Processo n.º 80/2021
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 25 de Fevereiro de 2021
ASSUNTOS:
- Insolvência e os pressupostos necessários
SUMÁRIO:
I – O artigo 1185º fixa os pressupostos de que depende a declaração da insolvência do devedor (não empresário), ou seja, quando o passivo do seu património é superior ao seu activo, o que se traduz na ideia de que, objectivamente, o devedor se encontra impossibilitado de dar cumprimento pontual às suas obrigações vencidas.
II – É de concluir pela verificação do estado de insolvência do Recorrido/Requerido (devedor) quando contra ele e contra a sociedade unipessoal de que ele é o único sócio, estão pendentes dois processo, um deu origem à declaração da falência da referida sociedade unipessoal, outro origina os presentes autos, e, está em causa uma dívida total que atinge o valor de MOP 118,919,765.25 (sem contar os juros moratórios), e ainda por outro lado, das diligências feitas resulta de que o Requerido não tem património suficiente para saldar a dívida em causa. Pelo que, é de declarar o Requerido em estado de insolvência nos termos peticionados.
O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 80/2021
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 25 de Fevereiro de 2021
Recorrente : XXXX (Macau), S.A. (XXXX(澳門)股份有限公司)
Recorrido : A (A)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
XXXX (Macau), S.A. (XXXX(澳門)股份有限公司), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 19/10/2020, que julgou improcedente o pedido da declarar a insolvência do Requerido/Recorrido, dela veio, em 14/12/2020, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 410 a 433, tendo formulado as seguintes conclusões:
I - O OBJECTO DO PRESENTE RECURSO
1. O presente recurso tem por objecto (i) o acórdão proferido pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, no que se refere às respostas dadas aos quesitos 33.º e 38.º da base instrutória; e (ii) a douta sentença, com a qual a Requerente não se conforma.
II - O RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
2. 1. Constituindo objecto do presente recurso a impugnação da decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo no respectivo acórdão, e ao abrigo do disposto no artigo 599.º do CPC vem a Recorrente declarar que a impugnação da decisão de facto incide sobre a resposta dada pelo Tribunal aos quesitos 33.º e 38.º da base instrutória, que foram dados como não provados.
3. Referiam os aludidos quesitos o seguinte:
“33.º
Refira-se também que tanto quanto a Requerente conseguiu apurar, as quotas acima mencionadas não têm qualquer valor.
38.º
Refira-se ainda que, no âmbito da referida execução movida pela YYYY, não foi possível detectar quaisquer outros bens móveis ou imóveis propriedade do Requerido que permitam lograr o ressarcimento, total ou parcial, do crédito da YYYY e da ora Requerente, pelo que é por demais evidente que estão cumpridos os pressupostos estabelecidos pelo n.º 1 do artigo 1185.º do CPC para que o Requerido seja declarado em estado de insolvência.”
4. Na modesta opinião da Recorrente, resulta dos testemunhos produzidos nos Autos e da prova documental junta, que o Requerido não tem bens conhecidos que permitam satisfazer as dívidas que assumiu, e nunca demonstrou qualquer vontade de a satisfazer.
5. Das respostas aos quesitos 14.º e 25.º resulta claramente que o passivo do Requerido ascende a pelo menos MOP 118.919.765,25 (sem contar os juros que entretanto se venceram desde 2016 no caso da YYYY Macau, S.A. e desde 2018 no caso da ora Recorrente) e da resposta dada ao quesito 31.º-A resulta que até à data, nos Autos de Execução que foram movidos pela YYYY para pagamento da quantia de MOP 66,073,376.88, apenas foi possível penhorar o montante de MOP 1.278.009,70, ou seja menos de 10% da dívida que o Requerido tem perante os seus credores.
6. 2. Pelo que, salvo melhor opinião e com o devido respeito, a convicção que não está provado que o património do Requerido é inferior ao seu activo resulta de uma análise superficial da prova carreada aos Autos com o fito de indeferir o pedido de insolvência.
Senão vejamos,
7. Aquilo que se extrai do raciocínio do Tribunal a quo é que o cerne da questão estará nas participações sociais de que o Requerido é titular em várias sociedades comerciais e na alegada não demonstração da insuficiência destas quotas para responder pelo cumprimento das obrigações daquela.
8. As aludidas quotas societárias, são as seguintes:
a. quota no valor de MOP 25,000.00 que o Executado detém na Sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Uni pessoal Limitada;
b. quota no valor de MOP 99,000.00 que o Executado detém na sociedade Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda.;
c. metade da quota no valor de MOP 920.000,00 que o Executado detém na sociedade Grupo de Diversões D Limitada;
9. No entanto, basta ler a primeira página da certidão junta aos Autos pela Requerente relativa ao processo n.º CV1-17 -0001-CEO para se confirmar que aí vem referido que a sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada, onde o Requerido era, como se disse, o único sócio, foi declarada falida, indicando-se inclusivamente o número de processo em que a falência foi decretada (CV3-18-0004-CFI), o que não foi tomado em conta pelo Tribunal a quo.
10. Ademais, da certidão relativa ao processo CV3-18-0004-CFI ora junta ao presente recurso como Doc. n.º 1 resulta cabalmente que a sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada está falida, e assim, de um universo de três sociedades na esfera do Requerido, uma delas não tem confirmadamente qualquer valor (por estar falida).
11. No que toca às outras duas sociedades, refere a sentença recorrida que carece de mais matéria fáctica para comprovar o valor das sociedades e, concomitantemente, o valor da participação social que nelas é detida pelo Requerido, desvalorizando por completo o facto de as sociedades de que o Requerido (que está em fuga) é sócio maioritário e administrador não se deixam citar e não têm qualquer actividade aparente, factos que qualifica como meros indícios.
12. Sempre se dirá que se as sociedades não se deixam citar, não vão ser estas a informar se dispõem ou não de bens, o que desde logo impossibilita qualquer produção de prova a respeito do seu valor sem que a mesma tivesse sido ordenada pelo Tribunal a quo.
13. Por outro lado, o facto de o seu sócio maioritário e administrador ser o Requerido, que também está ausente em parte incerta e nunca manifestou vontade de pagar as suas dívidas (e é sócio de uma sociedade falida) são forte indício de que as sociedades não terão qualquer valor.
14. Por fim, o objecto da sociedade Grupo de Diversões D Limitada consiste em expressões vagas como "entretenimento e investimento", sector que em Macau onde as indústrias do jogo e do imobiliário são fortemente predominantes, não é conhecido por gerar rendimentos avultados.
15. Já a Sociedade Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda. tem como objecto a venda, produção, importação, exportação e fabrico de medicamentos chineses mas nem sequer tem uma sede nem funcionários para receber correspondência não sendo expectável que seja um negócio rentável ou que sequer esteja a laborar.
16. Mais uma vez, a conclusão que qualquer pessoa razoavelmente conhecedora da realidade de Macau retira é que se verifica uma manifesta insuficiência de valor das referidas sociedades.
17. Refira-se também que se as referidas sociedades tivessem uma actividade lucrativa, tal não deixaria de reflectir no saldo das contas bancárias do Requerido; no entanto a verdade é que apenas foi possível penhorar um montante de pouco mais de dois milhões de patacas (que teve de ser dividido com a cônjuge do Requerido.
18. Em suma, são indícios que segundo as regras da experiência apontam para uma forte probabilidade de as referidas sociedades não disporem de património, o que vale por dizer que as quotas aí detidas pelo Requerido, com o valor nominal de MOP 99,000.00 e de MOP 920.000,00, são claramente insuficientes para responder pela suas dívidas, que em 2018, data em que foi requerida a sua insolvência, ascendiam a MOP 118.919.765,25.
19. E apontam também no sentido de haver uma vontade clara de não cooperar e impedir o pagamento das dívidas assumidas perante os credores, e devem ser valorados em conformidade.
20. Refira-se também que o Requerido é casado em comunhão de adquiridos, o que implica que metade de qualquer eventual valor do produto da venda dessas mesmas sociedades seja entregue à cônjuge do Requerido (vide artigo 1191.° do CPC).
21. Nessa medida, seria necessário que duas sociedades sem qualquer actividade aparente, que não se deixam citar, tivessem um património líquido de quase 240 milhões de patacas para que o Requerido não fosse considerado em estado de insolvência, o não é crível, nem é minimamente provável até porque se assim fosse certamente que o Requerido teria negociado o pagamento das suas dívidas com os seus credores, evitando um ataque ao seu património ao invés de fugir de Macau para se furtar ao cumprimento das suas obrigações.
22. Infelizmente, toda esta factualidade não foi apreciada ou tomada sequer em consideração pelo Tribunal a quo.
23.3. Voltemos então à apreciação das considerações feitas na sentença, nomeadamente de que "não vem comprovado que, para além desses bens, não sendo possível apurar outros bens móveis ou imóveis nesse processo".
24. Analisando-se a certidão relativa ao processo CV1-17-0001-CEO, que foi junta pela Requerente consta a fls. 16 da aludida certidão, a CRP responde o seguinte: "Mais informo V. Exa. que após consultados os arquivos, não foram encontrados quaisquer bens imóveis inscritos a favor de A.".
25. Ademais, a fls. 17 da certidão, a CRC responde o seguinte: "2. A (titular do BIR n.º1******(3)) - registo comercial nº SO-3****, SO1**** e SO-3****, não foi encontrado registo automóvel."
26. Por outro lado, de fls. 49 a 107 da certidão, constam os resultados das buscas junto dos operadores de jogo em Macau, bem como os montantes que se logrou penhorar em diversas contas bancárias.
27. Em suma, da certidão constam todos os bens móveis sujeitos a registo que foram possíveis apurar (as aludidas quotas sociais) e que, como se viu, são desprovidos de qualquer valor real, bem como saldos de contas bancárias e de contas abertas junto de operadores de jogo. Consta igualmente que não foi possível apurar qualquer bem imóvel titularidade do Sr. A.
28. Ora, se da informação recebida das conservatórias resulta que não se apuraram outros bens, se os Bancos e os operadores de jogo elencam todos os bens encontrados, se a Exequente afirma não encontrar outros bens, a Requerente ora Recorrente confessa não entender que "outros bens" esperava o Tribunal a quo encontrar.
29. Até porque, como já se referiu, não se pode contar com a colaboração do Requerido na enumeração de tais bens uma vez que este está ausente em parte incerta, sendo legítimo concluir com grande grau de probabilidade que este não terá duzentos e quarenta milhões de patacas em bens.
30. Já quanto à afirmação de que poderá haver razões desconhecidas para não se terem penhorado outros bens é absolutamente incompreensível, porquanto qualquer credor teria provido pela penhora de outros bens susceptíveis de satisfazer o seu crédito, principalmente quando este ascende a sessenta e seis milhões de patacas, caso esses bens existissem e tivessem sido encontrados.
31. Por outro lado da nova certidão relativa ao processo CV1-17-0001-CEO e ao seu apenso B, junta como Doc. n.º 2, resulta evidente da aludida certidão que se por um qualquer acaso o Requerido tivesse mais bens, a verdade é que nem no momento de os partilhar com a sua cônjuge tais bens foram revelados pelo que os credores não têm qualquer hipótese de os encontrar.
32. Em suma, é evidente que o património do Requerido não é de modo algum suficiente para pagar as dívidas que assumiu, ou que pelo menos há uma séria probabilidade de que assim seja e que não se poderá contar com a colaboração do devedor para esclarecer esta questão.
33. E tanto assim é que é o próprio Ministério Público, incumbido da defesa dos interesses do Requerido, que nas suas alegações finais afirma sem margem para dúvidas que o seu património é manifestamente insuficiente devendo ser decretada a sua insolvência.
34.4. Atento o sobredito, é por demais evidente que os testemunhos produzidos na audiência de julgamento e bem assim a prova documental produzida nos Autos não foi devidamente tomada em consideração, tal como mandam as regras do artigo 558.º do CPC.
35. Ou seja, se após conduzidas todas as diligências não foi possível apurar mais bens, se nem o Requerido nem as sociedades de que é sócio e administrador se pronunciam, não pode impor-se à Requerente uma prova diabólica no sentido de provar o impossível, i.e. que uma pessoa fugida de Macau, que não é titular de bens imóveis, com bens penhorados no montante de apenas de MOP 1.278.009,70, ainda terá milagrosamente bens no valor de duzentos e quarenta milhões de patacas para satisfazer as dívidas.
36. Bens esses que, refira-se, terão de ser encontrados sem a cooperação do Requerido e que não são contas bancárias nem bens sujeitos a registo ...
37. Como é bom de ver, salvo o devido respeito por melhor entendimento e com todo o respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, a decisão do Tribunal a quo de impossibilitar a declaração de insolvência está em violação das regras de apreciação da prova.
38. Em suma, na modesta opinião da Requerente, havia "matéria fáctica" mais do que suficiente para declarar a insolvência do Requerido.
39. É que, se é verdade que o Juiz tem liberdade na apreciação da prova submetida a juízo, essa liberdade estará sempre delimitada pela impossibilidade de se tomar uma decisão em clara contradição com a prova trazida aos Autos, especialmente quando, como no caso ora em discussão, é produzida prova documental.
40. Ora, foi precisamente o que aconteceu no caso sub judice, em que o Tribunal a quo decidiu arbitrariamente e não conforme ditavam as provas carreadas para os Autos, assim violando o disposto no art. 558.º do CPC.
41. Consequentemente, esta violação das normas que regem a apreciação da prova ditou uma reposta aos quesitos 33.º e 38.º flagrantemente desconforme (e portanto incompatível) com a prova produzida, inquinando substancialmente o processo judicativo que levou ao indeferimento das pretensões da Requerente, ora Recorrente.
42. Torna-se portanto essencial que a prova produzida seja apreciada na sua plenitude, de modo a que, nos termos do artigo 629.º n.º 1, al. b) do CPC, seja a resposta aos quesitos 33.º e 38.º alterada por este Douto Tribunal no sentido de se considerarem ambos como integralmente provados.
43. Ainda assim, caso não se entenda que os aludidos quesitos 33.º e 38.º não estão provados na íntegra - o que não se concede - deve, em face da prova produzida, a resposta aos mesmos ser reformulada, ao abrigo do disposto no artigo 629.º n.º 1 al. b) do CPC, na medida em que se passe a ler o seguinte:
"33.º
Provado que a sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada foi declarada falida no âmbito do processo CV3-18-0004-CFI, não tendo qualquer valor, e que no processo CV1-17-0001-CEO não foram apurados quaisquer bens da titularidade das sociedades Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda. e Grupo de Diversões D Limitada.
38.º
Provado que no âmbito da referida execução movida pela YYYY, não foi possível detectar quaisquer outros bens móveis ou imóveis propriedade do Requerido.”
44. 5. Por fim, e a título subsidiário, sempre se dirá que se de facto se considerasse que falta "matéria fáctica" - o apenas se admite por mera cautela de patrocínio - deveria o Tribunal a quo ter provido pela obtenção dessa mesma matéria fáctica.
45. Por um lado, no que toca à declaração de falência da sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada, crê a Requerente que o Tribunal a quo tinha o poder / dever de (i) requerer a consulta do processo n.º CV3-18-0004-CFI; (ii) ou solicitar à Requerente que facultasse prova adicional.
46. Por outro, no que toca às restantes participações sociais, o Tribunal a quo deveria ter ordenado o envio de ofícios à Direcção dos Serviços de Finanças ("DSF"), à Autoridade Monetária de Macau ("AMCM"), à Conservatória do Registo Predial ("CRP") e à Conservatória dos Registos dos Bens Móveis e Comercial ("CRC") e quaisquer a outras entidades que tivesse por conveniente, no sentido de esclarecer se estas sociedades têm ou não bens, e por conseguinte qualquer valor, de forma a apurar o valor da participação social que o Requerido nelas detém.
47. Assim o impõem o n.º 3 do artigo 6.° do CPC (que tem o seu corolário no dever de cooperação para a descoberta da verdade previsto no artigo 442.º do referido diploma legal) e o n.º 1 do artigo 556.° do Código de Processo Civil.
48. Dito de outro modo, em virtude da aludida norma, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, incumbe ao Juiz ao abrigo do referido poder-dever funcional, não só convidar as partes ao suprimento das eventuais insuficiências probatórias que os respectivos requerimentos de instrução contenham, mas também por sua iniciativa ordenar as diligências que entenda devidas e pertinentes, quando as mesmas se refiram a factos de que lhe é lícito conhecer.
49. No caso presente, este poder-dever por parte do Tribunal de indagação oficiosa dos factos alegados por uma das partes, mormente quando vem a considerar tais factos como condição para a procedência do pedido, torna-se indiscutível quando a instrução e prova desses factos, por se tratar de matéria reservada e sujeita a sigilo, está vedada à Requerente.
50. Concluindo, em face do supra exposto, tendo o Tribunal a quo dúvidas quanto à insuficiência das diligências probatórias, outra opção não lhe restava senão a de, em honra à descoberta da verdade, de ordenar as diligências que entendesse necessárias.
51. Nesta medida, caso este Douto Tribunal entenda que de facto era necessário conduzir as diligências de prova acima aludidas no sentido de se apurar o valor das participações sociais detidas pelo Requerido - o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio - crê a Requerente de que deve ser decretada a anulação da decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto aos quesitos 33.º e 38.º (e consequentemente a sentença recorrida), ordenando-se a realização das diligências aludidas anteriormente e após a sua condução ser proferida nova decisão sobre a matéria de facto com os ulteriores termos do processo (vide artigo 629.º n.º 4 do CPC), o que requererá a final a título subsidiário.
III - O RECURSO DA SENTENÇA
52. A Sentença Recorrida assenta essencialmente nas seguintes razões, com as quais não se concorda:
(iii) Não está provado que as sociedades cujas quotas foram penhoradas não têm valor ou o seu contrário;
(iv) Não está provado que não há outros bens que não se penhoraram por qualquer razão que se desconhece.
C) Consequências da reapreciação da prova
53. Na verdade, na ausência de qualquer indício de que o Requerido dispõe de bens no valor de duzentos e quarenta milhões de Patacas, a decisão só pode ir no sentido da sua insolvência.
54. Ou seja, basta que a resposta aos quesitos 33.º e 38.º (ou apenas o 38.º) seja reformulada nos termos supra expostos, como deve, para ficar devidamente provado o que é evidente, que o património do Requerido é manifestamente inferior ao seu activo, sendo necessário substituir a decisão ora em crise por uma decisão que reponha a legalidade e a justiça, decretando a insolvência do Requerido.
D) Da manifesta insolvência do Requerido e do prejuízo causado à Requerente com a decisão de que ora se recorre
55. Ainda que se entendesse que a resposta aos quesitos 33.º e 38.º não carece de ser reformulada - o que não se admite e apenas se concebe por mera cautela de patrocínio - a verdade é que constam dos Autos elementos mais do que suficientes para que se desse como provada com um elevadíssimo grau de probabilidade a insolvência do Requerido.
56. É que, ao contrário do que refere a sentença ora em crise, a factualidade que envolve este processo não é composta de apenas "meros indícios" mas sim de um conjunto de circunstâncias que demonstram a insolvência do Requerido.
57. Recordemos então os seguintes factos - que o Tribunal a quo considera meros indícios, mas que deveriam ter sido valorados na sua plenitude:
- Desde o momento em que foi interposto o presente pedido de insolvência até à citação edital do Requerido decorreram mais de dois anos;
- Durante esse período, no presente processo tentou citar-se o Requerido tanto em Macau como na China Continental e, após várias diligências que incluíram citação por carta rogatória na China Continental, o Requerido não se deixou citar;
- Durante o mesmo período, no processo CV1-17-0001-CEO, foram feitas várias tentativas de citar o Requerido, quer a título individual quer na qualidade de administrador das sociedades de que é sócio, também sem qualquer sucesso;
- Em momento algum o Requerido se mostrou disponível para pagar um avo dos montantes que deve à YYYY e à Requerente, tendo uma dívida que ascende a mais de cento e dezoito milhões de patacas (montante a que acrescem juros);
- O Requerido é sócio de três sociedades, sendo que uma delas está falida e as outras duas não se deixam citar nem têm qualquer actividade e/ou património conhecido;
- O eventual produto da venda das quotas acima referidas, terá de ser dividido em partes iguais com a mulher do Requerido, visto serem casados em comunhão de adquiridos;
- O Requerido não é titular de quaisquer outros bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo;
- Para além das quotas, foi apenas possível penhorar o montante de MOP 1.278.009,70 para satisfazer as dívidas dos credores do Requerido.
58. Como é óbvio, tais factos não são meros indícios mas sim prova concreta que, com um elevadíssimo grau de probabilidade, o Requerido não dispõe de património suficiente e se pôs em fuga para evitar o pagamento das dívidas aos seus credores.
59. Se o Requerido tiver bens, a verdade é que tem escolhido não o dizer nem participar nos processos que contra si correm pelo que essa conduta deve ser valorada no sentido de se concluir que se não indica os bens, é porque não os tem, caso contrário impõe-se à Requerente um ónus de prova absolutamente impossível.
60. Ademais, é necessário que as aludidas sociedades tenham um património de mais de duzentos e quarenta milhões de Patacas, que não disponham de passivo, e que alguém as queira comprar.
61. Como é bom de ver, tais factos só por si seriam suficientes para declarar a sua insolvência sendo evidente que a probabilidade de o património do Requerido ser manifestamente inferior ao seu activo é elevadíssima.
62. Cumpre também referir que uma vez que este não se deixa citar e que o Tribunal a quo não se satisfaz com as informações obtidas no processo CV1-17-0001-CEO nem tão-pouco crê que deva conduzir por si próprio tais diligências, nunca seria possível satisfazer por completo o crivo estabelecido pelo Tribunal a quo.
63. E nesta medida, devemos socorrer-nos de um critério de prova que seja aceitável, sendo incontestável que a Requerente produziu prova mais do que suficiente para se concluir que é expectável que o Requerido não tenha património suficiente.
64. Caso contrário a Recorrente fica à mercê do regime das execuções, o qual implica imediatamente que não quinhoe do montante de MOP 1.278.009,70 que será distribuído à YYYY.
65. Ademais, se por algum improvável acaso, se chegasse à conclusão que o Requerido afinal tinha património que permitisse satisfazer as suas dívidas (que não tem), é o próprio Código de Processo Civil que nos seus artigos 1183.° e 1184.° oferece a solução, uma vez que os efeitos da declaração de insolvência seriam dados como extintos com o pagamento das dívidas aos credores.
66. Vale o supra por dizer que a Recorrente produziu a prova que lhe foi requerida, que estava ao seu alcance, e que, na sua opinião, provava bastantemente os factos por si alegados.
67. Até porque o Tribunal a quo não detectou quaisquer indícios da existência de património, apenas afirmando que é um facto que não se penhoraram bens que permitam satisfazer o passivo, mas que nada garante que esses bens não possam existir.
68. Todavia, como já referido, a subsistir tal dúvida (o que não se concede) seria facilmente dissipada por um meio que apenas o Tribunal a quo poderia servir-se (i.e. oficiando as competentes entidades públicas).
69. Ora, na opinião da Recorrente não é admissível que o Tribunal a quo lance a semente da dúvida (que nem sequer o Ministério Público colocou) e se sirva dessa dúvida para indeferir o pedido da Requerente quando, como se referiu, podia (e ao abrigo do Artigo 6.° n.º 3 do CPC, devia) ter diligenciado no sentido de a esclarecer antes de tomar uma decisão caso se considerasse haver insuficiências na prova produzida (o que não se concede).
70. Em suma, a decisão ora em crise viola a lei aplicável, resultando de uma apreciação dos factos baseada num formalismo excessivo - e, repita-se, numa apreciação errónea da prova produzida em juízo contrária às regras do art. 558.° do CPC - que perpetua uma manifesta ilegalidade e uma grave injustiça contra a Requerente, e como tal carece de ser revogada e substituída.
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Não houve resposta às alegações do recurso, por o Requerido ter sido editalmente citado.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
- A Requerente é uma sociedade que se dedica à exploração de jogos de fortuna e azar ou outros jogos em casino na RAEM. (Artigo 1º)
- No âmbito da sua actividade, ao abrigo da Lei n.º5/2004, de 14 de Junho, a Requerente está habilitada a conceder crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na RAEM. (Artigo 2º)
- Ao abrigo do referido diploma a sociedade comercial “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada”, com sede em Macau, na Rua de ......, n.º..., Edf. ......, Bloco ... – ......, ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, sob o n.º3****(SO) (a Devedora”), representada pelo Requerido, seu sócio e administrador único, solicitou à Requerente a celebração de um contrato de concessão de facilidades de crédito até ao montante em capital de HKD$120.000.000,00, contrato esse que foi celebrado no dia 2 de Julho de 2011. (Artigo 3º)
- Para garantia e reembolso do referido crédito, a Devedora representada pelo Requerido subscreveu uma livrança a favor da Requerente em 2 de Julho de 2011. (Artigo 4º)
- Conjuntamente com a referida livrança, a Devedora assinou também um pacto de preenchimento, autorizando a Requerente a preencher a data de vencimento e o montante em dívida (incluindo capital e juros) e bem assim decidir o local de pagamento. (Artigo 5º)
- O Requerido enquanto garante das obrigações da Devedora, assinou na qualidade de avalista tanto na referida livrança como no aludido pacto de preenchimento. (Artigo 6º)
- No âmbito da referida concessão de facilidades de crédito, a Devedora utilizou o montante de HKD$47.000.000,00. (Artigo 7º)
- Até à data da acção, a Devedora não procedeu ao pagamento de quaisquer montantes no âmbito do contrato de facilidades de crédito celebrado com a Requerente. (Artigo 8º)
- E, apesar de instados por diversas vezes pela Requerente para proceder ao pagamento do montante em dívida, no âmbito das facilidades de crédito concedidas pela Requerente, nem a Devedora nem o Requerido procederam ao pagamento devido. (Artigo 9º)
- A última vez que a Requerente logrou contactar pessoalmente com o administrador e sócio único da Devedora, o Requerido A (A) foi em 2017. (Artigo 10º)
- Ainda assim, foi mantendo contacto com um funcionário da Devedora, que no entanto, nada fez para saldar a dívida. (Artigo 11º)
- A Requerente enviou cartas para a sede da Devedora e para as várias moradas conhecidas do Requerido em 23 de Abril de 2018. (Artigo 12º)
- No seguimento do insucesso das suas interpelações e certa de que a possibilidade de pagamento espontâneo por parte da Devedora e/ou do Requerido se frustrou, a Requerente procedeu ao preenchimento da livrança e apresentou-o a pagamento na data do respectivo vencimento. (Artigo 13º)
- A Requerente é detentora e legítima portadora de uma livrança no valor de HKD$51.307.173,17, subscrita a seu favor em 2 de Julho de 2011 pela Devedora, e avalizada pelo Requerido, com data de vencimento em 14 de Agosto de 2018 e, assim, já vencida. (Artigo 14º)
- A Requerente apurou que, em 19 de Dezembro de 2016, a sociedade YYYY Macau, S.A. (doravante a “YYYY”) instaurou uma execução contra a “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada” e contra o Requerido que corre os seus termos nesse Tribunal sob o número de processo CV1-17-0001-CEO. (Artigo 24º)
- A quantia reclamada pela YYYY é de MOP$66.073.376,88, à qual acrescem os respectivos juros. (Artigo 25º)
- A citação pessoal do Requerido no âmbito do processo acima referido se frustrou, pelo que foi feita a citação edital do mesmo. (Artigo 26º)
- Na referida execução foram penhoradas as seguintes quotas sociais que pertencem ao Requerido, de modo a satisfazer o crédito da YYYY: (Artigo 28º)
- Uma quota detida pelo Requerido na sociedade comercial “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada”, com sede em Macua, na Rua de ......, n.º..., Edf. ......, Bloco ... – ......, ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º3****(SO), com o valor nominal de MOP$25.000,00. (Artigo 29º)
- Uma quota detida pelo Requerido na sociedade comercial “Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda.”, com sede em Macua, na Avenida do ......, nº..., Edf. Industrial ......, Bloco ..., ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º1****(SO), com o valor nominal de MOP$99.000,00. (Artigo 30º)
- Uma quota detida pelo Requerido na sociedade comercial “Grupo de Diversões D Limitada”, com sede em Macua, na Rua de ......, n.º..., Edf. ......, Bloco ... – ......, ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º****6(SO), com o valor nominal de MOP$920.000,00. (Artigo 31º)
- Está penhorada a quantia de MOP$1.278.009,70 pertencente ao Requerido no processo CV1-17-0001-CEO. (Artigo 31º-A)
- Até à presente data ainda não foi possível liquidar qualquer montante na execução movida pela YYYY. (Artigo 32º)
- Não foi sido possível citar as referidas sociedades referidas nos art° 29° a 31° e tinha sido requerida a falência de uma delas. (Artigo 34º)
- O Requerido não é empresário comercial. (Artigo 39º)
* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este fundamentou a sua douta decisão nos seguintes termos:
I) RELATÓRIO
XXXX (Macau) S.A.(XXXX(澳門)股份有限公司), sociedade commercial com sede em Macau, na Rua de ......, nºs ...-..., Edifício ......, ...º andar, ..., Taipa, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 2****(SO), vem intentar a presente
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA contra
A(A), casado com F(F), no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIR nº1******(3), com última residência conhecida na Rua de ......, nº..., Edf. ......, Bloco ... – ......, ...º andar ..., e Avenida do ......, nº..., Ind. ......, Bloco ..., ...º andar ... e na China Continental, 廣州市番禺區......街......塘......路...-...號.
com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 9.
Concluiu pedindo que seja julgada procedente, por provada, e em consequência, requer-se seja declarada a Insolvência do Requerido A, com as legais consequências, seguindo-se os demais termos até final.
***
Frustrada a citação pessoal do Réu, procedeu-se à citação edital da mesma tendo a final sido citado o Ministério Público nos termos do art.º 49º do C.P.C.
Não foi apresentada qualquer contestação tendo o Réu permanecido na situação de revelia absoluta.
***
Foi realizado o julgamento com a intervenção do Tribunal Colectivo.
***
O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e internacionalmente e o processo é próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
II) FACTOS
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
(...)
***
III) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Nos presentes autos, fundamenta a requerente que o requerido é responsável para com ela pelo pagamento do montante de HKD51.307.173.17, por ter subscrito na qualidade de avalista na livrança subscrita pela B Promotor de Jogo Sociedade Unipessal Limitada, tendo a requerente interpelado o requerido para proceder o pagamento mas todas se resultam infrutíferas, o requerido é movida pelo outro credor Sociedade YYYY Macau, S.A. no processo de execução CV1-17-0001-CEO para haver o crédito no montante de HKD64.148.909,59, nesse processo, o requerido foi citada editalmente e foram penhoradas somente quotas sociais de três sociedades que não têm qualquer valor, sendo uma das quais contra a qual foi requerida a falência, concluindo, por isso, que o activo do requerido é manifestamente insuficiente para o ressarcimento total ou parcial das dívidas da requerente e da YYYY, pretendendo que seja declarada insolvente o Requerido.
Dispõe-se o n° 1189° do C.P.C., “O credor que pretenda a declaração da insolvência deduz os fundamentos do pedido, justificando a existência do seu crédito e oferecendo logo as provas de que pretende usar.”
A lei confere legitimidade activa ao credor para a declaração da insolvência do seu devedor, importa analisar, antes de mais, se a requerente é credor do requerido.
Crédito da requerente
Vem comprovado que a requerente está habilitada a conceder crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar na RAEM, no âmbito do qual foi celebrado com a sociedade comercial “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada” de que o requerido é seu único sócio e administrador, um contrato de concessão de facilidade de crédito até ao montante de HKD120.000.000,00 em 2 de Julho de 2011.
Para garantia e reembolso do crédito concedido à sociedade B, o requerido subscreveu na qualidade de avalista na livrança e no pacto de preenchimento assinado por esta sociedade, representada pelo requerido.
No âmbito da concessão de crédito, a Sociedade B utilizou o montante de HKD47.000.000,00, sem que procedesse ao seu reembolso. Perante a falta de pagamento da dívida, a requerente preencheu a livrança e apresentou-a a pagamento com data de vencimento em 14 de Agosto de 2018.
Portanto, a requerente é detentora duma livrança avalizada pelo requerido no valor de HKD$51.307.173,17.
Nos termos do disposto do art°1165° do Código Comercial, “O dado do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.”
Na qualidade de avalista, o requerido assumiu perante a requerente a obrigação de pagar o montante indicado na livrança, como a Sociedade B.
Portanto, a requerente é credora do requerido no montante de HKD$51.307.173,17, acrescido de juros devidos, tendo ela, por isso, legitimidade para exigir a declaração da insolvência do requerido.
*
A noção do estado de insolvência está consagrada no artº1185º do C.P.C., “O devedor que não seja empresário comercial pode ser declarado em estado de insolvência quando o activo do seu património seja inferior ao passivo.”
Diferente do estado de falência cujo fundamento se reside na inviabilidade económica da empresa. O fundamento do pedido de insolvência alicerça-se simplesmente na insuficiência do activo para satisfazer o passivo.
“A impotência económica do comerciante para satisfazer pontualmente os seus compromissos, a qual caracteriza o estado de falência, não coincide com a insuficiência ou inferioridade do activo em relação ao passivo: uma pode existir sem a outra.” (Alberto dos Reis, ob. ci, pg. 350)
“Enquanto a insolvência se funda num cálculo aritmético, a falência pressupõe uma situação real ou iminente da impossibilidade de cumprir. O crédito é factor positivo na falência e é praticamente irrelevante na insolvência” (Ac. S.T.J. de 22/05/1973, BMJ, 227, 105)
Vejamos se no caso concreto se reúnem os requisitos de insolvência.
Passivo do requerido
De acordo com o que se refere acima, o requerido é devedor da requerente no valor de HKD$51.307.173,17, o que equivale a MOP$52.846.388.37.
Para além dessa dívida, vem comprovado que o requerido é movido por sociedade YYYY Macau, S.A. no processo de execução CV1-17-0001-CEO para reclamar o crédito no valor de MOP$66.073.376,88, no qual aquele foi citado editalmente. Ou seja, o requerido é devedor doutro credor no montante de MOP$66.073.376,88.
Portanto, acumulando com as duas dívidas, mesmo sem contar os juros devidos, o requerido tem como passivo, pelo menos, de MOP$118.919.765,25.
Activo do requerido
Alegou a requerente que no processo de execução CV1-17-0001-CEO, foram penhoradas três quotas sociais que não têm qualquer valor e que não foi possível detectar outros bens móveis e imoveis que permitem o ressarcimento total ou parcial do crédito da YYYY e da requerente, o activo do requeridoé manifestamente insuficiente para a liquidação da totalidade da dívida que o requerido tem.
Conforme os factos alegados e provados nos autos, está assente apenas que no processo de execução CV1-17-0001-CEO, estão penhoradas as três quotas sociais detidas pelo requerido nas sociedades “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada”, “Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda” e “Grupo de Diversões D Limitada”, com o valor nominal de MOP$25.000.00, MOP99.000,00 e MOP$920.000,00, respectiva, e está penhorada nesse processo ainda a quantia de MOP$1.270.009,70 . Até à data da acção, não foi possível liquidar qualquer montante pela YYYY.
Os bens acima referidos são bens que se encontram penhorados no processo de execução CV1-17-0001-CEO, no entanto, não vem comprovado que, para além desses bens, não sendo possível apurar outros bens móveis ou imóveis nesse processo.
Assim, na ausência da factualidade, ficamos sem saber se a penhora desses bens foi pôr que o requerido não tem outros bens susceptíveis de ser penhorados, ou por existência de outras razões.
Por outro lado, também não logrou a requerente comprovar que as três quotas sociais não têm qualquer valor real.
Constam dos factos assentes os factos de que contra uma das sociedades cujas quotas sociais se encontram penhoradas for requerida a falência e que não foram possíveis a citação dessas sociedades. Mas, esses factos não deixam de ser factos instrumentais, sendo por si só, insuficientes para dizer que as sociedades não têm qualquer valor.
Para já, o requerimento de falência não equipara com a declaração da falência. A requerente só alegou que foi requerida a declaração de falência, não vem dizer qual foi o resultado desse requerimento nem se preocupou juntar a prova comprovativa de decisão judicial de falência, assim, não podemos considerar essa sociedade já se encontra em estado de falência. Por outra banda, a impossibilidade de citação dessas sociedades no processo de execução poderá implicar algo anormal, mesmos assim, não podemos retirar apenas desse facto como consequência lógica/necessária de que as sociedades em causa não têm qualquer valor real nem o contrário. De facto, a impossibilidade de citação não implica, necessariamente, que as sociedades em causa deixaram de funcionar, mesmo que a sociedade não funcione, ele tem ou não tem valor depende da verificação do facto se a mesma possua algum património, não podemos afirmar peremptoriamente que a sociedade não tem qualquer valor só por não ter sido possível a sua citação num processo judicial. Portanto, meramente com os factos provados acima referidos, não permitem concluir que essas sociedades não têm qualquer valor, e por conseguinte, não tendo também as suas quotas qualquer valor, para chegar a conclusão pretendida pela requerente, carecendo de apresentação de mais matéria fáctica.
Ou seja, vêm comprovados somente que ficam penhorados uma quantia de MOPS1.270.009,70 e três quotas sociais sem apurar o seu valor real ou se não tem qualquer valor.
O credor tem o ónus de alegar e provar factos sobre a insuficiência do activo para satisfazer o passivo, na dúvida sobre o valor real das três quotas sociais penhoradas, impõe-se a decidir a matéria em desfavor da requerente, não podemos concluir que o património do requerido que está penhorado no processo de execução CV1-17-0001-CEO é inferior ao seu passivo.
Dest’arte, por falta da verificação do requisito da inferioridade do activo do requerido para satisfazer o passivo, julga-se improcedente o pedido de insolvência.
***
IV) DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, decide:
- Absolver o Requerido A (A), do pedido de insolvência formulado pela requerente XXXX (Macau), S.A..
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Custas da acção pela Requerente.
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Registe e Notifique.
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Quid Juris?
Parte A:
A Recorrente começou por impugnar a matéria de facto, por entender que dois factos, constantes do artigo 33º e 38º que são relevantes não foram seleccionados pelo Tribunal recorrido, pelo que requer a sua inserção no elenco dos factos assentes para proferir a respectiva decisão, tendo em conta os elementos probatórios produzidos.
A propósito da impugnação da matéria de facto, o legislador fixa um regime especial, constante do artigo 599º (Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto) do CPC, que tem o seguinte teor:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
Ora, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
*
No que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio1.
É, pois, nessa linha que se deve aferir a razoabilidade dos juízos de prova especificamente impugnados, mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 390º do CCM, em conjugação com o artigo 558º do CPC, com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
Será com base na convicção desse modo formada pelo Tribunal de recurso que se concluirá ou não pelo acerto ou erro da decisão recorrida.
Repita-se, ao Tribunal de recurso não compete reapreciar todas as provas produzidas e analisadas pelo Tribunal a quo, mas só aqueles pontos concretos indicados pelo Recorrente como errados ou omissos!
*
Os dois factos sob impugnação têm o seguinte teor:
33.º
Refira-se também que tanto quanto a Requerente conseguiu apurar, as quotas acima mencionadas não têm qualquer valor.
38.º
Refira-se ainda que, no âmbito da referida execução movida pela YYYY, não foi possível detectar quaisquer outros bens móveis ou imóveis propriedade do Requerido que permitam lograr o ressarcimento, total ou parcial, do crédito da YYYY e da ora Requerente, pelo que é por demais evidente que estão cumpridos os pressupostos estabelecidos pelo n.º 1 do artigo 1185.º do CPC para que o Requerido seja declarado em estado de insolvência.
Na opinião da Recorrente, resulta dos testemunhos produzidos nos Autos e da prova documental junta, que o Requerido não tem bens conhecidos que permitam satisfazer as dívidas que assumiu, e nunca demonstrou qualquer vontade de a satisfazer.
Ora, ponderados todos os elementos constantes dos autos, parece nos que efectivamente a Recorrente têm razão neste aspecto, pois:
1) - Das respostas aos quesitos 14.º e 25.º resulta que o passivo do Requerido ascende a pelo menos MOP 118,919,765.25 (sem contar os juros que entretanto se venceram desde 2016 no caso da YYYY Macau, S.A. e desde 2018 no caso da ora Recorrente) e da resposta dada ao quesito 31.º-A resulta que até à data, nos Autos de Execução que foram movidos pela YYYY para pagamento da quantia de MOP 66,073,376.88, apenas foi possível penhorar o montante de MOP 1.278.009,70, ou seja menos de 10% da dívida que o Requerido tem perante os seus credores. Pelo que, a conclusão a tirar-se daqui deve ser a de que o património do Requerido é inferior ao seu activo, não obstante o Requerido ser titular de quotas de várias sociedades comerciais.
2) - As quotas societárias que o Recorrido/Requerido tem são as seguintes:
a. quota no valor de MOP 25,000.00 que o Executado detém na Sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Uni pessoal Limitada;
b. quota no valor de MOP 99,000.00 que o Executado detém na sociedade Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda.;
c. metade da quota no valor de MOP 920,000.00 que o Executado detém na sociedade Grupo de Diversões D Limitad.
3) – Por outro lado, conforme a certidão junta aos autos pela Requerente relativa ao processo n.º CV1-17 -0001-CEO (fls. 378), confirma-se que a sociedade B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada, onde o Requerido era, como se disse, o único sócio.
4) – Depois, conforme os dados constantes dos autos (fls. 63), em 12/09/2018 foi dado entrada no TJB o pedido de declaração da falência da referida sociedade, e os presentes autos foram apresentados no TJB em 14/09/2018, o que demonstra claramente a existência de vários processos contra o Recorrido e a sociedade de que ele é sócio.
5) - No que toca às outras duas sociedades, refere a sentença recorrida que carece de mais matéria fáctica para comprovar o valor das sociedades e, concomitantemente, o valor da participação social que nelas é detida pelo Requerido, desvalorizando o facto de as sociedades de que o Requerido é sócio maioritário e administrador não se deixam citar e não têm actualmente qualquer actividade, pois ele está ausente em parte incerta. O facto de o seu sócio maioritário e administrador ser o Requerido, que também está ausente em parte incerta e nunca manifestou vontade de pagar as suas dívidas são forte indício de que as sociedades não terão valor suficiente para este efeito.
Tudo isto permite concluir pela pertinência e importância dos dois factos acima referidos, e como tal eles passam a ser fixados nos seguintes termos:
33.º
Provado que tanto quanto a Requerente conseguiu apurar, as quotas acima mencionadas não têm valor suficiente para saldar as dívidas verificadas.
38.º
Provado que, no âmbito da referida execução movida pela YYYY, não foi possível detectar quaisquer outros bens móveis ou imóveis propriedade do Requerido que permitam lograr o ressarcimento, total ou parcial, do crédito da YYYY e da ora Requerente.
*
Julga-se assim procedente o recurso nesta parte interposto pela Recorrente.
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Parte B:
Prosseguindo, passemos a ver o mérito da acção.
Nesta parte a Recorrente defende que o pedido por ela formulado deve ser julgado procedente, declarando insolvente o Requerido, em face dos factos assentes.
Quid Juris?
Ao proceder à análise dos factos e a sua subsunção ao Direito, a Meritíssima Juiz teceu as seguintes doutas considerações (entre as outras):
“(…)
Crédito da requerente
Vem comprovado que a requerente está habilitada a conceder crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar na RAEM, no âmbito do qual foi celebrado com a sociedade comercial “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada” de que o requerido é seu único sócio e administrador, um contrato de concessão de facilidade de crédito até ao montante de HKD120.000.000,00 em 2 de Julho de 2011.
Para garantia e reembolso do crédito concedido à sociedade B, o requerido subscreveu na qualidade de avalista na livrança e no pacto de preenchimento assinado por esta sociedade, representada pelo requerido.
No âmbito da concessão de crédito, a Sociedade B utilizou o montante de HKD47.000.000,00, sem que procedesse ao seu reembolso. Perante a falta de pagamento da dívida, a requerente preencheu a livrança e apresentou-a a pagamento com data de vencimento em 14 de Agosto de 2018.
Portanto, a requerente é detentora duma livrança avalizada pelo requerido no valor de HKD$51.307.173,17.
Nos termos do disposto do art°1165° do Código Comercial, “O dado do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.”
Na qualidade de avalista, o requerido assumiu perante a requerente a obrigação de pagar o montante indicado na livrança, como a Sociedade B.
Portanto, a requerente é credora do requerido no montante de HKD$51.307.173,17, acrescido de juros devidos, tendo ela, por isso, legitimidade para exigir a declaração da insolvência do requerido.
*
A noção do estado de insolvência está consagrada no artº1185º do C.P.C., “O devedor que não seja empresário comercial pode ser declarado em estado de insolvência quando o activo do seu património seja inferior ao passivo.”
Diferente do estado de falência cujo fundamento se reside na inviabilidade económica da empresa. O fundamento do pedido de insolvência alicerça-se simplesmente na insuficiência do activo para satisfazer o passivo.
“A impotência económica do comerciante para satisfazer pontualmente os seus compromissos, a qual caracteriza o estado de falência, não coincide com a insuficiência ou inferioridade do activo em relação ao passivo: uma pode existir sem a outra.” (Alberto dos Reis, ob. ci, pg. 350)
“Enquanto a insolvência se funda num cálculo aritmético, a falência pressupõe uma situação real ou iminente da impossibilidade de cumprir. O crédito é factor positivo na falência e é praticamente irrelevante na insolvência” (Ac. S.T.J. de 22/05/1973, BMJ, 227, 105)
Vejamos se no caso concreto se reúnem os requisitos de insolvência.
Passivo do requerido
De acordo com o que se refere acima, o requerido é devedor da requerente no valor de HKD$51.307.173,17, o que equivale a MOP$52.846.388.37.
Para além dessa dívida, vem comprovado que o requerido é movido por sociedade YYYY Macau, S.A. no processo de execução CV1-17-0001-CEO para reclamar o crédito no valor de MOP$66.073.376,88, no qual aquele foi citado editalmente. Ou seja, o requerido é devedor doutro credor no montante de MOP$66.073.376,88.
Portanto, acumulando com as duas dívidas, mesmo sem contar os juros devidos, o requerido tem como passivo, pelo menos, de MOP$118.919.765,25.
Activo do requerido
Alegou a requerente que no processo de execução CV1-17-0001-CEO, foram penhoradas três quotas sociais que não têm qualquer valor e que não foi possível detectar outros bens móveis e imoveis que permitem o ressarcimento total ou parcial do crédito da YYYY e da requerente, o activo do requeridoé manifestamente insuficiente para a liquidação da totalidade da dívida que o requerido tem.
Conforme os factos alegados e provados nos autos, está assente apenas que no processo de execução CV1-17-0001-CEO, estão penhoradas as três quotas sociais detidas pelo requerido nas sociedades “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada”, “Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda” e “Grupo de Diversões D Limitada”, com o valor nominal de MOP$25.000.00, MOP99.000,00 e MOP$920.000,00, respectiva, e está penhorada nesse processo ainda a quantia de MOP$1.270.009,70 . Até à data da acção, não foi possível liquidar qualquer montante pela YYYY.
Os bens acima referidos são bens que se encontram penhorados no processo de execução CV1-17-0001-CEO, no entanto, não vem comprovado que, para além desses bens, não sendo possível apurar outros bens móveis ou imóveis nesse processo.
Assim, na ausência da factualidade, ficamos sem saber se a penhora desses bens foi pôr que o requerido não tem outros bens susceptíveis de ser penhorados, ou por existência de outras razões.
Por outro lado, também não logrou a requerente comprovar que as três quotas sociais não têm qualquer valor real.
Constam dos factos assentes os factos de que contra uma das sociedades cujas quotas sociais se encontram penhoradas for requerida a falência e que não foram possíveis a citação dessas sociedades. Mas, esses factos não deixam de ser factos instrumentais, sendo por si só, insuficientes para dizer que as sociedades não têm qualquer valor. (…)”.
Concordamos inteiramente com esta parte da douta argumentação até aqui, pois foi feita uma correcta leitura dos factos à luz dos padrões razoáveis de juízos valorativos.
Porém, já não acompanhamos a parte (da sentença) a seguir transcrita:
“(…)
Para já, o requerimento de falência não equipara com a declaração da falência. A requerente só alegou que foi requerida a declaração de falência, não vem dizer qual foi o resultado desse requerimento nem se preocupou juntar a prova comprovativa de decisão judicial de falência, assim, não podemos considerar essa sociedade já se encontra em estado de falência. Por outra banda, a impossibilidade de citação dessas sociedades no processo de execução poderá implicar algo anormal, mesmos assim, não podemos retirar apenas desse facto como consequência lógica/necessária de que as sociedades em causa não têm qualquer valor real nem o contrário. De facto, a impossibilidade de citação não implica, necessariamente, que as sociedades em causa deixaram de funcionar, mesmo que a sociedade não funcione, ele tem ou não tem valor depende da verificação do facto se a mesma possua algum património, não podemos afirmar peremptoriamente que a sociedade não tem qualquer valor só por não ter sido possível a sua citação num processo judicial. Portanto, meramente com os factos provados acima referidos, não permitem concluir que essas sociedades não têm qualquer valor, e por conseguinte, não tendo também as suas quotas qualquer valor, para chegar a conclusão pretendida pela requerente, carecendo de apresentação de mais matéria fáctica.
Ou seja, vêm comprovados somente que ficam penhorados uma quantia de MOPS1.270.009,70 e três quotas sociais sem apurar o seu valor real ou se não tem qualquer valor.
O credor tem o ónus de alegar e provar factos sobre a insuficiência do activo para satisfazer o passivo, na dúvida sobre o valor real das três quotas sociais penhoradas, impõe-se a decidir a matéria em desfavor da requerente, não podemos concluir que o património do requerido que está penhorado no processo de execução CV1-17-0001-CEO é inferior ao seu passivo.
Dest’arte, por falta da verificação do requisito da inferioridade do activo do requerido para satisfazer o passivo, julga-se improcedente o pedido de insolvência.”
Como anteriormente afirmamos, no que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio.
No caso importa destacar os seguintes aspectos:
- Está em causa uma dívida de elevado valor que o Requerido tem para com a Requerente; para além de outras reclamadas por um outro credor noutros processos executivos;
- As dívidas nasceram em 2017 e 2018, de lá para cá já decorreram mais de 4 anos, e o Requerido está ausente em parte incerta;
- Já foram realizadas várias diligências com vista a tentar localizar os bens que o Requerido eventualmente tenha, o resultado não é muito positivo, em relação ao elevado montante da dívida em causa;
- Perante esta situação de insuficiência económica tão evidente do Requerido, objectivamente ponderado, não há dados seguros que nos permitam concluir pela ideia de que o Requerido possa ter património para saldar as dívidas em causa.
- De recordar-se que, em matéria da falência, o artigo 1082º (Motivos de declaração da falência), aplicável, ex vi do disposto no artigo 1187º, todos do CPC, dispõe:
A declaração da falência, quando não resulte do que especialmente fica disposto na secção anterior, tem lugar desde que se prove algum dos seguintes factos:
a) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações;
b) Fuga do empresário comercial ou, caso este seja pessoa colectiva, dos titulares do seu órgão de administração, relacionada com a falta de liquidez do devedor e sem designação de substituto idóneo;
c) Abandono da administração principal ou, caso o empresário comercial seja pessoa colectiva, da respectiva sede ou da administração principal;
d) Dissipação ou extravio de bens, constituição fictícia de créditos ou qualquer outro procedimento abusivo que revele o propósito de o devedor se colocar em situação que o impossibilite de cumprir pontualmente as suas obrigações.
Depois, o artigo 1185 (Noção de insolvência) do CPC, que disciplina especificadamente a matéria de insolvência, manda:
l. O devedor que não seja empresário comercial pode ser declarado em estado de insolvência quando o activo do seu património seja inferior ao passivo.
2. Se o devedor for casado e as dívidas forem também da responsabilidade do outro cônjuge, pode ser declarada no mesmo processo a insolvência de ambos.
3. Podem ser declaradas em estado de insolvência as sociedades civis.
Comparado o nº 1 do artigo 1185º com o nº 1 do artigo 1082º, todos do CPC, parece-nos que aquele é menos exigente do que este último, pois, nesta última hipótese, o legislador tem de preocupar-se também com os interesses inerentes ao comércio e ao corpo pelo qual ele é exercido.
Por outro lado, o artigo 1186º (Presunção de insolvência) do CPC (que disciplina especificadamente a matéria de insolvência) manda:
A insolvência presume-se:
a) Quando contra o devedor pendam, pelo menos, duas execuções não embargadas;
b) Quando ao devedor tenha sido feito arresto e não tenha recorrido do despacho que o decretou ou deduzido oposição ou, tendo-o feito, o recurso ou a oposição sejam julgados improcedentes.
É certo que a alínea a) do artigo 1186º citado não disciplina directamente o caso dos autos, pois, as execuções pendentes não são todas contra directamente o Recorrido, mas sim contra uma sociedade unipessoal de que ele é o único sócio, e contra ele, apenas um processo que é o presente, sendo certo que em nenhum destes processos foram deduzidos embargos, visto que o Recorrido está ausente em parte incerta.
Pelo que, a existência de duas execuções não deixa de constituir um forte indício da insuficiência económica do Recorrido, em face de todos os elementos probatórios juntos aos autos.
Relevam também, recapitule-se, os seguintes factos considerados provados pelo Tribunal a quo (entre os outros):
- A Requerente é detentora e legítima portadora de uma livrança no valor de HKD$51.307.173,17, subscrita a seu favor em 2 de Julho de 2011 pela Devedora, e avalizada pelo Requerido, com data de vencimento em 14 de Agosto de 2018 e, assim, já vencida. (Artigo 14º)
- A Requerente apurou que, em 19 de Dezembro de 2016, a sociedade YYYY Macau, S.A. (doravante a “YYYY”) instaurou uma execução contra a “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada” e contra o Requerido que corre os seus termos nesse Tribunal sob o número de processo CV1-17-0001-CEO. (Artigo 24º)
- A quantia reclamada pela YYYY é de MOP$66.073.376,88, à qual acrescem os respectivos juros. (Artigo 25º)
- A citação pessoal do Requerido no âmbito do processo acima referido se frustrou, pelo que foi feita a citação edital do mesmo. (Artigo 26º)
- Na referida execução foram penhoradas as seguintes quotas sociais que pertencem ao Requerido, de modo a satisfazer o crédito da YYYY: (Artigo 28º)
- Uma quota detida pelo Requerido na sociedade comercial “B Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada”, com sede em Macua, na Rua de ......, n.º..., Edf. ......, Bloco ... – ......, ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º3****(SO), com o valor nominal de MOP$25.000,00. (Artigo 29º)
- Uma quota detida pelo Requerido na sociedade comercial “Fábrica de Produtos Farmacêuticos C (Macau) Lda.”, com sede em Macua, na Avenida do ......, nº..., Edf. Industrial ......, Bloco ..., ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º1****(SO), com o valor nominal de MOP$99.000,00. (Artigo 30º)
- Uma quota detida pelo Requerido na sociedade comercial “Grupo de Diversões D Limitada”, com sede em Macua, na Rua de ......, n.º..., Edf. ......, Bloco ... – ......, ...º andar ..., registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º****6(SO), com o valor nominal de MOP$920.000,00. (Artigo 31º)
- Está penhorada a quantia de MOP$1.278.009,70 pertencente ao Requerido no processo CV1-17-0001-CEO. (Artigo 31º-A)
- Até à presente data ainda não foi possível liquidar qualquer montante na execução movida pela YYYY. (Artigo 32º)
- Não foi sido possível citar as referidas sociedades referidas nos art° 29° a 31° e tinha sido requerida a falência de uma delas. (Artigo 34º)
Pelo expendido, ao abrigo do disposto no artigo 1082º/1-a), ex vi do artigo 1187º, artigos 1185º/1 e 1186º/1, todos do CPC, devidamente valorados todos os factos assentes, é de declarar-se insolvente o Requerido, julgando-se deste modo procedente o recurso e revogando-se a sentença recorrida.
Com esta decisão fica prejudicada a apreciação das restantes questões levantadas pela Recorrente.
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Síntese conclusiva:
I – O artigo 1185º fixa os pressupostos de que depende a declaração da insolvência do devedor (não empresário), ou seja, quando o passivo do seu património é superior ao seu activo, o que se traduz na ideia de que, objectivamente, o devedor se encontra impossibilitado de dar cumprimento pontual às suas obrigações vencidas.
II – É de concluir pela verificação do estado de insolvência do Recorrido/Requerido (devedor) quando contra ele e contra a sociedade unipessoal de que ele é o único sócio, estão pendentes dois processo, um deu origem à declaração da falência da referida sociedade unipessoal, outro origina os presentes autos, e, está em causa uma dívida total que atinge o valor de MOP 118,919,765.25 (sem contar os juros moratórios), e ainda por outro lado, das diligências feitas resulta de que o Requerido não tem património suficiente para saldar a dívida em causa. Pelo que, é de declarar o Requerido em estado de insolvência nos termos peticionados.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao presente recurso, declarando-se em estado da insolvência o Requerido, A (A), julgando-se procedente o pedido da Recorrente/Requerente formulado na PI, revogando-se a decisão recorrida.
* * *
1) - Fixar em 60 dias para a reclamação de créditos.
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2) - Cumpra imediatamente os termos fixados no artigo 1089º/2 do CPCM.
* * *
3) - Remetam-se OPORTUNAMENTE os autos para o TJB para cumprir o ordenado.
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Custas em ambas instâncias a cargo do Recorrido/Requerido.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 25 de Fevereiro de 2021.
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
1 Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação cabal das razões em que se funda, com função legitimadora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1 .S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
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