocar uma nulidade inexistente, criada por si e que poderia sempre ser sanada com recurso a outras soluções tais como já referidas neste alegatório;
55. João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho ensinam que, aquando da análise à modalidade venire contra factum proprium, "Salvo nos casos em que a pessoa tenha motivos fundados em novos elementos para mudar de atitude (logo, justificativos), não pode agir num dado momento contrariando a sua anterior posição ou o seu próprio comportamento passado. O exercício do direito deve ser feito sem frustrar a confiança e a legítima expectativa que suscitou em outrem." (realce nosso);
56. Ora, in casu, a Administração não tinha motivos fundados para mudar de atitude, porquanto nos termos da Lei de Terras não relevam as áreas mas os valores, sendo que estes terão de ser determinados com recurso aos critérios definidos na própria Lei de Terras, o que a Administração não fez nem o Acórdão aqui recorrido corrigiu;
57. A Administração não é um contratante qualquer, é entidade em quem se deposita grau de confiança distinto e súpero, pelo que deve actuação em conformidade, o que manifestamente não ocorre quando firma um acordo, cria profunda confiança do seu contraente quanto à sua validade e execução, conduz e influencia esse contraente a adiar decisões de investimento nas suas propriedades e a prescindir de interpor acções judiciais para formalização de títulos de propriedade de terrenos aforados e omissos, e, unilateralmente, passados 17 anos e pisando critérios legalmente impostos, extingue-o, interpretando arbitrariamente as suas cláusulas via acto opinativo sem recurso às instâncias judiciais como também exige a lei;
58. O Acórdão recorrido realçou e transcreveu a seguinte parte do Acórdão do TSI proferido no processo n.° 571/2018 Acórdão: "E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões.";
59. Ora, salvo o devido respeito, a Administração não acatou as normas imperativas de direito público quando, entre outros nestas alegações apontados, elege áreas em vez de valores e quando não aplica os critérios constantes do n.° 3 do artigo 86.° da Lei de Terras para validação de hipotético desequilíbrio de prestações, ao que se deveria seguir eventual ajustamento no procedimento e contrato, caso necessário, e nunca a extinção desse procedimento;
60. Pelo exposto, o Acórdão aqui recorrido, ao fazer improceder a existência de abuso do direito por parte da Administração, violou o artigo 326.° do Código Civil, pelo que, nos termos previstos no artigo 152.° do CPAC, há violação e errada aplicação da lei substantiva, devendo ser revogado e substituído por outro que ordene a anulação do Despacho do Senhor Chefe do Executivo; (cfr., fls. 347 a 420).

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Na sequência das contra-alegações da entidade recorrida pugnando pela improcedência do recurso, (cfr., fls. 427 a 446), vieram os autos a este Tribunal, onde, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também que o recurso não merecia provimento; (cfr., fls. 456 a 462-v).

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Cumpre apreciar.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância indicou como “provada” a seguinte matéria de facto:

«A área da Fábrica de Panchões Iec Long é composta por: terrenos em propriedade perfeita, terrenos concedidos por arrendamento, terrenos concedidos por aforamento e terrenos “Sa Chi Kai” adquiridos pelos antigos proprietários da Fábrica de Panchões.
A antiga Fábrica de Panchões Iec Long desenvolveu a sua actividade até ao século passado, depois devido a restrições legais ao desenvolvimento daquela actividade industrial em zonas habitacionais, o Governo decidiu cancelar a licença de fabrico de produtos perigosos.
Os terrenos que compõem a Fábrica de Panchões Iec Long eram ocupados pela recorrente.
Os terrenos em propriedade perfeita de que a recorrente é proprietária correspondem a três parcelas descritas na Conservatória do Registo Predial:
- Descrição n.º 10134, a fls. 103 do Livro B27, com a área de 2020 m²;
- Descrição n.º 13480, a fls. 66v do Livro B33, com a área de 123 m²;
- Descrição n.º 13481, a fls. 67 do Livro B36, com a área de 859 m², num total de 3002 m².
Enquanto as concessões por arrendamento foram declaradas caducadas e rescindidas pelo Despacho do Encarregado do Governo n.º 59/86, de 28 de Fevereiro (publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 11, de 15 de Março de 1986, pág. 946 e ss), nos termos do qual foi homologada a declaração de rescisão das concessões, por arrendamento, dos terrenos com as áreas de 113,85 m², 15312,40 m², 104,65 m², 2397,15 m², 2288,37 m² e 2000 m², todas da Fábrica de Panchões Iec Long.
Por seu turno, os terrenos concedidos por aforamento têm uma área total de cerca de 4627 m², e os terrenos omissos cerca de 2279 m².
Apesar das caducidades e rescisões declaradas no Despacho do Encarregado do Governo n.º 59/86, a recorrente continuou a ocupar esses terrenos, bem assim os prédios concedidos por aforamento e os terrenos adjacentes “Sa Chi Kai” ou “Papel de Seda”.
Não tendo o Governo, desde aquela altura até 2017, tomado qualquer iniciativa para reclamar os terrenos.
Foi outorgado em 10.1.2001 um “Termo de Compromisso” entre o Governo da RAEM (representado pelo então Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes Jaime Roberto Carion) e a recorrente (representada na pessoa do seu Administrador A), o qual teve por objecto dar início ao procedimento da troca de todas as parcelas de terreno da antiga Fábrica de Panchões Iec Long, alegadamente possuídas e ocupadas pela recorrente, pela concessão de um terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança, com a área de 152073 m², junto à Avenida da Praia, na Ilha da Taipa, para a construção de um complexo turístico e habitacional, a definir no plano de aproveitamento a elaborar pela recorrente.
Por Despacho do Chefe do Executivo de 1.3.2002, foi autorizada a divisão do terreno acima descrito em duas parcelas, designadas por zona A e zona B, respectivamente, com as áreas de 99000 m² e 53073 m².
Com o consentimento da RAEM, a recorrente cedeu a favor da sociedade Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A., parte dos direitos sobre aquele terreno que iria receber na troca dos terrenos da antiga Fábrica de Panchões Iec Long, designada por zona A, com a área de 99000 m².
Posteriormente, a sociedade Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A. veio requerer, juntamente com a sociedade Propriedades Sub-F, S.A., a concessão por arrendamento do terreno designado por lote B, do quarteirão B2, da zona dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE), com a área de 18363 m², destinado à construção de um complexo constituído por um hotel de 5 estrelas e por uma área residencial, abdicando a primeira requerente (Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A.) da área de 18363 m² no terreno situado na Baía de Nossa Senhora da Esperança que o Governo da RAEM havia comprometido a conceder no âmbito do procedimento da troca de terrenos na antiga Fábrica de Panchões Iec Long.
Foi elaborada em 22.6.2017 pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, a seguinte Proposta:
“Proposta N.º: 255/DSO/2017
Data: 22/06/2017
Assunto: Relatório de investigação – Intenção de tomada de decisão do Chefe do Executivo, referente à declaração da extinção do procedimento de troca do terreno da Fábrica de Panchões Iec Long (Proc n.º 6153.03)
1. Por despacho do Chefe do Executivo, de 24 de Abril de 2017, foi determinada a pretensão de declaração de extinção do procedimento de troca do terreno da Fábrica de Panchões Iec Long (adiante designada por “Fábrica de Panchões”) nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 103º do «Código do Procedimento Administrativo», aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M de 11 de Outubro, uma vez que de acordo com o n.º 2 do artigo 86º da Lei n.º 10/2013 «Lei de terras», existe a impossibilidade legal em relação ao respectivo objecto (Anexo 1).
2. Em conformidade com os artigos 93º e 94º do «Código do Procedimento Administrativo», esta Direcção de Serviços através do ofício n.º 324/6153.03/DSO/2017, de 9 de Maio, comunicou à interessada Sociedade de Desenvolvimento Predial Baía da Nossa Senhora da Esperança, S.A. (adiante designada por “Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança”) a referida intensão de tomada de decisão e que pode pronunciar-se sobre a mesma (Anexo 2).
3. Em resposta ao ofício acima mencionado e, para os efeitos de audiência prévia, a Advogada B, representante da Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, apresentou uma alegação escrita registada com entrada n.º 70885/2017 de 22 de Maio de 2017, solicitando a não decisão de declaração de nulidade do “termo de compromisso” celebrado em 10 de Janeiro de 2001 e dos actos consequentes, e o seguimento do procedimento administrativo do caso vertente, pelas seguintes razões (Anexo 3):
O “termo de compromisso” não é nulo
3.1 O projecto do “termo de compromisso” foi visto e assinado pelo ex-Secretário para os Transportes e Obras Públicas (SOPT) em 8 de Janeiro de 2001 e autorizado e assinalado pelo Chefe do Executivo em 9 de Janeiro de 2001. Posteriormente em 10 de Janeiro de 2001, o “termo de compromisso” foi celebrado oficialmente pelo ex-Director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) e pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, nestas circunstâncias, o mesmo foi celebrado sob poderes conferidos legalmente;
3.2 O “termo de compromisso” foi transcrito no Despacho do SOPT n.º 87/2006, publicado no Boletim Oficial da RAEM (adiante designado por “Boletim Oficial), n.º 23, II Série, de 7 de Junho de 2006;
3.3 Cabe ao Governo a decisão de publicação ou não do contrato administrativo, mas não à destinatária;
3.4 Pode-se verificar no n.º 11 deste despacho que o “termo de compromisso” e o respectivo processo já foram enviados à Comissão de Terras para discussão e parecer;
3.5 Nos termos legais, mesmo que o “termo de compromisso”, celebrado pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança e pelo Governo, não fosse publicado no Boletim Oficial, produziria efeito entre as duas partes e estas obrigam-se a cumpri-lo;
3.6 A antiga «Lei de terras» é aplicável ao problema do “termo de compromisso”, e de acordo com os artigos 41º, 124º e 125º desta lei, compete ao Chefe do Executivo a decisão de concessão do terreno, contudo, o “termo de compromisso” não é uma concessão de terreno;
3.7 O “termo de compromisso” tem por objectivo prometer a assinatura de um contrato e cujo conteúdo vai ser definido futuramente. Portanto, com a inexistência de concessão, não viola a antiga «Lei de terras».
A troca do terreno situado na Baía da Nossa Senhora da Esperança pelo terreno da Fábrica de Panchões não é nula
3.8 A Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança trocou o terreno situado na Baía da Nossa Senhora da Esperança pelo terreno inteiro da Fábrica de Panchões e por pagamento de $428.000.000,00 patacas. O terreno inteiro envolve os terrenos da Sociedade e os ocupados pela mesma, incluindo a área total de 3002 m2 de terreno em regime de propriedade perfeita, a qual é superior a 1655 m2;
3.9 Na antiga «Lei de terras» permite-se expressamente trocar um terreno por um outro terreno menor do que aquele quando preenchidos os pressupostos de obedecer o princípio de equivalência e de que o concessionário paga, a título de preço ou renda, a importância correspondente à diferença;
3.10 O valor do terreno a trocar indicado no n.º 1.3 do “termo de compromisso” foi calculado de acordo com a legislação em vigor naquele momento que se relaciona com prémio. Não é adequado, nem justo tomar a decisão à base duma análise procedida de acordo com critério actual mas relativa à situação decorrente no passado;
3.11 O objecto do “termo de compromisso” envolve não só o terreno da Fábrica de Panchões, mas também as construções e coisas aí existentes e, com vista a resolver o problema do processo n.º 257/99, relativo ao prémio do Lote BT27 no valor de $77.000.000,00 patacas.
O Despacho de ex-Chefe do executivo de 1 de Março de 2002 e o documento complementar do “termo de compromisso” de 10 de Janeiro de 2001
3.12 O “termo de compromisso” não deve ser considerado nulo, e os actos consequentes também não devem ser considerados nulos, incluindo o despacho do ex-Chefe do Executivo de 1 de Março de 2002, no qual foi autorizado o pedido, efectuado pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, de divisão do terreno situado na Baía da Nossa Senhora da Esperança em duas parcelas, respectivamente com as áreas de 99000 m2 e 53073 m2, e de concessão da primeira parcela a favor à Shun Tak, para construir um complexo hoteleiro, bem como um documento complementar em relação ao “termo de compromisso” que foi visto pelo SOPT e aprovado pelo Chefe do Executivo, pelo que o mesmo não enfermou vício de qualquer forma.
Violação da expectativa legítima e do princípio da boa-fé
3.13 A publicação do “termo de compromisso” celebrado entre o Governo da RAEM e a Sociedade Baía da Nossa Senhora da Esperança, relativo à troca do terreno da Fábrica de Panchões, significa que o Governo da RAEM afirma que o “termo de compromisso” tem efeito jurídico;
3.14 Quer no período da Administração Portuguesa de Macau quer do Governo da RAEM, o procedimento de celebração do “termo de compromisso” foi participado e dominado pelo superior do Governo, incluindo técnicos, juristas, engenheiros, chefias funcionais dos serviços públicos, Secretários, o Governador de Macau e o então Chefe do Executivo, o que mostrando a alta transparência no todo procedimento, tanto na elaboração como na celebração. Os motivos e procedimento da troca dos terrenos e o “termo de compromisso” celebrado, todos foram autorizados após a apreciação da DSSOPT e a discussão na reunião da Comissão de Terras, aliás, o procedimento de concessão da Shun Tak, sobre a troca da parcela situada na zona A da Baía da Nossa Senhora da Esperança, foi objecto da declaração de concordância assinada pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, daí resulta que esta sociedade está, sem dúvida, com posição jurídica no âmbito do terreno situado na Baía da Nossa Senhora da Esperança. No fim, por despacho do Chefe do Executivo, a publicação no Boletim Oficial foi determinada, isto significa que os motivos e o resultado da troca dos terrenos foram apreciados e autorizados pelos respectivos Serviços Públicos, sendo manifestamente legais, caso declare a extinção do procedimento de troca dos terrenos pela nulidade do “termo de compromisso”, violará o princípio da boa-fé e, prejudicando a expectativa legítima da Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança.
4. Relativamente à alegação escrita da Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, a análise ao assunto é a seguinte:
4.1 A Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança considera que o “termo de compromisso” foi celebrado sob os poderes conferidos legalmente. De facto, o que foi assinado pelo ex-SOPT, até pelo ex-Chefe do Executivo, é apenas uma minuta do “termo de compromisso”, mas não o original, pelo que não produz qualquer efeito jurídico (Anexo 4);
4.2 Pode-se verificar na cláusula primeira (objecto do contrato) do contrato de concessão titulado pelo Despacho do SOPT n.º 87/2006 que este despacho só titula a concessão de um terreno com a área de 18344 m2, situado na península de Macau, na zona B dos NAPE, junto da Avenida de Sagres e da Avenida Dr. Sun Yat Sem, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.º 23213. Além disso, a Comissão de Terras apenas emitiu parecer sobre o processo supra referido. Isto é, o conteúdo do acordo do “termo de compromisso” não é titulado por este despacho;
4.3 O disposto do artigo 127º da «Lei de terras» em vigor é semelhante ao mesmo da antiga «Lei de terras», isto significa que a concessão e os eventuais actos de disposição relacionados com a concessão são titulados por despacho (do Secretário para os Transportes e Obras Públicas) publicado no Boletim Oficial;
4.4 Por isso, a publicação no Boletim Oficial do contrato de concessão de terreno é um acto formal obrigatório no ponto de vista jurídico, e não é uma decisão somente da parte do Governo, senão, é como o “termo de compromisso”, que fica nulo devido à falta do parecer da Comissão de Terras sobre o pedido de troca dos terrenos que não foi publicado no Boletim Oficial e que é um vício pelo que não é válido, assim implica a nulidade. Nos termos do n.º 1 do artigo 123º do «Código do Procedimento Administrativo», o acto nulo não produz quaisquer efeitos, nem vincula qualquer pessoa ou entidade;
4.5 Em conformidade com o artigo 404º do «Código Civil», aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, o “termo de compromisso” é um contrato-promessa que tem por objectivo a convenção da celebração de um contrato prometido. Visto que o conteúdo do contrato prometido envolve a concessão dos terrenos, não há qualquer dúvida de que o mesmo se rege pela «Lei de terras», aliás, nos termos dos artigos 168º e 172º do «Código do Procedimento Administrativo», a convenção constitui acto de formação dos contratos, pelo que também se rege pelo regime de invalidade;
4.6 Conforme as inscrições n.ºs 45966G e 45924G da CRP, verifica-se que o direito de propriedade das parcelas da Fábrica de Panchões, com a área total de 3002 m2, demarcadas e assinaladas com as letras A11 (40m2), A20 (694m2), P1 (824m2), P1a (462m2), A18a (357m2), A21 (256m2), P3 (246m2) e P2 (123m2) na planta n.º 514/1989 de 13 de Setembro de 2016, descritas na CRP sob os n.ºs 10134 (2020m2), 13480 (123m2) e 13481 (859m2), acha-se inscrito a favor da Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança. Todavia, não existe registo sobre a situação de ocupação das outras parcelas da Fábrica de Panchões indicada pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, esta sociedade nunca apresentou quaisquer provas ou decisão do Tribunal, comprovativas da sua alegação, ou seja, a aquisição dos respectivos direitos sobre a ocupação por meio de usucapião. Nestes termos, além das parcelas com a área de 3002 m2, a Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança não tem legitimidade sobre o direito de disposição das outras parcelas de terreno da Fábrica de Panchões, mesmo que a ocupação seja um facto, tanto nos termos da nova «Lei de terras», como da antiga, o objecto da troca de terrenos deve ser do direito de terreno, mas não sobre a situação da ocupação de terreno (Anexo 5);
4.7 De facto, devido a várias razões, o conteúdo do “termo de compromisso” não foi realizado completamente até a entrada em vigor da Lei n.º 10/2013 em 1 de Março de 2014, por outra palavra, não foi realizada conforme o “termo de compromisso” a transmissão do terreno da Fábrica de Panchões à RAEM, nem a concessão do terreno situado na Baía da Nossa Senhora da Esperança, foi apenas concedida uma parte do terreno, ou seja, o terreno descrito sob o n.º 23213. Assim, uma vez que o procedimento ainda está a ser prosseguido, o que não produz completamente o esperado efeito jurídico, neste caso só se pode ser aplicada a nova Lei, isto é, a Lei n.º 10/2013;
4.8 O procedimento da troca dos terrenos, indicado no “termo de compromisso”, quer por iniciativa da RAEM, quer a pedido da entidade privada, e o facto de receber um terreno apenas com 3002 m2 é incompatível com a igualdade das prestações prevista no artigo 86º da Lei n.º 10/2013, isto é, existe a impossibilidade legal sobre os fins a alcançar do procedimento de troca dos terrenos resultante do “termo de compromisso”;
4.9 Aliás, considerando o princípio de legalidade, a Administração não pode continuar a pôr em prática o “termo de compromisso” que não está em conformidade com a «Lei de terras» em vigor, tanto na competência, como na forma e no procedimento;
4.10 Devido à nulidade do “termo de compromisso”, todos os actos dependentes da existência daquele acto nulo ou todas as situações de facto resultantes do mesmo, em princípio, são nulos, incluindo o despacho do ex-Chefe do Executivo de 1 de Março de 2002, no qual foi autorizado o pedido, efectuado pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, de divisão do terreno situado na Baía da Nossa Senhora da Esperança em duas parcelas, respectivamente com as áreas de 99000m2 e 53073m2, e de concessão da primeira parcela a favor à Shun Tak, para construir um complexo hoteleiro, bem como um documento complementar, em relação ao “termo de compromisso”, assinado pelo Director da DSSOPT em nome do Governo da RAEM e pela Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança em Julho de 2006, no qual foram alteradas as respectivas condicionantes urbanísticas;
4.11 Sobre o prejuízo à expectativa legítima da Sociedade da Baía da Nossa Senhora da Esperança, através do n.º 19 da alegação escrita, podemos saber que esta sociedade entende bem que o “termo de compromisso” celebrado em 10 de Janeiro de 2001 tem por objectivo só a outorga de um contrato no futuro e que não existe qualquer concessão, ou seja, há incerteza de atribuir-concessão. Aliás, dado que o “termo de compromisso” enfermou vício objectivo acima referido, não é possível produzir efeito previsível, nem a expectativa legítima alegada.
5. Pelo exposto, não foram carreados para o procedimento elementos ou argumentos de facto e de direito que pudessem conduzir à alteração da declaração de extinção do procedimento de troca do terreno da Fábrica de Panchões, pelo que nos termos do artigo 86º da Lei n.º 10/2013 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 103º do «Código do Procedimento Administrativo», submete-te a presente proposta à consideração superior a fim de declarar a extinção do procedimento de troca referente à Fábrica de Panchões Iec Long.
À consideração superior.”
Em aditamento, foi apresentada pelo Gabinete do Exm.º Secretário para os Transportes e Obras Públicas a seguinte proposta:
“Assunto: Proposta n.º 255/DSO/2017 — Análise à resposta apresentada pela “Sociedade de Desenvolvimento Predial Baía da Nossa Senhora da Esperança”, em sede de audiência prévia, relativamente à intenção de se extinguir o procedimento de permuta dos terrenos da Fábrica de Panchões Iec Long
A coberto da proposta acima referenciada vem analisada a resposta apresentada pela “Sociedade de Desenvolvimento Predial Baía da Nossa Senhora da Esperança”, em sede de audiência prévia, relativamente à intenção de declarar a extinção do procedimento de troca, uma vez que o seu objecto se mostra legalmente impossível, face ao disposto no n.º 2 do artigo 86º da Lei n.º 10/2013.
Na resposta apresentada por aquela “Sociedade”, esta pronuncia-se sobre questões que não haviam sido suscitadas aquando da manifestação da intenção de declaração de extinção do procedimento, as quais não são relevantes, razão pela qual não deve ser considerada a análise sobre as mesmas efectuada na Proposta n.º 255/DSO/2017.
Quanto à impossibilidade legal decorrente do n.º 2 do artigo 86º da Lei n.º 10/2013, aquela “Sociedade” apenas se limita a fazer considerações genéricas e sobre a avaliação do terreno à época, não tendo trazido qualquer elemento que importe a alteração da intenção de extinção do procedimento de troca com aquele fundamento.
Pelo exposto, somos de opinião que este expediente pode ser levado à consideração de Sua Excelência o Chefe do Executivo, propondo-se que se declare extinto, conforme o aqui referido, o procedimento em causa.
À consideração de V. Exa.”
Foi proferida pelo Exm.º Secretário para os Transportes e Obras Públicas o seguinte despacho:
“À consideração superior com a minha concordância com o parecer deste Gabinete.”
Pelo Exm.º Chefe do Executivo foi proferido em 25.7.2017 o seguinte despacho:
“Segundo a proposta do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, declaro a extinção do respectivo procedimento de troca do terreno. Proceda conforme a proposta.”»; (cfr., fls. 325 a 331-v).

Do direito

3. Inconformada com o Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância proferido no âmbito do seu anterior recurso contencioso, onde se decidiu pela sua improcedência, traz a recorrente o presente recurso (jurisdicional), pedindo que se revogue o Acórdão recorrido com as suas legais e naturais consequências em relação ao despacho do Chefe do Executivo que declarou a “extinção do procedimento de troca do terreno” identificado nos autos.

Antes de mais, no intuito de se proporcionar uma boa compreensão do que em questão está na presente lide recursória, mostra-se-nos adequado aqui transcrever a fundamentação da decisão agora recorrida.

Vejamos.

Para a referida decisão de improcedência do anterior recurso contencioso, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“Foi proferido pelo Chefe do Executivo o despacho que declarou a extinção do procedimento de troca do terreno da Fábrica de Panchões Iec Long.
Assaca a recorrente ao referido despacho a má fé da Administração e a falta de respeito pelos princípios gerais de direito administrativo.
Ora bem, no caso dos autos, é verdade que foi outorgado entre a recorrente e a Administração um Termo de Compromisso o qual teve por objecto dar início ao procedimento de troca de todas as parcelas de terreno da antiga Fábrica de Panchões Iec Long, alegadamente possuídas e ocupadas pela recorrente, pela concessão de um terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança, com a área de 152073 m², junto à Avenida da Praia, na Ilha da Taipa, para a construção de um complexo turístico e habitacional, a definir no plano de aproveitamento a elaborar pela recorrente.
Também é verdade que em consequência daquele Termo de Compromisso, foi autorizada, por Despacho do Chefe do Executivo de 1.3.2002, a divisão do terreno na Baía de Nossa Senhora da Esperança, com a área de 152073 m² em duas parcelas, designadas por zona A e zona B, respectivamente, com as áreas de 99000 m² e 53073 m², tendo a recorrente cedido, com o consentimento da RAEM, a favor da sociedade Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A., parte dos direitos sobre aquele terreno que iria receber na troca dos terrenos da antiga Fábrica de Panchões Iec Long, designada por zona A, com a área de 99000 m². Posteriormente, a sociedade Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A., por sua vez, veio requerer, juntamente com a sociedade Propriedades Sub-F, S.A., a concessão por arrendamento do terreno designado por lote B, do quarteirão B2, da zona dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE), com a área de 18363 m², destinado à construção de um complexo constituído por um hotel de 5 estrelas e por uma área residencial, abdicando a primeira requerente (Shun Tak, Serviços Recreativos, S.A.) da área de 18363 m² no terreno situado na Baía de Nossa Senhora da Esperança que o Governo da RAEM havia comprometido a conceder no âmbito da troca de terrenos da antiga Fábrica de Panchões Iec Long.
Conforme resulta da matéria provada, para além das três parcelas de terreno com a área total de 3002 m², as restantes parcelas de terreno da Fábrica de Panchões já não pertenciam à recorrente, em virtude de as concessões por arrendamento já terem sido declaradas caducadas e rescindidas pelo Despacho do Encarregado do Governo n.º 59/86, de 28 de Fevereiro, enquanto os terrenos concedidos por aforamento e os terrenos omissos no registo predial, passaram a ser terrenos disponíveis do Estado, nos termos previstos no artigo 8.º da Lei de Terras.
Isto é, para além daquelas parcelas de terreno com a área total de 3002 m², a recorrente não era titular dos restantes terrenos.
Não obstante, foi outorgado em 10.1.2001 um Termo de Compromisso entre o Governo da RAEM e a recorrente, segundo o qual o Governo da RAEM prometeu conceder à recorrente o terreno localizado na Baía da Nossa Senhora de Esperança, com a área aproximada de 152073 m², enquanto a recorrente prometeu ceder ao Governo da RAEM todas as parcelas de terreno identificadas na planta n.º 514/89 emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro.
Mas como vimos acima, não sendo a recorrente titular de todas as parcelas de terreno identificadas na respectiva planta cadastral, falta-lhe, portanto, legitimação para dispor as parcelas de terreno de que não era titular.
Dispõe o n.º 2 do artigo 86.º da Lei n.º 10/2013: “No caso previsto no n.º 2 do artigo 83.º, podem ser concedidos, mediante troca, terrenos de valor superior aos recebidos, desde que o valor dos terrenos recebidos não seja inferior à metade do valor dos terrenos concedidos, pagando o concessionário, a título de prémio, a importância correspondente à diferença dos valores dos dois terrenos em troca.”
Ora bem, a recorrente era apenas titular de parcelas de terreno com uma área total de 3002 m², portanto, não sendo titular dos restantes terrenos com uma área de cerca de 29122,42 m² (113,85 m² + 15312,40 m² + 104,65 m² + 2397,15 m² + 2288,37 m² + 2000 m² + 4627 m² + 2279 m²), concedidos tanto por arrendamento como por aforamento, nem dos terrenos omissos, há que concluir pela existência de uma manifesta desproporção entre o valor dos terrenos a receber pelo Governo (isto é, correspondente à área total de 3002 m²) e o valor do terreno a conceder à recorrente (com a área aproximada de 152073 m²).
Isto posto, por não existir igualdade de prestações exigida pelo artigo 86º, ex vi do artigo 213.º, ambos da Nova Lei de Terras, o referido Termo de Compromisso não deixa de ser inválido.
Conforme observado pelo Digno Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer, e bem, o disposto no artigo 86.º da Nova Lei de Terras constitui um preceito legal de carácter imperativo, daí que o negócio jurídico celebrado contra disposição legal de carácter imperativo é nulo, nos termos previstos no artigo 287.º do Código Civil, sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado, podendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal, ao abrigo do artigo 279.º do Código Civil.
Prevê a alínea b) do n.º 2 do artigo 103.º do CPA: “O órgão competente para a decisão pode declarar o procedimento extinto quando a finalidade a que este se destinava ou o objecto da decisão se revelarem impossíveis ou inúteis”.
No caso vertente, estando em causa uma impossibilidade superveniente que condiciona o normal prosseguimento do procedimento administrativo de troca dos terrenos, detectado no seu decurso, nenhuma censura merece a Administração ao declarar extinto o procedimento de troca de terreno da Fábrica de Panchões Iec Long.
Diz a recorrente que o n.º 2 do artigo 213.º da nova Lei de Terras determina que a aplicação da nova lei a situações de pretérito não deve implicar prejuízos para os interessados.
É verdade que a aplicação da nova Lei de Terras a situações iniciadas não deve implicar grandes prejuízos para os interessados, antes devendo os serviços competentes providenciar para que as alterações dos actos já praticados no procedimento se limitem ao estritamente indispensável e sejam feitos com o mínimo de prejuízo para os interessados.
E no caso vertente, uma vez declarado extinto o procedimento de troca, a recorrente permanecerá na titularidade dos terrenos da antiga Fábrica de Panchões de que tinha direito, ou seja, a recorrente não vai ficar com qualquer prejuízo relevante.
Invoca ainda a recorrente que houve abuso de direito por parte da entidade recorrida traduzido em venire contra factum proprium.
Decidiu-se no Acórdão deste TSI, no Processo n.º 571/2018 que: “O abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões” (Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016). Neste sentido, ainda, o Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 370/2016.”
No caso sub judice, o acto recorrido visa exclusivamente acatar a norma imperativa de direito público, tratando-se de um acto vinculado da Administração praticado com vista a defender o interesse público, pelo que não se vislumbra, a nosso ver, que o acto tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, improcedendo, assim, o recurso nesta parte.
No que se refere à alegada violação dos princípios da justiça, da imparcialidade, da igualdade e da boa fé na vertente de tutela da confiança, somos a entender que igualmente não assistir razão à recorrente.
Como vimos acima, face ao carácter imperativo do disposto no artigo 86.º da nova Lei de Terras, o acto sob escrutínio e praticado pela entidade recorrida não deixa de ser um acto vinculado.
Efectivamente, inserindo-se a actuação da Administração no âmbito do exercício de poderes vinculados, torna-se irrelevante a alegada violação daqueles princípios, os quais funcionam apenas como limites internos da actividade discricionária da Administração e não no âmbito do exercício de poderes vinculados.
Improcede, assim, o recurso quanto a esta parte.
Finalmente, não obstante a Administração ter concedido, mediante arrendamento, terrenos a terceiros, em consequência da celebração do acordo de troca de terrenos, trata-se de questões relacionadas com outras concessionárias e não com a recorrente dos presentes autos, sendo assim, se existir alguma controvérsia entre eles será resolvida em processo autónomo.
Por tudo quanto deixou exposto, improcedem as razões aduzidas pela recorrente no recurso contencioso”; (cfr., fls. 332 a 336).

Aqui chegados, feita a reflexão que nos foi possível efectuar, e admitindo-se que outra opinião se possa ter sobre a solução a adoptar em relação à pretensão da ora recorrente, cremos, porém, que a mesma não merece provimento.

Pois bem – sendo nós de opinião que uma decisão a proferir nos presentes autos não deve contribuir para a já existente abundância, diversidade e dispersão de argumentos e fundamentos invocados, mostra-se-nos que (mais) – adequado é (desde já) salientar que o Acórdão recorrido (apenas) negou provimento a um recurso contencioso que tinha como objecto um “acto administrativo que declarou a extinção de um procedimento administrativo” ao abrigo do art. 103°, n.° 2, al. b) do Código de Procedimento Administrativo, (onde se prescreve que “O órgão competente para a decisão pode declarar o procedimento extinto: b) Quando a finalidade a que este se destinava ou o objecto da decisão se revelarem impossíveis ou inúteis”).

Por sua vez, e como resulta do que se deixou relatado, o “procedimento” declarado extinto, consistiu, na prática, de um conjunto de actos com vista a uma (inicialmente) projectada “troca de terrenos” entre a Administração da R.A.E.M. e a ora recorrente; (cfr., art. 1°, n.° 1 do citado C.P.A. onde se estatui que “Entende-se por procedimento administrativo a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública, ou à sua execução”).

Nesta conformidade – sem se poder olvidar que, nesta perspectiva, ou seja, atenta a referida “finalidade” do aludido procedimento, que todo aquele “conjunto de actos” entretanto praticados, devem, tão só, ter a natureza de “actos administrativos (preparatórios)”, integrantes de toda uma actividade administrativa desenvolvida e destinada a proporcionar uma oportuna e adequada decisão em conformidade com o “princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos residentes da R.A.E.M.”, (cfr., art. 4° do C.P.A., onde se preceitua que: “Compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes”) – e ponderando-se no que, em concreto, iria acabar por ser a projectada “troca de terrenos”, apresenta-se-nos evidente que o Acórdão recorrido, com a decisão de improcedência do recurso contencioso, chegou à solução que se impunha como a mais acertada, (mostrando-se-nos pois de concordar – e adoptar – a posição pelo Ministério Público assumida no douto Parecer que dá clara e cabal resposta à ora recorrente).

Passa-se a tentar expor – ainda que algo abreviadamente – este nosso ponto de vista.

Ora, a final da sua motivação de recurso pede a recorrente que se “declare a nulidade ou anule o Acto do Senhor Chefe do Executivo que ordenou a extinção do Procedimento de concessão ou de troca de terrenos, ou, subsidiariamente, que se ordene a ampliação da matéria de facto para melhor decisão da questão de direito, (…)”; (cfr., o “pedido” deduzido, a fls. 420).

E, começando-se pela referida “ampliação da matéria de facto”, muito não se mostra de dizer, pois que, como temos vindo a considerar, sabidas são as “competências” desta Instância em sede de “matéria de facto”, dando-se aqui como reproduzido o que no recente aresto de 04.12.2020, (Proc. n.° 175/2020), se voltou a consignar sobre esta questão.

Continuando, e sendo a recorrente de opinião que o Acórdão recorrido incorreu em “errada interpretação e aplicação do art. 86° da «Lei de Terras»”, (Lei n.° 10/2013, in B.O. n.° 36/2013, de 02.09.2013), e apresentando-se-nos ser esta a “questão central e essencial” dos presentes autos, vejamos.

Nos termos deste normativo, (inserido na secção respeitante à “Troca de direitos sobre terrenos”):

“1. O valor do terreno recebido pela RAEM deve ser semelhante ao do terreno concedido.
2. No caso previsto no n.º 2 do artigo 83.º, podem ser concedidos, mediante troca, terrenos de valor superior aos recebidos, desde que o valor dos terrenos recebidos não seja inferior à metade do valor dos terrenos concedidos, pagando o concessionário, a título de prémio, a importância correspondente à diferença dos valores dos dois terrenos em troca.
3. Para efeitos deste artigo, o valor do terreno recebido e do concedido é calculado nos termos do regulamento administrativo referido no n.º 2 do artigo 57.º e com base no seguinte:
1) O valor máximo obtido nos seguintes factores, quando se trate de terreno recebido:
(1) Finalidade e área bruta de construção das edificações que nele possam ou poderiam ser realizadas; ou
(2) Finalidade e área bruta de construção das edificações nele existentes, tendo em conta a taxa da amortização das mesmas prevista na lei.
2) Finalidade e área bruta de construção das edificações que nele possam ser realizadas, quando se trate de terreno a conceder”.

Notando-se, desde já, que nos termos do art. 212° desta “Lei de Terras”, a mesma aplica-se a situações iniciadas antes da sua entrada em vigor, (portanto, à situação dos presentes autos), e mostrando-se de salientar que o n.° 2 do art. 83°, para o qual remete o preceito que se transcreveu, estatui que “Apenas por interesse público, designadamente para a construção de vias públicas, habitação pública ou instalações públicas de cuidados médicos, a RAEM pode, por iniciativa própria, proceder à troca de direitos referidos no número anterior”, cabe aqui referir (também) que, o motivo (jurídico) da mencionada “decisão de extinção do procedimento” foi (exactamente) o de ter-se por verificada a “situação” do dito n.° 2 (do atrás transcrito art. 86°), e que esta foi, igualmente, e em síntese, a opinião do Tribunal de Segunda Instância.

Será tal entendimento de censurar?

Decididamente, não vemos como.

Admite-se que de outro teor poderiam ser as observações no Acórdão recorrido tecidas sobre a validade do “Termo de Compromisso” datado de 10.01.2001, (referido na “matéria de facto” e que, infelizmente, deu lugar a quase “20 anos de incerteza”).

Porém, tal não retira mérito ao Acórdão prolatado no que toca ao juízo aí efectuado quanto ao “pressuposto” enunciado no aludido n.° 2 do art. 86°, já que, a “decisão da extinção” do referido procedimento, como se tentará demonstrar, constitui a solução que, em harmonia com o regime legal aplicável, melhor assegura o “interesse público”.

Com efeito, atenta à “localização” e “áreas” dos terrenos cuja troca estava (inicialmente) projectada – e cremos nós que o mesmo sucederá a qualquer homem médio minimamente atento – apresenta-se-nos evidente e manifesto que a “proporção” (e razoabilidade) pela dita norma pretendida assegurar estava longe de (poder) ser alcançada.

Na verdade, e como – bem – nota o Exmo. Representante do Ministério Público no seu Parecer, inegável é que “constitui um facto notório o de que 53 000 m2 de terreno para construção urbana na zona do Cotai têm um valor muito superior, várias vezes superior até, ao dobro do valor de 3 000 m2 de terreno na Vila da Taipa”.

E, perante esta “realidade”, manifesto é que não se pode acolher a pretensão da ora recorrente.

Aliás, é mesmo de dizer que a “diferença é tanta” que “entra pelos olhos …”, (muito) mal se mostrando até de compreender a situação e, ainda menos, a manifestada insatisfação da ora recorrente, cabendo, a propósito, mencionar, que à “sombra” do aludido (mero) “Termo de Compromisso”, (e pouco tempo após a sua outorga, logo em 2002), à ora recorrente foi possível tornar-se “benfeitora”, cedendo uma parcela com 99.000 m2 do lote de terreno cuja troca apenas estava projectada a uma outra sociedade – e pela qual terá, segundo relatório do C.C.A.C. recebido HKD$500.000.000,00, (cfr., “Relatório de investigação sobre o caso da permuta do terreno da Fabrica de Panchões Iec Long”, in “ccac.org.mo”) – o que não deixa de tornar ainda mais evidente a manifesta irrazoabilidade do acordado.

E dito isto, natural se nos apresenta de concluir que a solução no Acórdão recorrido alcançada se apresenta como a mais adequada, pois que se mostra patente que a “decisão administrativa” em questão, (embora, infelizmente, tardia), limitou-se a dar boa execução (prático-jurídica) ao legalmente consagrado “princípio da proporção de valores” dos terrenos objecto da projectada troca, em objectiva prossecução e defesa do interesse público, não se vislumbrando, com tal decisão, nenhum restício sequer de ofensa ou colisão com qualquer “princípio de direito administrativo” ou de “abuso de direito” como pela recorrente vem alegado.

De facto, e sendo de se entender como totalmente inadequada e descabida qualquer consideração no sentido de que legalmente “vinculada” ao dito “Termo de Compromisso” estava a Administração, (como que em estado de “sujeição”, sem qualquer margem de manobra), como dizer-se então que com a decisão tomada se afectou qualquer direito ou interesse da ora recorrente, se a mesma – note-se – mantém, na íntegra, o que no momento da sua outorga lhe pertencia?

Pelo contrário, apresenta-se-nos (antes) de considerar que o acto administrativo que declarou a aludida extinção do procedimento em questão é que foi praticado no exercício de um “poder vinculado”, pois que evidente sendo que a norma do art. 86°, n.° 2 da Lei de Terras não permitia a concretização da projectada troca de terrenos, necessária e natural era a solução a adoptar, ou seja, da dita “extinção do procedimento”.

Neste contexto – como de forma acertada se considera no já referido Parecer do Ministério Público – “é evidente que não há lugar a falar de abuso de direito nem de violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança, justamente porque, como bem decidiu o Tribunal a quo, está em causa uma actuação administrativa vinculada e aí, como se sabe, nem o abuso de direito nem a violação dos princípios gerais da actuação administrativa revestem relevância como eventuais fundamentos de anulação do acto administrativo”.

Reconhece-se, que “anos de incerteza”, podem-se traduzir em eventuais “danos” ou “custos patrimoniais”.

Porém, e como da “factualidade” atrás retratada se pode retirar, tal eventualidade não foi dada como “adquirida”, e, nesta conformidade, adequado não se mostra de se ficcionar qualquer tipo de prejuízos para efeitos de ponderação e decisão no âmbito da presente lide recursória.

Dest’arte, e apreciadas se nos apresentando todas as questões a decidir, vista está a solução para o presente recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça de 10 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 03 de Fevereiro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

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