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Processo n.º 1041/2019 Data do acórdão: 2021-3-4 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– negação do arguido da prática do crime
– prova bastante
– contraprova
S U M Á R I O
A simples negação pelo arguido, na audiência de julgamento, da prática do crime, sem apresentação, por ele mesmo, de qualquer elemento de prova concreto a suportar a sua tese de não ter praticado o crime, não tem a virtude de contraprovar a prova bastante da prática do crime por ele.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1041/2019
(Autos de recurso penal)
  Recorrente: Ministério Público
  Recorrido: 2.o arguido A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 282 a 290 do subjacente Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0330-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se decidiu absolver o 2.o arguido A da acusada prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de usura para jogo com exigência ou aceitação de documentos para garantia, p. e p. sobretudo pelos art.os 13.o, n.o 1, e 14.o da Lei n.o 8/96/M, em conjugação com o art.o 219.o, n.o 1, do Código Penal, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, alegando, na motivação apresentada a fls. 300 a 306v dos presentes autos correspondentes, que essa decisão recorrida padecia do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alíneas c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), para rogar a condenação penal do 2.o arguido nos termos legais por que vinha inicialmente acusado.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, emitiu parecer a fls. 325 a 326v, pela procedência do recurso, com consequente reenvio do processo para novo julgamento na parte afectada pelo vício de erro notório na apreciação da prova.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 282 a 290, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Segundo a matéria de facto aí dada como provada:
– O 2.o arguido e um indivíduo de identidade desconhecida chegaram a seguir a jogadora de casino ofendida dos autos, para pedir a esta que devolvesse o mais pressa possível o dinheiro emprestado (cfr. o facto provado 11);
– E esse indivíduo de identidade desconhecida tinha chegado, em momento antes, a devolver à ofendida o Passaporte Chinês, o Salvo-Conduto de Deslocações para Hong Kong e Macau e o Cartão de Identidade, todos dela (cfr. o facto provado 10), e chegado, há cerca de sete horas antes da entrega desses documentos, a pedir, em conjunto com o 1.o arguido chamado B, à ofendida a devolução do dinheiro emprestado (cfr. o facto provado 9).
3. O Tribunal recorrido deu por provada a factualidade (de usura para jogo com exigência de documentos da ofendida para garantia do empréstimo) acusada pelo Ministério Público em relação ao 1.o arguido (cfr. os factos provados 1.o a 8.o e 18.o a 20.o), tendo inclusivamente dado por provado que o 1.o arguido tinha chegado a vigiar os jogos praticados pela ofendida em casino, com cobrança de juros do empréstimo (cfr. o facto provado 6).
4. Dos autos, constam registadas as declarações prestadas na fase de inquérito penal pela ofendida para memória futura (cfr. o teor das declarações de fls. 37 a 38 dos autos, com remissão também ao teor de fls. 8 a 9 dos autos), e as declarações prestadas na fase de inquérito penal pelo 1.o arguido aquando do interrogatório dele pelo Ministério Público (cfr. o auto do interrogatório exarado a fl. 82 a 82v dos autos, com remissão também ao teor de fls. 57 a 58 dos autos), declarações essas dessas duas pessoas que foram lidas na audiência de julgamento realizada perante o Tribunal recorrido (cfr. o teor da acta da audiência, lavrada a fls. 256 a 257v dos autos).
5. Por outro lado, foram lidas também na mesma audiência de julgamento as declarações então prestadas pelo 2.o arguido em fase de inquérito à Polícia Judiciária, na parte concretamente constante dos últimos dois parágrafos de fl. 113v e do primeiro parágrafo de fl. 114 dos autos.
6. Foi visionado nessa audiência de julgamento o conteúdo da gravação visual dos jogos praticados pela ofendida (cfr. o teor da última página da acta da audiência, a fl. 257v dos autos).
7. Da leitura da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, em confronto com a factualidade descrita na acusação pública então deduzida pelo Ministério Público a fls. 187 a 189 dos autos, sabe-se que o Tribunal recorrido acabou por dar por não provados os factos acusados 6 e 7, e também por não provados os factos acusados 20 a 22 na parte atinente ao 2.o arguido.
8. O mesmo Tribunal explicou que não deu provado que o 2.o arguido tinha vigiado os jogos de casino praticados pela ofendida, apesar de o 1.o arguido, o próprio 2.o arguido e a ofendida terem referido que o 2.o arguido tinha vigiado no local, porque o 2.o arguido negou a prática do crime acusado na audiência, e também porque o termo “vigiar”, à falta de indicação de factos concretos respeitantes à conduta de vigiar, não passa de termo meralmente conclusivo, por um lado, e, por outro, nem se sabe com clareza qual o motivo concreto da conduta do 2.o arguido de vigiar (cfr. a fundamentação probatória tecida por esse Tribunal no último parágrafo da página 11 do texto do aresto recorrido, a fl. 287 dos autos).
9. O mesmo Tribunal referiu no 5.o parágrafo da fundamentação probatória do acórdão recorrido (escrito na página 10 do respectivo texto, a fl. 286v) que o 2.o arguido, nas declarações então prestadas e lidas na audiência de julgamento, admitiu que se tinha deslocado ao local para vigiar os jogos e para pedir a devolução do dinheiro emprestado.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A Digna Delegada do Procurador imputou, na motivação do recurso, ao Tribunal a quo o cometimento de erro notório na apreciação da prova aquando do julgamento dos factos acusados respeitantes ao 2.o arguido.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício previsto na alínea c) do n.o 1 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, penalmente absolutória do 2.o arguido, vislumbra-se que o Tribunal recorrido tenha violado leges artis e as regras da experiência no julgamento da matéria de facto a respeito desse arguido (e desde já entende o presente Tribunal de recurso que, para as pessoas em geral, o verbo “vigiar” é um vocábulo com significado concreto e nítido, que não carece de mais densificação), por razões seguintes:
Se o Tribunal recorrido já deu por provado (cfr. o facto provado 6) que o 1.o arguido chegou a vigiar a ofendida aquando da prática de jogos por ela em casino, não é razoável que não deu também por provado o facto acusado ao 2.o arguido no sentido de que este também vigiou a ofendida. É que (a) na gravação visual visionada na audiência de julgamento, não só se vê que o 1.o arguido andava a vigiar a ofendida na prática de jogos em casino, como se vê também que o 2.o arguido vigiou a mesma ofendida na mesma ocasião e local, e (b) como chegou o Tribunal recorrido a referir na fundamentação probatória da sua decisão ora recorrida, o 1.o arguido, a ofendida e o 2.o arguido referiram, em declarações então prestadas na fase de inquérito e na parte em que foram lidas na audiência de julgamento, que o 2.o arguido tinha vigiado no local dos factos. Portanto, esses elementos probatórios (a e b), à luz das leges artis a observar em matéria de julgamento de factos, devem ser tidos como elementos de prova que já criem no espírito do julgador a convicção da existência do facto, então acusado pelo Ministério Público ao 2.o arguido, de ter este vigiado a ofendida na prática dos jogos por esta em casino.
E sobre essa prova já bastante, ou já suficiente, da existência desse facto de ter o 2.o arguido vigiado a ofendida, o 2.o arguido nem chegou a oferecer qualquer elemento de prova susceptível de fazer criar no espírito do julgador a dúvida sobre a existência desse mesmo facto de ter ele vigiado a ofendida, uma vez que a simples negação, por ele na audiência de julgamento, da prática do crime de usura para jogo contra a ofendida, sem apresentação, por ele mesmo, de qualquer elemento de prova concreto a suportar a sua tese de não ter praticado este crime contra a ofendida, naturalmente não é capaz de gerar no espírito do julgador a dúvida séria sobre a existência desse facto acusado.
Em suma, no caso, manifestamente, o próprio 2.o arguido não conseguiu fazer contraprova daquela prova bastante ou suficiente de ter ele vigiado também a ofendida na prática de jogos em casino, sendo certo que nem o próprio Tribunal recorrido tenha referido ou invocado qualquer outro elemento probatório concreto que o tenha deixado na dúvida sobre a existência do facto de que o 2.o arguido vigiou também a ofendida nos jogos de casino.
Por outro lado, dados os elementos de prova referidos acima sob as alíneas a e b, e dados também o facto provado 6 (referenciado no ponto 3 da parte II do presente acórdão de recurso) e os factos provados 11, 10 e 9 (referenciados no ponto 2 da parte II do presente acórdão), o motivo que levou o 2.o arguido a vigiar a ofendida nos jogos em casino teve, vistas as coisas à luz das regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, naturalmente a ver com o plano de prática, em conjunto com o 1.o arguido e outrem de identidade desconhecida, do crime de usura para jogos contra ela, para efeitos de cobrança de juros.
Com efeito, se não fosse para efeitos de cobrança de juros à ofendida, não se perceberia o porquê de ter esse 2.o arguido vigiado a ofendida em jogos em casino por algumas horas de tempo, e de ter seguido, em conjunto com um indivíduo de identidade desconhecida, a mesma ofendida para pedir a esta que devolvesse o mais pressa possível o dinheiro emprestado, não se podendo esquecer de que foi esse indivíduo de identidade desconhecida quem devolveu os documentos à ofendida, e há cerca de sete horas antes da entrega desses documentos chegou a pedir (em conjunto com o 1.o arguido) à mesma ofendida a devolução do dinheiro emprestado.
Aliás, tal como referiu o Tribunal recorrido na fundamentação probatória da sua decisão ora recorrida, o 2.o arguido, nas declarações então prestadas e lidas na audiência de julgamento, admitiu que se tinha deslocado ao local para vigiar os jogos e para pedir a devolução do dinheiro emprestado.
Por todo o exposto, a simples negação, pelo 2.o arguido na audiência, da prática do crime de usura, sem outro elemento probatório concreto a suportar essa posição defendida por ele na audiência, não dá para neutralizar os elementos de prova bastante acima referidos.
Razões todas acima explicadas que demonstram a desrazoabilidade do resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido na parte respeitante ao 2.o arguido, de maneira que fica constatado o vício de erro notório na apreciação da prova, por parte desse Tribunal, aquando do julgamento dos factos acusados concernentes a esse arguido.
Há, pois, que reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o objecto probando do processo em relação ao 2.o arguido para novo julgamento, cabendo ao novo Tribunal Colectivo no Tribunal Judicial de Base julgar os factos acusados 6 e 7 e também os factos acusados 20 a 22 (mas quanto a estes três factos acusados, somente na parte atinente ao 2.o arguido), e depois, em função do resultado desse novo julgamento, em conjugação com todos os factos já dados por provados no acórdão recorrido, julgar de novo a causa a respeito do mesmo 2.o arguido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando, por conseguinte, o objecto do processo em relação ao 2.o arguido A para novo julgamento, nos termos acima especificados.
Sem custas.
Macau, 4 de Março de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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