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Processo n.º 1160/2020 Data do acórdão: 2021-2-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– multas contravencionais
– multas penais
– cúmulo matemático de multas contravencionais
– pagamento voluntário de multas antes do julgamento
– art.o 92.o, n.o 1, do Código de Processo do Trabalho
– art.o 96.o, n.o 1, do Código de Processo do Trabalho
– art.o 124.o, n.o 1, do Código Penal
S U M Á R I O

1. A multas contravencionais, não se pode aplicar as regras do cúmulo jurídico das penas do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do Código Penal, porque a operação de cúmulo jurídico de multas contravencionais irá comprometer, ilogicamente, a lógica do mecanismo de pagamento voluntário de multas contravencionais, cujas regras (vertidas inclusivamente nos art.os 92.o, n.o 1, e 96.o, n.o 1, do Código de Processo do Trabalho, à luz das quais cada multa contravencional, no caso de pagamento voluntário antes da remessa do processo para o tribunal, ou até ao início da audiência de julgamento em tribunal, fica liquidada no seu montante mínimo legal) devem ser consideradas como constituindo “disposição em contrário” ressalvada na parte inicial do n.o 1 do art.o 124.o do Código Penal, pois caso contrário nenhuma pessoa arguida contravencionalmente optaria por pagar voluntariamente as multas contravencionais antes da remessa do processo para o tribunal ou nem mesmo até ao início da audiência de julgamento em tribunal, já que sairia ela quase sempre mais beneficiada da audiência de julgamento, se lhe fosse possível o cúmulo jurídico de multas contravencionais.
2. A multa contravencional e a multa penal são distintas no tocante à hipótese do seu pagamento antes da audiência de julgamento: em multas penais, não há figura de pagamento voluntário antes do julgamento e condenação pelo tribunal penal (cfr. o que se retira, a contrario sensu, da norma do n.o 1 do art.o 470.o do Código de Processo Penal), enquanto já existe essa figura em processo contravencional, nos termos acima vistos.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1160/2020
(Autos de recurso em processo penal)
Recorrente (arguido transgressor): B (B)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 307 a 310 do Processo de Contravenção Laboral n.º LB1-20-0060-LCT do Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base (TJB) que o condenou pela prática de uma contravenção p. e p. pelos art.os 75.o, n.o 1, e 85.o, n.o 3, alínea 4), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (Lei das relações de trabalho, doravante abreviada como LRT), em seis mil patacas de multa, e ainda de uma contravenção p. e p. pelos art.os 43.o, n.o 2, e 85.o, n.o 3, alínea 2), da mesma Lei, em sete mil patacas de multa, e, em cúmulo jurídico dessas duas multas, finalmente na multa única de dez mil patacas, para além de ficar condenado a pagar MOP125.520,00 (cento e vinte e cinco mil, quinhentas e vinte patacas) à trabalhadora ofendida identificada no dispositivo da mesma sentença, com juros legais contados desde a data da sentença até integral e efectivo pagamento, veio o arguido transgressor chamado B, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando o excesso cometido pelo Tribunal sentenciador na medida concreta da pena e a existência de erro notório na apreciação da prova no atinente à matéria de arbitramento oficioso da indemnização, a fim de rogar que passasse a ser condenado em multas mínimas de cinco mil patacas por cada uma das duas contravenções, e, em novo cúmulo jurídico, em multa final única de sete mil patacas, e que o montante indemnizatório civil arbitrado oficiosamente na sentença passasse a ser em quantia não superior a MOP100.720,00 (cfr., em mais detalhes, o teor da motivação do recurso apresentada a fls. 327 a 329 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 333 a 334) no sentido de improcedência do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 342 a 343v), pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontrou proferida a fls. 307 a 310, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica, probatória e jurídica) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da leitura da motivação do recurso, resulta que estão colocadas duas questões pelo arguido, quais sejam, o alegado excesso na medida da pena e o suscitado erro notório na apreciação da prova no tocante à matéria de arbitramento oficioso da indemnização.
Por uma questão de lógica das coisas, é de conhecer primeiro do vício de erro de apreciação da prova:
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto com pertinência ao arbitramento oficioso da indemnização.
Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, é de respeitá-lo, como fundamentação fáctica do presente acórdão.
Improcede, pois, o arguido vício de erro notório na apreciação da prova, com consequente manutenção da decisão de arbitamento oficioso da indemnização, nos seus precisos termos, sem mais indagação por desnecessária.
E agora sobre o alegado excesso na medida da pena:
Cada uma duas duas contravenções laborais por que vinha condenado o recorrente em primeira instância é igualmente punível com multa de cinco a dez mil patacas.
Vistas todas as circunstâncias fácticas já dadas por provadas na sentença recorrida, com pertinência à medida concreta, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha praticado injustiça notória na fixação do montante concreto das duas multas contravencionais em causa, pelo que é de respeitar o julgado da Primeira Instância nesta parte.
Quanto à pretendida redução da pena única final de multa, isso é manifestamente inviável, por seguintes razões jurídicas, materialmente já expendidas no acórdão do TSI, de 8 de Fevereiro de 2018, no Processo n.o 823/2017:
A multas contravencionais, não se pode aplicar as regras do cúmulo jurídico das penas do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP), porque a operação de cúmulo jurídico de multas contravencionais irá comprometer, ilogicamente, a lógica do consabido mecanismo de pagamento voluntário de multas contravencionais, cujas regras (vertidas inclusivamente nos art.os 92.o, n.o 1, e 96.o, n.o 1, do Código de Processo do Trabalho vigente, à luz das quais cada multa contravencional, no caso de pagamento voluntário antes da remessa do processo para o tribunal, ou até ao início da audiência de julgamento em tribunal, fica liquidada no seu montante mínimo legal) devem ser consideradas como constituindo “disposição em contrário” ressalvada na parte inicial da norma do n.o 1 do art.o 124.o do CP, pois caso contrário nenhuma pessoa arguida contravencionalmente optaria por pagar voluntariamente as multas contravencionais antes da remessa do processo para o tribunal ou nem mesmo até ao início da audiência de julgamento em tribunal, já que sairia ela quase sempre mais “beneficiada” da audiência de julgamento, se lhe fosse possível a operação de cúmulo jurídico de multas a serem aplicadas judicialmente a suas contravenções cometidas.
Por aí fica demonstrado que o cúmulo jurídico destrói naturalmente o incentivo que o Legislador pretendeu dar a toda a pessoa arguida contravencionalmente para pagamento voluntário de multa.
É que a multa contravencional e a multa penal são distintas no tocante à hipótese do seu pagamento antes da audiência de julgamento: em multas penais, não há figura de pagamento voluntário antes do julgamento e condenação pelo tribunal penal (cfr. o que se retira, a contrario sensu, da norma do n.o 1 do art.o 470.o do CPP), enquanto já existe essa figura em processo contravencional, nos termos já atrás vistos.
Por isso, no caso dos autos, nem deveria ter sido feito o cúmulo jurídico das duas multas contravencionais fixadas na sentença recorrida, enquanto deveria ser aplicada ao arguido, em cúmulo matémático, a multa total de treze mil patacas (seis mil mais sete mil são treze mil).
Entretanto, por força do princípio da proibição da reforma para pior no caso de recurso interposto pelo arguido (cfr. o art.o 399.o, n.o 1, do CPP), fixa agora mantida a “pena única” de multa de dez mil patacas aplicada na sentença recorrida, e por aí se vê que o arguido acabou por sair beneficiado dessa “pena única” de multa, pelo que não deixa de improceder a sua pretensão de redução da “pena única”.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão à trabalhadora ofendida e à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
Macau, 10 de Fevereiro de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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