Processo n.º 643/2020
(Autos de recurso contencioso)
Relator: Fong Man Chong
Data : 11 de Março de 2021
Assuntos:
- Processo disciplinar e escolha de medida punitiva
SUMÁRIO:
I – Em processo disciplinar dos agentes da Administração Pública, a escolha da medida disciplinar corresponde ao exercício de um poder discricionário em relação ao qual os poderes sindicantes do tribunal é limitado, pois que só pode actuar erro manifesto ou total desrazoabilidade nesse exercício ou violação intolerável dos princípios gerais que regem a actividade administrativa, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade.
II – Quando dos elementos dos autos não resultam que a Entidade Recorrida tenha agido de forma totalmente desrazoável ou em flagrante e intolerável violação do princípio da proporcionalidade ou do princípio da justiça, o vício de violação de lei que o Recorrente imputou ao acto recorrido não pode deixar de claudicar, improcedendo assim o recurso interposto pelo Recorrente.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo n.º 643/2020
(Autos de recurso contencioso)
Data : 11/Março/2021
Recorrente : A
Entidade Recorrida : Secretário para a Segurança
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I – RELATÓRIO
A, Recorrente (bombeiro), devidamente identificado nos autos, discordando do despacho do Secretário para a Segurança, datado de 15/05/2020, que lhe aplicou a pena de demissão, discordando desta decisão, veio, em 29/06/2020 interpor o presente recurso contencioso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 2 a 31, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A responsabilidade disciplinar e a responsabilidade penal são independentes entre si.
2. O regime do n.° 2 do art. 263.° não implica que ao recorrente disciplinar deva ser sempre e necessariamente aberto um processo disciplinar ou que, caso seja aberto, lhe deva sempre ser aplicada uma sanção disciplinar.
3. Diferentemente, o que resulta do n.º 2 do art. 263.° é apenas que devem ser considerados estabilizados os elementos de facto da eventual infracção disciplinar: a existência material e a autoria dos factos imputados ao recorrente sendo que, em sede de processo disciplinar, é ainda sempre necessário determinar cumulativamente todos os demais circunstancialismos e elementos de contexto - por exemplo, causas de exclusão da responsabilidade ou causas de inexigibilidade - que existam em cada caso e que possam afastar a responsabilidade disciplinar.
4. Não basta estarem estabilizados os elementos de facto provenientes de uma sentença penal para que possa estar imediatamente caracterizada uma infracção disciplinar e é precisamente por isto que se dispõe que a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade penal são independentes.
5. Os elementos que constam dos subjacentes autos disciplinares apontam que o que esteve na base dos factos em questão foi, verdadeiramente, uma conduta pessoal exclusiva da esposa do aqui recorrenteo, Sr.ª B.
6. O recorrente limitou-se - de boa-fé e no seu dia de folga - a executar um pedido ou favor exactamente semelhante a outros anteriores que a sua esposa já lhe tinha feito.
7. A boa fé e a recta consciência do recorrente quanto ao sucedido se prova pelo facto de que a Polícia apenas foi capaz de o contactar porque o recorrente tinha deixado todos os seus dados de identificação e contacto na loja de penhor, ciente de que nada tinha a temer, esconder ou evitar.
8. Ninguém deve responder ou ser responsabilizado sancionatoriamente por um acto pessoal da autoria e responsabilidade de um terceiro, mesmo que se trate de um acto pessoal praticado pelo respectivo cônjuge.
9. Caso esteja em causa uma actuação exterior e externa à pessoa do recorrente, não pode nem deve este ser penalizado nem castigado disciplinarmente pela mesma.
10. Se a esposa do recorrente lhe mentiu - ou se não lhe disse a totalidade da verdade - essa situação só poderia responsabilizar o recorrente se este soubesse dessa mentira, dessa meia-verdade ou, ainda, se mesmo não sabendo, tivesse algum motivo ou fundamento legítimo para suspeitar ou duvidar da palavra da sua esposa, o que nunca ocorreu in casu e, por nunca ter ocorrido, nunca ficou provado ou sequer indiciado seja no processo penal seja em sede do processo disciplinar.
11. O recorrente foi in casu um mero executante material de boa-fé de um pedido de favor que lhe foi feito pela sua esposa, de nada se devendo daí ter extraído em sede da decisão a quo para efeitos da sua responsabilização disciplinar.
12. Se o recorrente foi porventura como que vítima de ter confiado e acreditado na sua esposa, tal não pode conduzir à aplicação de uma pena disciplinar, sobretudo à mais grave e severa de tais penas!
13. Está caracterizado, na situação vertente, um quadro de inexigibilidade: não é legítimo nem razoável que o recorrente deixasse de confiar na palavra da sua esposa de que ela tinha encontrado um relógio e que, por não o querer guardar, o pretendia trocar pelo seu valor pecuniário.
14. Trata-se, pois, de um quadro de não exigibilidade de conduta diversa que deveria ter levado, prima facie, à não dedução de uma acusação disciplinar e que, seja como for, sempre deveria ter levado à absolvição do recorrente em sede da decisão aqui impugnada.
15. Em sede da pena aplicada não foram consideradas nem valoradas duas circunstâncias atenuantes: que, apesar de o recorrente ter actuado materialmente sem qualquer dolo, logo que tomou conhecimento do contexto dos eventos, tomou todas as diligências possíveis para reverter o ocorrido e, assim, resgatou o relógio na casa de penhor e entregou-o nos autos criminais a título de restituição.
16. O recorrente praticou os actos meramente materiais que lhe foram imputados no seu dia de folga, isto é, não estava de serviço, trajando meramente à civil, sem utilizar a respectiva farda corporativa.
17. O recorrente não deu qualquer publicidade exterior a quaisquer dos actos que lhe estão imputados, limitando-se a responder sempre por escrito nos termos dos respectivos procedimentos instaurados.
18. Por outro lado, nenhum dano adveio quer ao Serviço (o Corpo de Bombeiros) quer ao público (o conjunto de beneficiários da actuação funcional dos serviços prestados pelo Corpo de Bombeiros).
19. Por fim, estão em causa actos sem qualquer mínima conexão com o Serviço de Bombeiros.
20. Sem prejuízo da não exigibilidade de conduta diversa, em sede da pena aplicada não se fundamentou por que concreto motivo a conduta imputada teria de inviabilizar a manutenção da relação jurídico-funcional.
21. A pena de suspensão de 121 a 240 dias prevista no art. 237.° do EMFS é precisamente de aplicar em «(...) procedimento que afecte gravemente a dignidade e o prestígio pessoal ou da função (...)», ou seja - sempre sem conceder -, se acaso a Administração quisesse visar o valor jurídico da dignidade e prestígio da função, sempre deveria ter lançado mão de uma medida sancionatória não determinativa da ruptura da relação laboral.
22. O T.S.I., no acórdão de 30 MAI 2019 no processo n.º 994/2018, em que foi relator o Exm.º Dr. FONG MAN CHONG, bem como o T.U.I. no acórdão proferido no processo n.º 11/2019 de 4 ABR 2019, salientam o papel primordial do princípio da proporcionalidade e da proibição de excesso em sede de determinação e graduação da pena disciplinar.
23. Estando em causa factos de 2017 a que se veio agora aplicar pena de demissão, não se descortina por que motivo tal pena máxima entretanto aplicada jamais justificou sequer por parte da Administração a suspensão preventiva do recorrente pois, acaso fossem efectivamente tão gravosas ao nível máximo as condutas do recorrente, tal teria sido certamente determinado ex oficio pela Administração.
24. O requerente é funcionário público e sempre foi um trabalhador competente, diligente, cumpridor dos objectivos e das ordens dos seus superiores hierárquicos, assíduo e pontual, pautando sempre o seu comportamento por um rigor estrito em função do interesse público, tendo tomado posse como funcionário público da R.A.E.M. em 2008, trabalhando desde então na Direcção dos Serviços Correccionais, no Corpo de Bombeiros.
25. Por outro lado, sempre com o intuito de se valorizar permanentemente e, desse modo, estar mais apto a prestar as suas funções profissionais, o recorrente disponibilizou-se para obter diversas formações, valências e competências, designadamente a licença de primeiros socorros, a carta de condução de ambulância e a formação como instrutor de saúde e fitness.
26. Por outro lado, o recorrente não tem quaisquer antecedentes disciplinares ao longo da sua carreira de funcionário público iniciada há 12 anos, tendo tido sempre bom no comportamento e avaliações anuais.
27. A decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação do art. 198.°, do n.º 2 do art. 263.°, no art. 195.°, no n.º 1 do art. 196.°, no art. 202.°, no art. 200.°, n.º 2, alíneas e) e f), e no art. 237.°, todos do E.M.F.S., e do art. 5.° do C.P.A.
28. Consequentemente, atentos esses vícios de violação de lei, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, invalidades que aqui se invocam como fundamentos específicos para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.° e a al. d) do n.º 1 do art. 21.° do C.P.A.C.
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Citada a Entidade Recorrida, o Senhor Secretário para a Segurança veio contestar o recurso com os fundamentos constantes de fls. 59 a 63, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O arguido, Bombeiro n.º 4XXX21, A, foi condenado por Acórdão, proferido no Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0194-PCC, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, transitado em julgado na sequência de improcedência de recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância - Processo n. ° 762/2109.
2. Foi-lhe aplicada a pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de Burla - 211.° n.° 3 do Código Penal -, integrado pela venda, no dia 6 de Maio de 2017, numa casa de penhores, de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do Acórdão condenatório a que se alude acima.
3. A condenação definitiva em acção penal constitui caso julgado em matéria disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos, nos termos do disposto no artigo 263.° do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro sendo nos factos que fundamentaram a condenação do arguido e que aqui, por brevidade, se dão como inteiramente reproduzidos, que se fundamentou a acusação e o consequente despacho de demissão cuja impugnação é objecto dos presentes autos.
4. O recorrente pede a anulação da decisão impugnada prevalecendo-se do vício de violação de lei, consubstanciado, em suma, na inexigibilidade de conduta diversa daquela que adoptou e na violação do princípio da proporcionalidade, para o que se prevalece da ausência de dolo, da confissão espontânea dos factos e reparação do dano, do bom comportamento anterior e do bom desempenho profissional, bem como da inexistência de prejuízo para o serviço, sua reputação e prestígio.
5. O crime de Burla, pelo qual foi condenado o recorrente, exige dolo como elemento do tipo e, sendo assim, a intenção criminosa, bem como a exigibilidade de conduta diversa, estão definitivamente consolidados, por via dos efeitos do caso julgado criminal anos termos do supracitado artigo 263.° do EMFSM.
6. Ao adoptar esta conduta dolosa, pela qual foi condenada, o recorrente violou, com elevada intensidade de culpa, o dever de aprumo previsto no artigo 11.° Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, na expressão da alínea f) - não praticar acções contrárias à ética, à deontologia funcional, brio ou ao decoro das FSM e o) do seu n.°2 - não praticar qualquer acção ou omissão que posa constituir ilícito criminal ou contravencional - , infracção que resulta agravada pela circunstância da alínea f) - infracção comprometedora da honra, do brio ou do decoro pessoal ou da instituição do n.º 2 do artigo 201.° daquele estatuto.
7. O recorrente, ao omitir ter sido constituído arguido num processo crime, violou, também o dever de zelo, a que está sujeito nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 8.° - todos os artigos citados do EMFSM supra referido.
8. De resto foram ponderadas as circunstâncias atenuantes que o recorrente reclama como determinantes para a atenuação da pena de Demissão: "Esta conduta criminosa, pese embora as circunstâncias que a atenuam, designadamente as previstas nas alíneas b) e) e h) do n.º 2 do artigo 200.º, citando o despacho impugnado.
9. A conduta criminal de um agente de uma corporação das forças de segurança, em quem a população projecta um sentimento de confiança e segurança, é sempre prejudicial à respectiva imagem, prestígio e decoro, o que fundamenta a respectiva agravação nos termos da alínea f) do n.° 2 do artigo 201.° do EMFSM "prejuízo para o interesse geral e de terceiros"
10. A integração duma corporação das forças de segurança inculca sempre, não só pela letra do especial estatuto a que estão sujeitos, mas pelo conjunto de valores imateriais que a população em geral nelas revê, um comportamento moral e cívico acima de qualquer suspeita, irrepreensível e probo, sendo seu dever manter uma postura na sua vida privada que reforçe em permanência a sua própria dignidade pessoal e profissional, como membro de uma das suas corporações, bem como o prestígio da instituição
11. Assim, a gravidade da lesão do interesse púbico deve ser olhada pelo prisma de uma constelação de deveres que impende sobre o agente, valores esses que sao essenciais à coesão e disciplina de grupo e espírito de corpo, bem como à imagem reflectida na sociedade.
12. Negar esses valores é ferir a integridade das forças e serviços de segurança, sendo esse o sentido do disposto na alínea f) do n.º do artigo 238.° e alínea c) do artigo 240.°, também do EMFSM, ao cominar com pena de demissão as infracções disciplinares decorrentes da prática de determinados crimes, designadamente, o crime de Burla,
13. Integrando as forças de segurança, instituição em quem a sociedade projecta uma especial reserva de valores morais e cívicos que não se compadecem com o não cumprimento da lei,
14. A conduta do recorrente é de per si indigna de um servidor público e mormente daqueles que integram as forças de segurança, sobre quem a população faz recair uma convicção de especial correcção e identificação com a ordem jurídica, bem como com os valores e interesses por elas tutelados.
15. Assim, não obstante a vinculação à lei e aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a verdade é que, no exercício dos poderes discricionários concedidos à administração, a entidade recorrida não teve dúvidas quanto à inviabilidade da manutenção da relação funcional do recorrente com as forças de segurança e o Corpo de Bombeiros em particular.
16. A gravidade dos factos justifica a severidade da pena expulsiva e, não podendo ao recorrente, por não reunir o requisito de tempo de serviço, ser aplicada a pena de aposentação compulsiva, restou à entidade recorrida a punição com pena de demissão, a única que acautela a desligação da corporação.
17. Improcedem, para a entidade recorrida, as razões invocadas, reiterando em abono da decisão tomada, a razoabilidade, a proporcionalidade e a justiça relativa da sua formação e prolação.
Em conclusão:
- Não se antolha qualquer irracionalidade, injustiça, desproporcionalidade ou ilegalidade no acto administrativo, pelo que não pode proceder o alegado vício de violação de lei.
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O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o douto parecer constante de fls. 81 a 84, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS
São os seguintes elementos, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
- O arguido, Bombeiro n.º 4XXX21, A, foi condenado por Acórdão, proferido no Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0194-PCC, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, transitado em julgado na sequência de improcedência de recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância - Processo n. ° 762/2109.
- Foi-lhe aplicada a pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de Burla - 211.° n.° 3 do Código Penal -, integrado pela venda, no dia 6 de Maio de 2017, numa casa de penhores, de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do Acórdão condenatório a que se alude acima.
- Foi instaurado o processo disciplinar contra o Recorrente, tendo sido proferia pela Entidade Recorrida a seguinte decisão que foi notificada ao Recorrente oportunamente:
DESPACHO n.° 046/SS/2020
Processo Disciplinar n.° D62/19/NOV
Arguido: Bombeiro n.º 4XXX21, A
Resulta dos presentes autos de processo disciplinar que o arguido, Bombeiro n.º 4XXX21, A, foi condenado por Acórdão, proferido no Processo Comum Colectivo n.º CR3-18-0194-PCC, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, transitado em julgado na sequência de improcedência de recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância - Processo n.° 762/2109.
A condenação definitiva em acção penal constitui caso julgado em matéria disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos, nos termos do disposto no artigo 263.° do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro sendo nos factos que fundamentaram a condenação do arguido e que aqui, por brevidade, se dão como inteiramente reproduzidos, que se fundamentou a acusação deduzida nos presentes autos.
O arguido foi, pois, condenado na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de Burla - 211.° n.º3 do Código Penal -, integrado pela venda, no dia 6 de Maio de 2017, numa casa de penhores, de um relógio de que a sua esposa se terá apropriado ilegitimamente, nas demais circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam do Acórdão condenatório a que se alude acima.
Esta conduta criminosa, pese embora as circunstâncias que a atenuam, designadamente as previstas nas alíneas b) e) e h) do n.º 2 do artigo 200.° viola o dever de aprumo na dupla formulação das suas alíneas f) - não praticar acções contrárias à ética, à deontologia funcional ou ao decoro das forças de segurança e o) - não praticar qualquer acção ou omissão que possa constituir ilícito criminal ou contravencional - do respectivo n.° 2, infracção agravada pela circunstância do prejuízo para o interesse geral e de terceiros prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 201.°, bem como, ao não informar os seus superiores da pendência de um processo crime em que figurava como arguido, violou o dever de zelo, a que está sujeito nos - termos da alínea b) do n.° 2 do artigo 8.°- todos os artigos citados do EMFSM supra referido.
A conduta criminal de um agente de uma corporação das forças de segurança, em quem a população projecta um sentimento de confiança e segurança, é sempre prejudicial à respectiva imagem, prestígio e decoro, não sendo desejável manter nas fileiras quem nega esse inalienável valor bem como a sua própria integridade, sendo esse o sentido do disposto na alínea f) do n.º do artigo 238.° e alínea c) do artigo 240.º, também do EMFSM, ao cominar com pena de demissão as infracções disciplinares decorrentes da prática de determinados crimes, designadamente, o crime de Burla.
O Secretário para a Segurança, no uso dos poderes executivos que lhe advêm do n.º1 da Ordem Executiva n.º182/2019, com referência à competência disciplinar atribuída pelo Anexo G ao artigo 211.° daquele diploma estatutário;
Ouvido o Conselho de Justiça e Disciplina;
Ponderada a responsabilidade do arguido e o desvalor da conduta, bem como o demais circunstancialismo de facto, tal como as invocadas atenuantes e a agravante supra caracterizadas, PUNE o Bombeiro n.º 4XXX21, A, com a pena disciplinar de DEMISSÃO, a que se refere o artigo 224.° do EMFSM
Notifique o arguido do presente despacho e de que do mesmo pode recorrer contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância, no prazo de 30 dias após a respectiva notificação.
Macau, aos 15 de Maio de 2020
O Secretário para a Segurança
C
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IV – FUNDAMENTOS
Ora, a propósito das questões levantadas pelo Recorrente neste recurso, o Digno. Magistrado do MP junto deste TSI teceu as seguintes doutas considerações:
“(…)
2.1.
Alegou o Recorrente que «não basta estarem estabilizados os elementos de facto provenientes de uma sentença penal para que possa estar imediatamente caracterizada uma infracção disciplinar» uma vez que responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal são independentes (cfr. artigo 10.º da petição inicial).
Parece-nos, no entanto, que o Recorrente não tem razão.
Nos termos do n.º 2 do artigo 263.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), «a condenação definitiva proferida em acção penal constitui caso julgado em processo disciplinar quanto à existência material e autoria dos factos imputados ao militarizado».
Resulta desta norma, portanto, que não podem voltar a discutir-se no processo disciplinar os factos imputados ao militarizado e a respectiva autoria.
Ora, o que o Recorrente vem alegar no presente recurso contencioso, basicamente, é que foi um mero executante material de um pedido que lhe foi feito pela esposa. Mas a verdade é que não pode fazer. Com efeito, face ao disposto no n.º 2 do artigo 263.º do EMFSM não pode mais discutir-se que o Recorrente actuou com dolo e que, portanto, não foi um mero executante material e que desconhecia que a sua mulher se havia apropriado ilicitamente do relógio que o Recorrente entregou na casa de penhores em troca do valor pecuniário correspondente.
Por isso, também não faz sentido o Recorrente invocar a sua falta de dolo, uma vez que o crime de burla por cuja prática foi condenado é um crime doloso.
Deve, pois, improceder este fundamento do recurso.
2.2.
Alega igualmente o Recorrente que a sua actuação não prejudicou seriamente a reputação e a dignidade das forças de segurança da Região.
Mas também neste ponto nos parece que lhe falta razão.
É evidente que o cometimento de um crime doloso por parte de um elemento militarizado das forças de segurança de Macau se reflecte negativamente e de forma séria na reputação e dignidade de toda a corporação. Não por acaso, o legislador tipificou, na norma da alínea o) do n.º 2 do artigo 11.º do EMFSM, como conduta susceptível de integrar uma infracção disciplinar por violação do dever de aprumo, o cometimento de actos susceptíveis de constituir crime ou contravenção. Subjacente a essa previsão está, com certeza, a presunção de que tal conduta se reflecte negativamente na imagem, na reputação, no prestígio das próprias Forças de Segurança.
2.3.
Finalmente, o Recorrente questiona a escolha concreta da sanção disciplinar que lhe foi aplicada, alegando, por um lado, que não está fundamentada e, por outro lado, que é violadora do princípio da proporcionalidade, sustentando que lhe deveria ter sido aplicada a pena de suspensão.
Sem razão, no entanto.
2.3.1
A norma do artigo 114.º, n.º 1, alínea b) do Código do Procedimento Administrativo (CPA) impõe o dever legal de fundamentação dos actos administrativos, a qual, de acordo com o artigo 115.º, n.º 1 do CPA, deve ser expressa e conter uma sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão.
Como é sabido e é recorrentemente assinalado nas decisões judiciais que abordam a matéria, o dever de fundamentação dos actos administrativos tem, geneticamente, uma função endógena de propiciar a reflexão da decisão pelo órgão administrativo e uma função exógena, externa ou garantística de facultar ao cidadão a opção consciente entre o conformar-se com tal decisão ou afrontá-la em juízo (entre muitos outros, veja-se, neste sentido, o Ac. do Tribunal de Segunda Instância de 7.12.2011, Processo nº 510/2010).
Pode dizer-se que um acto está fundamentado sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal fica a conhecer as razões que estão na sua génese, para que, se quiser, o possa sindicar de uma forma esclarecida. Na certeza de que o dever de fundamentação do acto administrativo é um conceito de geometria variável, pois que se molda e adapta conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto.
Analisado o acto recorrido é para nós evidente que foi nele plenamente observado o dever de fundamentação formal, único de aqui cuidamos e cuja violação foi alegada pois que dele constam os factos e as razões jurídicas que suportaram a decisão.
Parece-nos, por isso, que deve improceder o invocado vício da falta de fundamentação.
2.3.2.
Em matéria de escolha da pena disciplinar, dispõe o n.º 1 do artigo 238.º do EMFSM que «as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional».
Por sua vez, do n.º 2 do dito artigo resulta que «As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
(…)
f) Praticar de forma frustrada, tentada ou consumada crime de furto, roubo, burla, abuso de confiança, peculato, concussão, extorsão, peita, suborno e corrupção, associação de malfeitores, consumo e tráfico de estupefacientes, falsificação de documentos e pertença a sociedade secreta;
(…)».
Por seu turno, o artigo 240.º do mesmo diploma legal preceitua:
«A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º».
A propósito da escolha da pena disciplinar, ponderou-se no acto recorrido, depois do correcto enquadramento jurídico-disciplinar dos factos praticados pelo Recorrente, o seguinte:
«A conduta criminal de um agente de uma corporação das forças de segurança, em quem a população projecta um sentimento de confiança e segurança, é sempre prejudicial à respectiva imagem, prestígio e decoro, não sendo desejável manter nas fileiras quem nega esse inalienável valor bem como a sua própria integridade, sendo esse o sentido do disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 238.º e alínea c) do artigo 240.º do EMFSM, ao cominar com pena de demissão as infracções disciplinares decorrentes da prática de determinados crimes, designadamente, o crime de burla».
Não vemos que o acto recorrido, nesta parte, possa censurar-se. A conduta do Recorrente cabe, de pleno, na previsão normativa da alínea f) do n.º 2 do Artigo 238.º e na alínea c) do artigo 240.º do EMFSM, sendo certo, ademais, que a dita conduta inviabiliza irremediavelmente a manutenção do vínculo funcional tal como se referiu na decisão recorrida.
De resto, a escolha da medida disciplinar corresponde ao exercício de um poder discricionário em relação ao qual os poderes sindicantes do tribunal é limitado, pois que só pode actuar erro manifesto ou total desrazoabilidade nesse exercício ou violação intolerável dos princípios gerais que regem a actividade administrativa, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade.
Ao tribunal não compete dizer se, no caso, aplicaria ou não a pena disciplinar de demissão. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é outro, é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários», nomeadamente, por violação intolerável, flagrante, evidente do princípio da proporcionalidade ou outro (também assim, Ac. do TUI de 19.11.2014, processo n.º 112/2014 e Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
Nesta como noutras situações, «há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação dos princípios orientadores do exercício de poderes discricionários, tais como da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça» (assim, ainda que a propósito de situação que não é coincidente, Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
A nosso ver, não se pode dizer, de forma alguma, que a Entidade Recorrida tenha agido de forma totalmente desrazoável ou em flagrante e intolerável violação do princípio da proporcionalidade ou do princípio da justiça e por isso nos parece que o vício de violação de lei que o Recorrente imputou ao acto recorrido não pode deixar, também ele, de claudicar.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado improcedente.”
Em face de douta argumentação acima transcrita, que subscrevemos inteiramente e que é reproduzida para a fundamentação da decisão deste TSI, não havendo mais elementos que importa acrescentar, é de julgar improcedente o recurso nos termos acima analisados, mantendo-se a decisão recorrida.
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Síntese conclusiva:
I – Em processo disciplinar dos agentes da Administração Pública, a escolha da medida disciplinar corresponde ao exercício de um poder discricionário em relação ao qual os poderes sindicantes do tribunal é limitado, pois que só pode actuar erro manifesto ou total desrazoabilidade nesse exercício ou violação intolerável dos princípios gerais que regem a actividade administrativa, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade.
II – Quando dos elementos dos autos não resultam que a Entidade Recorrida tenha agido de forma totalmente desrazoável ou em flagrante e intolerável violação do princípio da proporcionalidade ou do princípio da justiça, o vício de violação de lei que o Recorrente imputou ao acto recorrido não pode deixar de claudicar, improcedendo assim o recurso interposto pelo Recorrente.
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Tudo visto, resta decidir.
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V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo Recorrente que se fixa em 6 UCs.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 11 de Março de 2021.
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Fong Man Chong Mai Man Ieng
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Ho Wai Neng
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Tong Hio Fong
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