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Processo nº 192/2020 Data: 03.02.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Pedido de concessão por arrendamento de terreno.
Indeferimento (tácito).
Princípios de direito administrativo.



SUMÁRIO

1. Se a “troca” efectuada entre a Administração e um particular tinha tão só como objecto “duas moradias”, evidente se apresenta que ao particular não assiste nenhum “direito” à concessão por arrendamento, e sem concurso público, do terreno onde se encontra implantada a moradia que recebeu (na acordada troca).

2. Assim, o indeferimento (tácito) de um pedido de concessão como o antes referido, não faz incorrer a Administração em violação de qualquer princípio de direito administrativo.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 192/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, (甲), com os sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância – na parte que agora releva – do indeferimento tácito do seu pedido de concessão por arrendamento e com dispensa de concurso público de 1 terreno com a área de 81m2, situado na ilha de Coloane, na Estrada de Hác Sá, n.° 2, melhor identificado nos autos; (cfr., fls. 2 a 20 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 09.07.2020, (Proc. n.° 143/2013), negando provimento ao recurso; (cfr., fls. 331 a 349-v).

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Do assim decidido, traz a recorrente o presente recurso, onde, em alegações, produz as seguintes conclusões:

“1. Na petição inicial (sic.), a recorrente sustentou que, o indeferimento tácito do recorrido padece de vários vícios, incluindo a violação dos princípios fundamentais da legalidade, da igualdade, da justiça e da boa fé, etc., pediu aos Juízes do TSI ordenar o recorrido a conceder à recorrente o terreno em causa por arrendamento e com dispensa de concurso público, mas o TSI negou o provimento do recurso.
2. O TSI entende que o indeferimento tácito do recorrido não viola o princípio da legalidade.
3. Na altura, para executar a obra de alargamento da Estrada de Hác-Sá, com fundamento em interesse público, o Governo de Macau convidou a recorrente para trocar o prédio n.º 31 de que a recorrente era a proprietária legal pelo prédio n.º 2, a recorrente concordou e assinou o título de troca de prédios.
4. Todavia, o referido título de troca de prédios não satisfaz a formalidade legal exigida pela Conservatória do Registo Predial, fazendo com que, até hoje, a recorrente não consiga fazer o registo predial do prédio n.º 2, assim sendo, o seu direito de propriedade sobre o prédio n.º 2 não seja oponível a terceiro.
5. Mesmo que, posteriormente, fosse declarada a aquisição por usucapião da propriedade do prédio n.º 2 pela recorrente, não foi atribuído um número novo de descrição ao terreno do prédio n.º 2, só foi feito o registo provisório por dúvidas.
6. Por outro lado, a concessão do terreno em que se situa o prédio n.º 2 já foi declarada caducada, o terreno em causa tornou-se em terreno do Estado, a recorrente não pode adquirir por usucapião a propriedade do prédio n.º 2, até encara o riso de que o prédio n.º 2 se declara perdido a favor da RAEM e ela não tem direito a qualquer indemnização ou reparação.
7. A única solução consiste em concessão por arrendamento do terreno em causa pelo recorrido à recorrente, isso constitui o acto de reforma previsto pelo art.º 126.º do Código do Procedimento Administrativo, visando reparar o acto vicioso praticado pela Administração no momento de troca dos prédios, para satisfazer a devida formalidade legal, concluir legalmente o procedimento de troca dos prédios e produzir os devidos efeitos jurídicos e registais, deve ser qualificado como acto vinculado, no entanto, o seu indeferimento tácito do recorrido viola o princípio da legalidade.
8. O TSI entende que o recorrido não viola o princípio da boa fé.
9. Quando a Administração propôs à recorrente a troca dos prédios, a recorrente acreditava que o acto da Administração satisfizesse as disposições legais com certeza, acreditava fundamentadamente e esperava que poderia adquirir legalmente o direito de propriedade do prédio n.º 2 por procedimento de troca de prédios promovido pela Administração e, por conseguinte, fazer o registo predial e ser a proprietária legal e registada do prédio n.º 2.
10. Entretanto, por negligência da Administração, o referido título de troca de prédios não satisfaz as exigências da Conservatória do Registo Predial, até hoje a recorrente não pode fazer o registo predial do prédio n.º 2, não é registada como proprietária legal do prédio n.º 2.
11. E depois, acreditando que o acórdão iria ser efectivamente excutado e esperando que o acórdão seja suficiente para servir como título do registo predial, a recorrente recebeu o acórdão favorável sobre a adquirição por usucapião do prédio n.º 2, no entanto, ainda não pode fazer o registo predial.
12. Por vários pareceres (n.º 191/DSODEP/2009 e n.º 051/DODEP/2013), a DSSOPT propôs conceder por arrendamento o terreno em causa à recorrente.
13. Durante tantos anos de negociação entre a recorrente e a Administração, e em face de todos os pareceres dos órgãos de todas as fases, foi gerada suficientemente a expectativa razoável de ser concedido o terreno em causa e fazer o registo predial do prédio n.º 2.
14. Contudo, o TSI deu assente que o acto da Administração não violou os princípios da boa fé e da justiça, previstos pelo art.º 8.º e 7.º do Código do Procedimento Administrativo, meramente com fundamento em que “a requerente nunca forneceu qualquer prova ou certidão da manifestação ou compromisso do Governo sobre a concessão do terreno”.
15. A Administração adquiriu o prédio n.º 31 que pertenceu à recorrente com fundamento em interesse público e demoliu-o, porém, por negligência, provocou que a recorrente perdeu o seu património privado e não pode fazer o registo predial do prédio n.º 2 oferecido pela Administração, portanto, o acto da Administração obviamente violou os princípios da boa fé e da justiça, lesou o direito de património privado da recorrente, bem como a sua confiança e a expectativa razoável protegidas pela lei.
16. O TSI entende que o recorrido não viola os princípios da igualdade e da justiça.
17. A recorrente mencionou na alegação superveniente que, em 13 de Novembro de 1998, o Tribunal de Competência Genérica proferiu um acórdão, que declarou o Concelho das Ilhas (CMI) como o proprietário da zona útil do prédio com a área de 464 m2, sito em Largo da Cordoaria de Coloane, separando esse prédio com o prédio concedido ao concessionário por escritura pública de 12 de Junho de 1916 (descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX).
18. Para executar o referido acórdão, por despacho n.º 24/2009 do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, a Administração alterou a escritura pública de 12 de Junho de 1916, separou do terreno original uma parcela em que se situava a zona útil do respectivo prédio, e publicou o assunto no B.O. em 17 de Junho de 2009.
19. Em face da situação e pedido semelhantes, tendo a Administração proferido uma decisão favorável no passado, proferiu uma decisão contrariada e desfavorável no processo da recorrente. Mesmo que essa decisão diferente à proferida no passado seja acto vinculado, viola o princípio da igualdade, deve proferir uma decisão igual à proferida no passado.
20. No fim, o TSI entende que não pode conceder o terreno em causa com dispensa de concurso público, com fundamento em que não está conforme a qualquer situação prevista pelo art.º 56.º da Lei n.º 6/80/M (velha Lei de Terras).
21. De facto, o TSI não considerou a situação de dispensa facultativa prevista pelo art.º 57.º n.º 1 da mesma Lei: “1. O concurso público pode ser dispensado quando a concessão se destine: a) A empreendimentos de reconhecido interesse para o desenvolvimento do Território…”.
22. Na altura, a recorrente trocou o prédio n.º 31.º pelo prédio n.º 2 para o desenvolvimento do Território, já perdeu o seu próprio património privado, está obviamente preenchido o pressuposto de dispensa de concurso público, se agora a recorrente só puder fazer o registo predial que devia receber no momento de troca dos prédios através de concurso público para a concessão do terreno em causa, obviamente não parece razoável.
23. Pelo que, o recorrido deve conceder à recorrente o terreno em causa com dispensa de concurso público.
24. Cumpre reiterar que, a concessão por arrendamento e com dispensa de concurso público do terreno em causa à recorrente só constitui a reforma do acto administrativo praticado no passado, ou seja a atribuição da devida formalidade legal ao título de troca de prédios, de forma a proporcionar à recorrente exercer o direito de adquirição do registo predial”; (cfr., fls. 358 a 364-v e pág. 15 a 20 do Apenso).

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Na sequência das contra-alegações da entidade recorrida pugnando pela improcedência do recurso, (cfr., fls. 369 a 377), vieram os autos a este Tribunal, onde, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Nos termos previstos na norma do artigo 157.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), vem o Ministério Público pronunciar-se nos termos que seguem:
1.
Inconformada com a decisão do Tribunal de Segunda Instância proferida nos presentes autos a fls. 331 a 349 que julgou improcedente o recurso contencioso que interpôs do acto do Chefe do Executivo que indeferiu tacitamente o requerimento que apresentou no sentido de lhe ser concedido por arrendamento e com dispensa de concurso público um terreno com a área de 81 m2, situado na ilha de Coloane, veio a A, melhor identificada nos autos, interpor o presente recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância.
Alega, no essencial e em síntese, que o Tribunal a quo:
(i) errou ao decidir que não ocorre violação do princípio da legalidade por parte do acto administrativo recorrido;
(ii) errou ao decidir que a Administração não violou o princípio da boa fé previsto no artigo 8.º do CPA;
(iii) errou ao decidir que o acto recorrido não viloa os princípios da igualdade e da justiça;
(iv) errou ao considerar que o terreno não podia ser concedido com dispensa de concurso público.
2.
2.1.
A primeira questão que é colocada pela Recorrente é a de saber se a douta decisão recorrida errou quando considerou que a Administração não incorreu em violação do princípio da legalidade.
Parece-nos que a Recorrente não tem razão.
Decorre do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos».
De acordo com a boa doutrina, em relação às decisões concretas da Administração, é dizer, aos actos administrativos, do princípio da legalidade «decorre uma reserva absoluta de norma jurídica e, portanto, um princípio de precedência directa ou indirecta de acto legislativo. Isto significa que só podem ser tomadas decisões de autoridade correspondentes a tipos previstos em normas de Direito Administrativo: seja directamente em actos legislativos, seja em regulamentos, emanados pela própria Administração (…)» (assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015, p. 42).
Sendo isto assim, não vemos nem vem alegado em que medida a actuação da Administração que, recorde-se, é uma actuação omissiva violou ou poderia violar o princípio da legalidade.
Cremos, aliás, que a Recorrente labora, a este propósito, num equívoco, ao confundir a violação do princípio da legalidade cujo alcance é aquele que referimos, com a violação de normas legais ou vinculações jurídicas de outra natureza integrativas do chamado bloco de legalidade que, a existir, consubstanciaria violação de lei que, no entanto, não se mostra minimamente concretizada.
Deve, pois, em nosso entender, improceder o primeiro dos fundamentos do recurso.
2.2.
A segunda questão suscitada pela Recorrente prende-se com a alegada violação do princípio da boa fé consagrado no artigo 8.º do CPA por parte da Entidade Recorrida quando esta indeferiu, tacitamente, o seu requerimento por si apresentado.
Cremos que, também aqui, sem razão.
Decorre do n.º 1 do artigo 8.º do CPA que «no exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé». De acordo com a Recorrente, a Administração teria quebrado as suas expectativas relativamente a um determinado comportamento que considera que seria devido no sentido de que tudo seria feito para permitir-lhe legalizar a titularidade do imóvel que lhe foi entregue por troca com um outro imóvel.
Está em causa, portanto, a boa fé na dimensão da tutela da confiança.
De acordo com a lição que se colhe na doutrina comparada, são cinco os pressupostos jurídicos cuja verificação é necessária para que se possa tutelar a confiança. A saber: (i) a atuação de um sujeito de direito que crie a confiança quer na manutenção da situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; (ii) a justificação da situação de confiança do destinatário da actuação de outrem, em face da presença de elementos susceptíveis de legitimar essa convicção, não só em abstracto mas em concreto; (iii) a existência dum investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; (iv) o nexo de causalidade entre a atuação geradora de confiança e a situação de confiança e entre esta e o investimento de confiança; (v) a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou (assim, MARCELO FEBELO DE SOUSA – ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2.ª edição, Lisboa, 2006, p. 220).
Como é bom de ver, estes pressupostos não estão verificados no caso em apreço.
Desde logo porque não vem alegado por parte da Recorrente nenhum investimento de confiança que por si tenha sido efectuado. Depois, e fundamentalmente, porque a afirmação de uma eventual violação da confiança emergiria, de acordo com a alegação da Recorrente, do facto de a Administração ter efectuado com a Recorrente uma troca de imóveis que, contra as expectativas desta, não estaria em conformidade com a lei e relativamente à qual, portanto, justamente em observância dos ditames da boa fé, a Administração estaria, agora, obrigada a praticar os actos necessários tendentes à respectiva regularização.
A verdade, no entanto, é que esse pressuposto não está demonstrado. A Recorrente não demonstra que entre si e a Administração teve lugar uma efectiva permuta ou troca de terrenos nos termos previstos nos artigos 76.º e seguintes da antiga Lei de Terras (Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho). Isto pela simples razão de que a Recorrente não logrou alegar consistentemente, mas apenas de forma patentemente conclusiva, e também não provou que o terreno onde estava implantada a moradia n.º 31 a que se refere o documento de fls. 45 dos presentes autos lhe pertencesse ou, sequer, que lhe estivesse concedido. Note-se, a este último propósito, que, bem pode ter acontecido que a Recorrente estivesse a ocupar o terreno onde estava implantada a moradia n.º 31 a título precário e nesse caso, nenhuma expectativa podia ter relativamente a uma concessão, no futuro, do terreno onde estava implantada a moradia n.º 2 que lhe foi dada em troca da moradia n.º 31. Por ser assim é que a formalização da dita «troca» foi feita da forma singela que o documento de fls. 45 bem atesta. Mesmo a referência que nesse documento é feita ao facto de a moradia n.º 31 ser «propriedade» da Recorrente deve ser entendida com particular cautela, pois não é seguro que a expressão «propriedade» tenha, no particular contexto em causa, um conteúdo juridicamente preciso (acrescente-se que aquilo que ficou provado na sentença proferida na acção que correu termos no Tribunal Judicial de Base sob o n.º CV1-03-0023-CAO é inoponível em relação à RAEM porque esta não foi parte nessa causa).
No nosso modesto modo de ver as coisas, cremos seria essencial, para sustentar a alegada violação do princípio da tutela da confiança por parte da Administração, que se demonstrasse que esta beneficiou de um terreno que era propriedade plena da Recorrente e que assumiu comportamentos traduzidos em actuações objectivas de que, em troca lhe concederia por arrendamento o terreno onde está implantada a moradia n.º 2 e que, contra as legítimas expectativas desta, a Administração não lhe deu senão um edifício implantado num terreno para cuja ocupação falta à Recorrente um título juridicamente relevante, nomeadamente uma concessão por arrendamento. E isso não está demonstrado.
O que também nos parece seguro é que este recurso contencioso não pode servir para, através dele, a Recorrente vir a obter mais do que aquilo alguma vez teve.
É por isso que propendemos a considerar que também improcede este fundamento do recurso.
2.3.
A terceira questão suscitada pela Recorrente é a do erro de julgamento do acórdão recorrido por ter decidido que o indeferimento tácito recorrido não enferma de violação dos princípios da igualdade e da justiça.
Em nosso entender, também este fundamento não procede.
Desde logo, pelas razões que antes referimos em relação à alegada violação do princípio da boa fé.
Depois, porque a Recorrente não alegou quaisquer factos dos quais resulte que ocorreu a violação do princípio da igualdade, nomeadamente factos demonstrativos de que a situação que invoca é idêntica à sua e merece igual tratamento.
Além disso, de acordo com a que nos parece ser a melhor doutrina, o princípio da justiça constitui «uma última ratio da subordinação da Administração ao Direito, permitindo invalidar aqueles actos que, não cabendo em nenhuma das condicionantes jurídicas expressas da actividade administrativa, constituem, no entanto, uma afronta intolerável aos valores elementares da Ordem Jurídica, sobretudo os plasmados em normas respeitantes à integridade e dignidade das pessoas, à sai boa fé e confiança no direito» (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA – PEDRO COSTA GONÇALVES – J. PACHECO AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 106), o que, no caso, manifestamente, não sucede.
2.4.
A última questão que importa apreciar é a do alegado erro da decisão recorrida por ter considerado que, no caso, a concessão por arrendamento do terreno que foi requerida pela Recorrente tinha de ser antecedida de concurso público.
Neste ponto, salvo o devido respeito que é muito, cremos que o Tribunal recorrido não decidiu bem.
Parece-nos que, a admitir-se que a Administração estava vinculada a praticar o acto pretendido pela Recorrida, ou seja a conceder-lhe por arrendamento o terreno em causa, resulta deslocada a exigência de submeter essa concessão a concurso público. Note-se que a Recorrente não vem pedir, sem mais, uma concessão por arrendamento de um terreno. Se assim fosse, seria de exigir, em princípio, que tal concessão fosse antecedida de concurso público. Mas não é disso que se trata. A Recorrente vem pedir a concessão por considerar que a Administração está obrigada, pelas razões que invoca e que vimos serem improcedentes, a conceder-lhe um terreno e como é evidente, se assim fosse, não poderia haver lugar a concurso público.
3.
Pelo exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público”; (cfr., fls. 390 a 393-v).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância deu (e elencou) como “provada” a seguinte matéria de facto:

“Através de escritura pública de 30.10.1959, lavrada na antiga Repartição Provincial dos Serviços de Fazendo e Contabilidade e ao abrigo do regulamento para a Concessão de Terrenos na Colónia de Macau, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, de 3 de Fevereiro de 1940, foi concedido por arrendamento um terreno com a área de 3459,30m2, situado na ilha de Coloane, na Povoação de Hac-Sa, a favor de B, para fins agrícolas, e que ficou descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX a fls. 18v do livro BXX.
O prazo de arrendamento desta concessão expirou em 29.10.1984.
Em 17.12.1980, foi entregue à recorrente pelo então Governo de Macau um imóvel, composto por uma moradia e alpendre, como forma de “troca” pelo imóvel n.º 31 que a mesma possuía junto à Povoação de Hac-Sa em Coloane, em virtude da sua demolição por utilidade pública.
Por sentença judicial transitada em julgado em 14.11.2006, proferida no âmbito dos autos de Acção Ordinária n.º CV1-03-0023-CAO, que correram termos pelo 1º Juízo Cível do TJB, a recorrente foi declarada, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, titular do direito de propriedade sobre o imóvel acima referido, com a área total de 81m2, implantado no mencionado terreno com a área de 3459,30m2 e descrito sob o n.º XXXXX.
Por força da referida sentença, mediante a apresentação n.º 135, de 28.12.2006, a referida parcela de terreno foi desanexada da descrição n.º XXXXX e passou a ser descrita na CRP sob o n.º XXXXX e o direito inscrito sob o n.º XXXXXXG, tendo a inscrição sido lavrada provisoriamente por dúvidas pelo facto de a recorrente não possuir qualquer título comprovativo da propriedade ou do direito resultante da concessão do solo no qual se encontra implantada a construção.
Por requerimento de 4.10.2012, a recorrente solicitou ao Chefe do Executivo a concessão por arrendamento, e com dispensa de concurso público, do identificado terreno com a área total de 81m2.
Não foi proferida qualquer decisão sobre o tal requerimento.
A 28.2.2013, a recorrente interpôs recurso contencioso, pedindo a declaração de caducidade da concessão por arrendamento titulada pela escritura de 30.10.1959, a que se refere a inscrição n.º XXXX, a fls. 156 verso do livro FX, apenas relativamente à parcela de terreno onde está implantado o imóvel com o número 2, sito na entrada da Povoação de Hac-Sa, Coloane, composto por moradia e alpendre, com a área de 81m2, o qual está implantado no terreno junto à entrada de Hac-Sa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX; bem como a concessão por arrendamento à recorrente, pelo prazo de 25 anos, com dispensa de concurso público e de pagamento de prémio, do terreno acima identificado onde está implantado o imóvel com o n.º 2 da Estrada de Hac-Sa, sito na Ilha de Coloane, com a área de 81m2.
Por despacho do Chefe do Executivo de 8.11.2016, tornado público pelo despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, publicado no B.O. da RAEM n.º 47, II Série, de 23.11.2016, foi declarada a caducidade da concessão do terreno com a área de 3459,30m2, por decurso do prazo de vigência.
Em virtude da caducidade da inscrição provisória, por dúvidas, foi inutilizada a descrição n.º XXXXX da CRP.
Por Acórdão do TUI, de 14.6.2018, foi confirmado o Acórdão proferido pelo TSI que, por sua vez, manteve a caducidade da concessão declarada por despacho do Chefe do Executivo de 8.11.2016.
Até ao momento, ainda não existe um plano urbanístico para a zona onde se insere a moradia da recorrente”; (cfr., fls. 343 a 344-v).

Do direito

3. O presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que negou provimento ao anterior recurso contencioso da recorrente onde impugnava – na parte que agora interessa – o indeferimento tácito do seu pedido de concessão por arrendamento e com dispensa de concurso público de 1 terreno com a área de 81 m2, situado na ilha de Coloane, na Estrada de Hác Sá, n.° 2.

Sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, não se mostra de reconhecer razão à ora recorrente, (que, tanto quanto nos parece, ou não alcança, com a necessária clareza, a – chamemos – “situação” em que se encontra, ou – e para não dizer outra coisa – está profundamente distraída…).

Aliás, o douto Parecer do Ministério Público, com a clareza e objectividade que se mostra de aqui salientar, responde, de forma cabal e adequada, a todos os pela recorrente considerados “vícios” que inquinam a decisão agora recorrida, e que, em boa verdade, são (exactamente) os mesmos que, em sede do seu anterior recurso contencioso assacava ao já referido “indeferimento tácito do seu pedido de concessão”.

Verificando-se que mais não faz a recorrente que (re-)direccionar agora os mesmos vícios ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, e tendo-se presente o “(verdadeiro) motivo” que levou o Colectivo de Juízes a quo a decidir da forma que decidiu, muito não se mostra de dizer para se demonstrar da sua total falta de razão.

Vejamos.

Em abreviada síntese que se nos mostra adequada, todo este “processo” – que infelizmente, já vai (demasiado) longo – assenta na pretensão da ora recorrente em se tornar a beneficiária de uma (reclamada) “concessão por arrendamento, e com dispensa de concurso público”, do terreno já identificado nos autos, (com o referido n.° 2), onde se encontra implantado um “imóvel” – uma moradia – que recebeu por troca com o então Governo de Macau por uma outra – moradia – que possuía, (n.° 31), e em relação à qual, por sentença proferida na acção ordinária n.° CV1-03-0023-CAO do Tribunal Judicial de Base, foi declarada proprietária.

E como bem salienta o Acórdão recorrido, (citando o anterior Parecer do Ministério Público), se a (própria) “guia de entrega” elaborada e pela própria recorrente assinada no âmbito da dita “troca” se refere, expressa e unicamente, à “entrega da moradia n.° 2 (…) em troca da moradia n.° 31”, (cfr., doc. n.° 5, pela recorrente junto com a sua petição de recurso contencioso; a fls. 45), não se vislumbra como reconhecer razão à pretensão da ora recorrente.

De facto, não incluindo a aludida “troca”, os (respectivos) “terrenos” onde estavam os referidos imóveis implantados, como concluir que com o indeferimento (tácito) ao seu pedido de concessão do já aludido terreno – onde está implantada a moradia n.° 2 – se incorreu em violação dos invocados princípios da “legalidade”, “boa fé”, “igualdade” e “justiça”?

Estaria a Administração de Macau “obrigada” – por Lei, contrato ou outro meio (ou motivo) legal – a lhe conceder, por arrendamento, e sem concurso público, o terreno onde se encontra a dita moradia n.° 2 (que lhe entregou no âmbito da dita “troca de moradias”)?

Ora, (como no Acórdão recorrido se explicitou, e no Parecer do Ministério Público igualmente se demonstrou), a resposta é, necessariamente, (e como não podia deixar de ser), negativa.

É claro que (também) podia a Administração acolher o pedido pela recorrente apresentado.

Porém, a proceder desta forma, estaria a exercer um “poder administrativo discricionário”, com ampla margem de liberdade, e, desta forma, (tão só) a ela cabendo decidir pela “concessão”, ou “não concessão”, do pretendido terreno.

E, nesta conformidade, como falar-se em violação ou desrespeito dos aludidos “princípios”?

Como se deixou referido, e atento, especialmente, o estatuído nos art°s 3°, 5°, 8° do C.P.A. que consagram os invocados princípios, e atento o seu sentido e alcance, apresenta-se-nos evidente a resposta, até porque nem a própria recorrente o explicita “como”, “em que termos”, “de que forma” e “em que medida” se verificam as aludidas ofensas, bastando uma mera leitura ao referido Parecer para se concluir do que se nos apresenta ser o acerto do que se deixou exposto, e, assim, da solução a adoptar em sede da presente lide recursória.

–– Uma última “nota” se considera de fazer, (para se evitar qualquer – eventual – dúvida).

Tem a ver com o invocada violação do “princípio da boa fé”.

Ora, nos termos do art. 8° do C.P.A.:

“1. No exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé.
2. No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial:
a) Da confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa;
b) Do objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.

E, fundamentando o seu ponto de vista diz a recorrente o que consta dos “pontos 9° a 15° das suas conclusões”; (cfr., pág. 3 a 4 do presente arresto).

Resulta daí que a recorrente considera que a referida violação terá ocorrido por “negligência da Administração” e como consequência de “anos de negociação com a Administração e em face dos pareceres elaborados”.

Porém, (e como se deixou consignado), outro é o nosso ponto de vista.

Quanto à assacada “negligência”, nada se mostra “provado”, e, como já se referiu, a “troca” acordada tinha, tão só, como objecto, as “moradias” implantadas nos respectivos terrenos, (n.° 31 e n.° 2).

E, assim, nenhuma dúvida havendo que não incluíam os ditos “terrenos”, nenhuma “negligência” ou falta da Administração nos parece que se pode considerar.

No que aos “anos de negociação” e “pareceres”, a mesma se nos apresenta que deve ser a solução.

Não estando a Administração vinculada a deferir a pretensão da recorrente – em obter a concessão do terreno – óbvio é que nenhuma relevância tem os referidos pareceres, que mais não são do que “elementos informativos”, (ou “opinativos”), nenhuma consequência se podendo também extrair do tempo entretanto decorrido em sede do procedimento administrativo que teve lugar e que culminou com o indeferimento tácito objecto do recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância e que, com o Acórdão recorrido, foi confirmado.

Dest’arte, e outra questão a apreciar não parecendo haver, resta decidir como segue.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça de 10 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 03 de Fevereiro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
Proc. 192/2020 Pág. 20


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