Processo nº 947/2020
(Autos de Recurso Cível e Laboral)
Data do Acórdão: 11 de Março de 2021
ASSUNTO:
- Regime de bens na participação dos adquiridos
- Divórcio
- Contrato de promessa de partilha
SUMÁRIO:
- No regime de bens de participação nos adquiridos cada um dos cônjuges conserva o domínio e fruição dos bens que adquiriu durante a vigência do regime, sem prejuízo das excepções previstas na lei, em situação análoga à dos bens próprios nos demais regimes de bens;
- Após a dissolução do casamento ou cessação do regime é aferido o património em participação de cada um dos cônjuges e aquele cujo valor for inferior tem direito ao crédito em participação que corresponde a metade da diferença de valor entre os patrimónios;
- É nula qualquer cláusula que implique a redução do crédito em participação em menos de 50% da diferença de valor entre os patrimónios ou a renúncia ao mesmo antecipadamente, isto é, antes da cessação do regime, sem prejuízo da caducidade prevista no artº 1596º do C.Civ.;
- O contrato ou acordo entre os cônjuges onde não se estipule o valor dos patrimónios em participação, nem o valor do crédito em participação não pode ser havido como contrato de promessa de partilha;
- Na sequência da cessação do regime da participação nos adquiridos o inventário de acordo com o disposto no nº 2 do artº 1028º do CPC destina-se apenas a apurar o valor do crédito em participação e condenação do devedor no respectivo pagamento o que haverá de ser feito em dinheiro sem prejuízo dos casos excepcionais que a lei autoriza que seja feito pela entrega de bens determinados.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 947/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 11 de Março de 2021
Recorrente: A
Recorrido: B
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
Nos autos de inventário para partilha de bens na sequência do divórcio decretado entre B e A, foi proferido despacho a fls. 58 (traduzidos a fls. 134 e ss.) daqueles autos, datado de 05.03.2020 segundo o qual foi julgado válido o acordo de divórcio celebrado em 29.03.2017.
Não se conformando com o despacho referido a interessada A veio interpor recurso daquele apresentando as seguintes conclusões e pedido:
1. Em 13 de Janeiro de 2005, a recorrente e o recorrido contraíram casamento em Macau no regime da participação nos adquiridos. Em 30 de Março de 2017, eles pediram instaurar o processo de divórcio por mútuo consentimento, em 1 de Junho de 2017 a decisão de declaração da dissolução do casamento transitou-se em julgada.
2. Em 29 de Março de 2017, antes de apresentação do pedido de divórcio por mútuo consentimento, a recorrente e o recorrido celebraram o acordo de divórcio, no qual não são enumerados os bens do recorrido desfrutáveis, ao contrário, só são enumerados os bens imóveis da recorrente a distribuir directamente ao recorrido por meios diversos.
3. Em 23 de Maio de 2019, o recorrido pediu instaurar o processo de inventário (o presente processo) ao abrigo do art.º 1028.º do Código de Processo Civil, em conjugação com o art.º 963.º n.º 1 e ss., e juntou o acordo de divórcio ao pedido.
4. Na conclusão do despacho recorrido, o Tribunal a quo suporta, por um lado, que, após o divórcio, a recorrente e o recorrido devem valorar todos os bens para calcular o crédito; por outro lado, indica que, os cônjuges já distribuíram a maioria dos bens pelo acordo de divórcio, portanto, os outros bens não incluídos no acordo não podem ser distribuídos segundo o regime da participação nos adquiridos.
5. O Tribunal a quo apoia ou opõe-se à aplicação do regime da participação nos adquiridos à recorrente e o recorrido?
6. Com base nisso, a recorrente entende que o despacho recorrido padece do vício de nulidade previsto pelo art.º 571.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, portanto, pede-se que seja julgado nulo o despacho recorrido.
7. O despacho recorrido qualifica o acordo de divórcio como contrato-promessa de partilha dos bens previamente constituído para a distribuição dos bens do casamento com o fim de divórcio.
8. Todavia, a recorrente e o recorrido escolheram o regime da participação nos adquiridos, ao abrigo dos art.º 1582.º e 1603.º do Código Civil, aquando da dissolução do casamento, a recorrente e o recorrido só têm, pelo mais, a relação de crédito e dívida, isto é, os bens próprios da recorrente e do recorrido não são bens comuns do casamento.
9. Desde que a recorrente e o recorrido não têm bens comuns do casamento, onde há coisa comum a partilhar? Onde há objecto de partilha?
10. Se o objecto de partilha (bens comuns do casamento) não existe desde o início, a celebração do acordo constitui a impossibilidade do objecto, então, o acordo de partilha entre a recorrente e o recorrido é nulo, ao abrigo do art.º 273.º n.º 1 do Código Civil, em conjugação com o art.º 395.º n.º 1 e 3.
11. Além disso, no acordo de divórcio não são enumerados os bens de ambos cônjuges, nem são calculados e confirmados o titular e o valor do crédito decorrente do regime da participação nos adquiridos, o acordo limita-se a distribuir directamente os bens próprios da recorrente ao recorrido.
12. Por isso, o acordo de divórcio altera por ele próprio a fracção do crédito imperativamente prevista pelo art.º 1582 n.º 2 do Código Civil. Ao abrigo do art.º 1582.º n.º 4 do Código Civil, a alteração da fracção no acordo de divórcio é nula.
13. E mais, ao abrigo dos art.º 287.º e 273.º n.º 1 do Código Civil, O acordo de divórcio viola as disposições legais de carácter imperativo, portanto, é nulo.
14. Por outro lado, o acordo de divórcio nunca menciona o crédito decorrente do regime da participação nos adquiridos de forma qualquer, até não menciona qualquer património do recorrido desfrutável, mas sim distribui directamente os bens da recorrente, origina-se aqui a renúncia ao crédito.
15. Ao abrigo do art.º 1597.º n.º 1 do Código Civil, “É nula qualquer renúncia antecipada ao crédito na participação.” Por isso, o acordo de divórcio é nulo por conter a renúncia antecipada ao crédito.
16. O despacho recorrido qualifica o acordo de divórcio como contrato-promessa de partilha dos bens, porém, o acordo exige à recorrente alienar incondicionalmente ao recorrido os seus bens próprios (o Apartamento H do 18º andar do Edf. Pearl On The Lough, que foi comprado pelo preço de MOP$14.420.000,00 e o parque de estacionamento n.º 72 do Edf. Pearl On The Lough, que foi comprado pelo preço de 1.955.100,00), descontando o valor do empréstimo bancário não quitado, o recorrido poderá obter os interesses dos 2 bens imóveis pelo menos no valor de HKD$7.500.000,00 e no valor de MOP$1.955.100,00.
17. Deste modo, o acordo exclui a aplicação do art.º 1582.º n.º 2 do Código Civil (disposição sobre o crédito e a dívida no regime da participação nos adquiridos) e demanda directamente que a recorrente preste ao recorrido pelo menos uma quantia de HKD$7.500.000,00 e uma quantia de MOP$1.955.100,00. Portanto, o acordo altera o regime de bens do casamento entre a recorrente e o recorrido, tem a natureza de convenção pós-nupcial.
18. Ao abrigo dos art.º 1578.º n.º 3 e 1574.º do Código Civil, as convenções pós-nupciais só são válidas se forem celebradas por escritura pública ou pela forma consagrada nas leis do registo civil. Porém, o acordo de divórcio foi celebrado por documento particular, ao abrigo do art.º 212.º do Código Civil, o acordo de divórcio é nulo por carecer da forma legalmente prescrita.
Ou
19. O acordo de divórcio distribui directamente ao recorrido os bens imóveis da recorrente, pode-se ver que, no acordo a recorrente presta 2 declarações de vontade de liberalidade.
20. Nos termos do art.º 934.º n.º 1 do Código Civil, “Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”, deste modo, o acordo de divórcio é obviamente um contrato de doação dos bens imóveis.
21. Ao abrigo do art.º 941.º n.º 1 do Código Civil em conjugação com o art.º 94.º n.º 1 do Código do Notariado, o contrato de doação de bens imóveis tem que ser celebrado por escritura pública. Pelo que, ao abrigo do art.º 212.º do Código Civil, o acordo de divórcio é nulo por carecer da forma legalmente prescrita.
Ou
22. A recorrente e o recorrido celebraram antes do divórcio o acordo de divórcio, no qual só dispõe que, após o divórcio, a recorrente deve dar gratuitamente ao recorrido o Apartamento H do 18º andar e o parque de estacionamento n.º 72 do Edf. Pearl On The Lough.
23. O acordo de divórcio foi previamente constituído com o fim de divórcio, é contrato-promessa ao abrigo dos art.º 404.º n.º 1 e art.º 934.º n.º 1 do Código Civil.
24. Segundo o conteúdo do acordo, após o divórcio, a recorrente deve dar gratuitamente ao recorrido os seus bens imóveis próprios, a recorrente prestou declarações de vontade de liberalidade, o recorrido vai beneficiar-se da liberalidade da recorrente.
25. Nos termos do art.º 934.º n.º 1 do Código Civil, “Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”, deste modo, o acordo de divórcio é obviamente um contrato de doação.
26. Tendo em conta que um componente do contrato de doação é a declaração de vontade de liberalidade, em vista da natureza da obrigação assumida no contrato de doação, não se pode celebrar um contrato da natureza de promessa para realizar um acto de doação, por isso, o acordo de divórcio é um contrato-promessa de doação e, assim sendo, nulo.
27. Mesmo que o Tribunal reconheça que o acto de doacção pode ser realizado através de celebração do contrato-promessa, o contrato de doação depende do animus do agente (doador) como requisito, por isso, quando haja um contrato-promessa de doação e o doador não queira cumprir a obrigação, não se pode substituir o doador por meio judicial para cumprir a sua devida prestação.
28. Em face da natureza da obrigação assumida no acordo de divórcio como contrato-promessa de doação, não se pode forçar a recorrente (doadora) a realizar a prestação, nem o Tribunal pode fazer a declaração de vontade de prestação em substituição da recorrente (doadora).
29. Pelo que, mesmo que o acordo de divórcio em crise seja considerado como contrato-promessa de doação celebrado com o fim de divórcio e, assim, seja visto válido, com base na natureza do contrato-promessa de doação e do acto de doação, o Tribunal a quo não pode fazer a declaração de vontade de prestação em substituição da recorrente, nem pode forçar a recorrente a cumprir o teor do acordo de divórcio
30. Pelo exposto, tendo em conta as referidas alegações sobre a qualificação jurídica do acordo de divórcio em questão (convenção pós-nupcial, contrato de doação ou contrato-promessa de doação), se o Tribunal concorde com qualquer entendimento acima deduzido, pede-se que seja declarado inválido ou inexecutável o acordo de divórcio e, por conseguinte, seja anulado ou revogado o despacho recorrido (incluindo a qualificação do acordo feita pelo Tribunal a quo e a ordem de executar o acordo no presente processo de inventário), e seja ordenado tratar os bens (crédito decorrente do regime da participação nos adquiridos) conforme as disposições legais no presente processo de inventário no regime da participação nos adquiridos.
31. O recorrido pediu instaurar o processo de inventário para resolver a questão dos bens adquiridos no seu regime da participação nos adquiridos. No processo de inventário no regime da participação nos adquiridos, devem seguir o art.º 1028.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.
32. Especialmente segundo o art.º 1028.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Civil, só está em causa enumerar os bens da recorrente e do recorrido desfrutáveis para fixar o crédito e a obrigação decorrentes do regime da participação nos adquiridos.
33. Contudo, na relação de bens entregue pelo recorrido, não são enumerados os valores dos bens possuídos pela recorrente e o recorrido no momento de casamento, mas sim apenas os bens possuídos no momento de divórcio, nem faz a redução e a compensação entre os bens activos e negativos da recorrente, até não aprecia se a natureza dos bens é desfrutável ou não.
34. Mais importantemente, o Tribunal a quo não corrigiu os erros no inventário do recorrido no regime da participação nos adquiridos, nem exigiu-lhe enumerar os bens no momento de casamento e de divórcio, tampouco seguiu a disposição do art.º 1028 n.º 2 do Código de Processo Civil.
35. Apenas com fundamento da existência do acordo de divórcio, o Tribunal a quo excluiu a aplicação do regime da participação nos adquiridos, tal decisão viola as regras procedimentais do art.º 1028.º n.º 2 do Código de Processo Civil, bem como viola o art.º 1582.º do Código Civil, uma vez que o regime da participação nos adquiridos gera crédito, mas não partilha bens.
36. Pede-se que sejam anulados ou revogados o despacho recorrido e os actos que estão a ser realizados no processo de inventário e violam as disposições legais, seja ordenado tratar o presente processo de inventário segundo as regras do art.º 1028.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
37. Em 23 de Maio de 2019, o recorrido pediu instaurar o processo de inventário, indicou no requerimento que “…ao abrigo do art.º 1028.º do Código de Processo Civil, em conjugação com o art.º 963.º n.º 1 e ss., venho pedir instaurar o processo de inventário…”, e pediu que “…pelo exposto, pede-se que sejam considerados os referidos factos e fundamentos jurídicos, seja admitido o requerimento para partilhar os bens do casamento desfrutável nos termos da lei, seja nomeado o requerente B como cabeça-de-casal, seja fixada a data para prestar juramento e declaração de nomeação do cabeça-de-casal. …” (vide as fls. 2 a 6 dos autos)
38. O recorrido pediu instaurar o processo de inventário em questão nos termos do art.º 1028.º do Código de Processo Civil, pediu partilhar os bens do casamento desfrutáveis nos termos da lei, pode-se ver que o recorrido não pediu tratar os bens adquiridos durante o casamento segundo o conteúdo do acordo de divórcio.
39. Sem que o recorrido peça distribuir os bens segundo o acordo de divórcio, o Tribunal a quo não pode demandar à recorrente, em substituição da parte, executar o acordo de divórcio, a decisão obviamente viola o princípio da iniciativa das partes e o princípio dispositivo, respectivamente previstos pelo art.º 3.º n.º 1 e pelo art.º 5.º do Código de Processo Civil, também padece do vício de nulidade previsto pelo art.º 571.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil porque conheceu a matéria que não pode conhecer.
40. Pelo que, o despacho recorrido viola o princípio da iniciativa das partes e o princípio dispositivo, pede-se que seja anulado ou revogado o despacho recorrido e ordenado tratar os bens (crédito decorrente do regime da participação nos adquiridos) conforme as disposições legais no presente processo de inventário no regime da participação nos adquiridos.
41. O despacho recorrido qualificou o acordo de divórcio como contrato-promessa de partilha, no processo de inventário tomou a iniciativa de decidir que a recorrente deve executar o acordo, isto é, o Tribunal a quo prestou a declaração de vontade em substituição da recorrente de transferir ao recorrido a propriedade dos bens imóveis da recorrente.
42. Se o recorrente entendesse válido o acordo de divórcio e que a recorrente não cooperou para transferir a sua propriedade dos bens imóveis ao recorrido, deveria intentar acção de execução específica em processo comum de declaração, para proporcionar ao Tribunal prestar a declaração de vontade de celebrar o contrato prometido em substituição da recorrente.
43. É de apontar que, a competência do Tribunal de Família e de Menores é regulamentada pelo art.º 29.º-D da lei de bases da organização judiciária, porém, não lhe é conferida a competência sobre o cumprimento obrigatório do contrato. Ao contrário, nos termos do art.º 28.º da mesma Lei, a matéria de execução específica do contrato-promessa está sujeita à competência do Juízo Cível, isto é, o Tribunal a quo não tem poder de decidir que a recorrente deve realizar a prestação conforme o teor do acordo de divórcio, uma vez que só o Juízo Cível é competente nesta matéria.
44. O processo de inventário é diferente do processo comum, o Tribunal a quo deve deixar as partes resolver em processo comum de declaração a questão da validade e qualificação do acordo de divórcio, ao abrigo do art.º 971.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
45. Pelo que, quando o Tribunal a quo demandou à recorrente no processo de inventário cumprir efectivamente o acordo de divórcio, já superou a sua competência, pede-se que seja anulado ou revogado o despacho recorrido, seja ordenado ao Tribunal a quo não tratar o acordo de divórcio por incompetência, uma vez que o Tribunal de Família e de Menores não deve resolver a execução específica do acordo de divórcio.
Pedidos
Pelas razões acima expostas, nos termos da lei, pede-se que seja julgado procedente o recurso e:
1. Seja declarado nulo o despacho recorrido porque há contradição entre os seus fundamentos e a decisão; ou
2. Seja declarado nulo o acordo de divórcio por impossibilidade legal;
3. Seja qualificado o acordo de divórcio como convenção pós-nupcial, contrato de doacção ou contrato-promessa de doacção, e seja declarada a nulidade ou a falta de executabilidade obrigatória do acordo de divórcio;
4. Seja declarado nulo o despacho recorrido porque viola o princípio da iniciativa das partes, o princípio dispositivo e padece de vício por ter conhecido a matéria que não pode conhecer;
5. Seja declarado que o Tribunal a quo não tem a competência de decidir no processo de inventário que a recorrente deve cumprir o acordo de divórcio; e
6. Por uma ou umas razões acima expostas, seja anulado ou revogado o despacho recorrido, e seja ordenado tratar os bens conforme as disposições legais no presente processo de inventário no regime da participação nos adquiridos.
Pelo cabeça-de-casal e Recorrido foram apresentadas as contra-alegações de recurso sem que, contudo, apresente conclusões.
Foram colhidos os vistos.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
No presente processo de inventário, o cabeça-de-casal B entregou por 2 vezes a relação de bens (vide as fls. 100 a 102 e 181 a 187 dos autos), a requerida A apresentou reclamação, pediu declarar nulo o acordo de divórcio, suprimir ou suplementar os bens e valores (vide as fls. 196 a 204v. dos autos), em seguida, o cabeça-de-casal formulou a resposta (vide as fls. 247 a 251 dos autos).
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Após vistos os elementos constantes do presente processo e do processo de divórcio por mútuo consentimento (n.º FM1-17-0196-CPE), o Tribunal dá assentes os seguintes factos relevantes para conhecimento:
1) Em 13 de Janeiro de 2005, B e A contraíram casamento em Macau, não celebraram convenção antenupcial (vide a fls. 5 do processo de divórcio por mútuo consentimento);
2) Em 29 de Março de 2017, perante o mandatário judicial, os cônjuges celebraram o acordo de divórcio sobre as matérias de divórcio e de bens (vide as fls. 72 e 72v. dos autos);
3) Em 30 de Março de 2017, os cônjuges pediram instaurar o processo de divórcio por mútuo consentimento (vide a fls. 2 do processo de divórcio por mútuo consentimento);
4) Em 10 de Maio de 2017, declarou-se a dissolução do casamento dos cônjuges, a decisão do processo de divórcio por mútuo consentimento transitou-se em julgado em 1 de Junho de 2017;
5) Em 23 de Maio de 2019, B (homem) pediu instaurar o presente processo de inventário, pediu partilhar o valor dos bens desfrutáveis do casamento, uma vez que, depois de A (mulher) ter vendido as 2 fracções habitacionais e 1 parque de estacionamento respectivamente em 29 de Junho de 2017 e em 12 de Dezembro de 2017, não cumpriu o acordo de divórcio por não ter compartilhado o ganho com o homem.
6) Em 19 de Junho de 2019, o homem, por ser mais velho, foi nomeado como cabeça-de-casal, prestou juramento perante o Tribunal (vide as fls. 98 e 98v. dos autos).
7) Em 24 de Junho de 2019, o homem entregou a relação de bens, na qual foram enumerados 7 bens imóveis – 4 destinados à habitação e 3 destinados ao parque de estacionamento – e o rendimento dos cônjuges durante o casamento e a hipoteca dos 4 referidos bens imóveis entre os outros (vide as fls. 100 a 102 dos autos).
8) Em 18 de Setembro de 2019, em conjugação com o resultado de investigação sobre os bens, o homem entregou de novo a relação de bens actualizada, suplementou o saldo da conta bancária dos cônjuges e o valor dos veículos ligeiros no momento de divórcio (vide as fls. 181 a 187 dos autos).
9) Em 10 de Dezembro de 2019, a mulher apresentou reclamação, indicou que é nulo o acordo de divórcio celebrado antes de divórcio, deve-se partilhar de novo todos os bens desfrutáveis em função do regime da participação nos adquiridos como regime de bens do casamento deles, pediu fixar o valor dos bens dos cônjuges no momento de casamento e de divórcio, bem como enumerar o valor dos bens que devem ser suprimidos, suplementados e alterados (vide as fls. 196 a 204v. dos autos).
10) Em 20 de Janeiro de 2020, o homem respondeu que não se deve declarar nulo o acordo de divórcio, mas deve-se suplementar o valor dos bens desfrutáveis que o acordo não enumera (vide as fls. 245 a 251 dos autos).
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O acordo de divórcio em questão foi celebrado em 29 de Março de 2017 perante o Advogado, do qual consta o seguinte na matéria de bens:
“1º outorgante: B……
2ª outorgante: A……
Após a negociação, os outorgantes concordam em dissolver o casamento e celebrar o presente acordo sobre as matérias de divórcio e de partilha do património, declaram juntos que vão cumprir as seguintes disposições:
Da matéria de divórcio……
Da matéria de património
Os outorgantes declaram que são distribuídos de forma seguinte os bens adquiridos durante o casamento dos quais são comproprietários:
A. Os outorgantes concordam que vendem o Apartamento G do 14º andar e o parque de estacionamento n.º 152 do Edf. Pearl On The Lough, sito em Estrada Nordeste da Taipa n.º 312, o produto será usado para, no primeiro, quitar o empréstimo do Apartamento e do parque e estacionamento, bem como pagar os emolumentos, e depois, pagar as prestações do empréstimo do Apartamento H do 18º andar do Edf. Pearl On The Lough, até que o valor do empréstimo em dívida seja inferior a HKD$6.500.000,00, a quantia restante do produto será atribuído à 2ª outorgante.
B. A 2ª outorgante concorda em deixar o 1º outorgante continuar a residir, até ao momento de venda, no Apartamento G do 14º andar do Edf. Pearl On The Lough.
C. Os outorgantes concordam que, na pendência do divórcio, com o produto de venda do Apartamento G do 14º andar do Edf. Pearl On The Lough pagam as prestações do empréstimo do Apartamento H do 18º andar e do parque de estacionamento n.º 72, após o divórcio, esse Apartamento e o parque de estacionamento serão atribuídos ao 1º outorgante, a 2ª outorgante será responsável por pagar as prestações do empréstimo até que o valor do empréstimo em dívida seja inferior a HKD$6.500.000,00.
D. Os outorgantes concordam que, após transferido oficialmente o parque de estacionamento n.º 72 ao 1º outorgante, será este responsável por pagar as prestações, após a transação, o 1º outorgante gozará de todos os direitos e deveres.
E. O 1º outorgante concorda que, o parque de estacionamento n.º 216 do Edf. Pearl On The Lough é atribuído à 2ª outorgante, se o 1º outorgante quiser comprar o parque de estacionamento dentro de 6 meses a partir do divórcio, a 2ª outorgante vai concordar em vendê-lo pelo preço de HKD$1.400.000,00, uma vez passado o prazo, considera-se que o 1º outorgante renuncia a esse direito e não pode impugnar.
F. Os outorgantes concordam que vendem o Apartamento A do 4º andar do Edf. Chun Mun, sito em Rua Direita Carlos Eugénio, n.º 94, o produto será usado para devolver a dívida e o valor restante será atribuído à 2ª outorgante.
G. O 1º outorgante concorda que o Apartamento C do r/c do Edf. Pou Wan da Travessa de Maria Lucinda é atribuído à 2ª outorgante, que será responsável por quitar o empréstimo.
H. Os trâmites de partilha dos bens imóveis de um dos outorgantes só podem ser realizados com a assistência do Escritório de Advogados após a prolação da sentença de divórcio perante o Cartório Notarial por escritura pública. Os outorgantes concordam que aquele que obtiver legalmente os bens será responsável por pagar os emolumentos do Cartório Notarial, a custa dos documentos (incluindo a certidão de sentença), o imposto do selo, o imposto sobre transmissões de bens imóveis da DSF e a taxa de registo do Conservatório do Registo Predial. Fixa-se em MOP$10.000 o honorário do advogado, a pagar igualmente pelos outorgantes.
I. Entre as referidas custas para a transferência dos bens imóveis, no tocante àquelas que sejam calculadas em função do valor dos bens imóveis nos termos da lei, os outorgantes concordam que usam o preço base da DSF para satisfazer os interesses deles.
J. Se um outorgante transfira os referidos bens imóveis hipotecados ao outro, tem que chegar a acordo com o banco para facultar a devida cooperação.
Os casos que o presente acordo não preveja são regulados segundo a legislação vigente de Macau.
Os outorgantes comprometem-se a prestar toda a colaboração para completar todos os trâmites necessários para a transferência dos referidos bens e não recusar cooperar sob pretexto ou não se ausentar a procedimentos, sob pena de indemnizar o outro outorgante.
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Em conjugação com o registo predial, o referido acordo de divórcio envolve os seguintes 7 bens imóveis:
- O Apartamento 14G e o parque de estacionamento n.º A72C/V do Edf. Pearl On The Lough, adquiridos pela mulher em 30 de Maio de 2012 pelo preço de HKD$11.500.000,00, na altura os cônjuges pediram ao Banco Tai Fung um empréstimo no valor de MOP$8.660.400,00 (vide as fls. 222 a 223 dos autos), em 11 de Maio de 2015 os cônjuges pediram ao mesmo Banco por outra vez um empréstimo no valor de MOP$8.292.200,00 (vide a fls. 224 dos autos); em 12 de Dezembro de 2017, o Apartamento foi vendido a outrem pelo preço de 18.480.000,00 (vide a fls. 226 dos autos);
- O parque de estacionamento n.º A216C/V do Edf. Pearl On The Lough, adquirido pela mulher em 15 de Agosto de 2014 pelo preço de MOP$1.030.000,00 (vide a fls. 131 dos autos);
- O Apartamento 4A do Edf. Chun Mun, adquirido pelos cônjuges em 5 de Setembro de 2014 pelo preço de MOP$6.468.400,00, pediram ao Banco da China, Sucursal de Macau um empréstimo no valor de MOP$3.885.750,00 (vide as fls. 57 e 58 dos autos); em 29 de Junho de 2017 o Apartamento foi vendido a outrem pelo preço de HKD$5.600.000,00 (vide a fls. 59 dos autos);
- O Apartamento 18H do Edf. Pearl On The Lough, adquirido pela mulher em 26 de Junho de 2015 pelo preço de HKD$14.000.000,00, os cônjuges e uma outra pessoa pediram ao Banco da China, Sucursal de Macau um empréstimo no valor de MOP$12.491.465,00 (vide as fls. 128 a 129 dos autos);
- O parque de estacionamento n.º A152C/V do Edf. Pearl On The Lough, adquirido pela mulher em 26 de Junho de 2015 pelo preço de 1.800.000,00, os cônjuges e uma outra pessoa pediram ao Banco da China, Sucursal de Macau um empréstimo no valor de MOP$1.227.485,00 (vide as fls. 47 a 48 dos autos); em 12 de Dezembro de 2017 o parque de estacionamento foi vendido a outrem pelo preço de HKD$1.520.000,00 (vide a fls. 49 dos autos);
- A fracção autónoma CR/C do r/c do Edf. Pou Wan, adquirido pela mulher em 15 de Julho de 2015 pelo preço de MOP$1.762.801,00, os cônjuges e uma outra pessoa pediram ao Banco da China, Sucursal de Macau um empréstimo no valor de MOP$3.379.194,00 (vide as fls. 113 a 114 dos autos);
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Após analisados o teor dos autos e a impugnação sobre a relação de bens, cumpre destacar que:
1) Quando os cônjuges contraíram casamento em 2005, não celebrou convenção antenupcial, portanto, é aplicado o “regime da participação nos adquiridos” como regime supletivo de bens, isto é, neste regime, não há bem comum do casal, cada um dos cônjuges pode dispor livremente do seu bem próprio;
2) No caso, quando a mulher comprou os bens imóveis e pediu ao banco empréstimo de hipoteca durante o casamento, o homem sabia bem a situação, assim, pode-se ver que os cônjuges sabem a validade do seu regime de bens do casamento;
3) Todavia, em 29 de Março de 2017, um dia antes de apresentação do pedido de divórcio por mútuo consentimento, os cônjuges celebraram perante o advogado o acordo de divórcio, no qual resolveram a matéria de divórcio e a questão dos bens do casamento, pode-se ver que, o acordo foi celebrado consciente, livre e voluntariamente pelos cônjuges perante o advogado, segundo o seu conteúdo, não é convenção pós-nupcial, mas sim contrato-promessa de partilha dos bens previamente constituído para a distribuição dos bens do casamento com o fim de divórcio, visando garantir o cumprimento efectivo pelos cônjuges após o divórcio;
4) Desde que a parte de distribuição dos bens no acordo de divórcio não é convenção pós-nupcial, não é necessário ser celebrado por escritura pública ao abrigo do art.º 1578.º n.º 3 em conjugação com o art.º 1574.º do Código Civil, portanto, o acordo celebrado por escrita perante o advogado é válido e deve ser efectivamente executado pelos cônjuges;
5) Além disso, se se fizer o cálculo no “regime da participação nos adquiridos” originalmente aplicado aos cônjuges, é necessário valorar todos os bens desfrutáveis para calcular o crédito, não se deve partilhar só uma parte dos bens segundo este regime e não a outra parte, senão, vai resultar em incorrecção e desigualdade, deste modo, quando os cônjuges já distribuíram a maioria dos bens pelo acordo de divórcio, não se pode distribuir os outros bens não mencionados segundo o regime da participação nos adquiridos.
Pelo exposto, o Tribunal julga válido o acordo de divórcio celebrado em 29 de Março de 2017 pelos cônjuges, o qual estas devem cumprir segundo o respectivo teor.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
Da factualidade constante da decisão recorrida resulta que previamente ao divórcio os então ainda cônjuges fizeram um acordo quanto a alimentos, casa de morada de família, pagamento em partes iguais dos custos inerentes ao processo e “destino a dar” ou “destinação” (pois outra palavra não há para descrever o que dele consta) de 7 imóveis.
A questão que se coloca nestes autos é a da qualificação jurídica do acordo de divórcio celebrado.
Entendeu o tribunal “a quo” no despacho Recorrido que o indicado acordo era um contrato de promessa de partilha.
Entende a Recorrente que aquele acordo é nulo e se válido fosse não é o tribunal de família o competente para a sua execução.
Vejamos então.
Os bens mencionados no acordo à excepção do apartamento 4A do Edf. Chun Mun que foi adquirido em compropriedade por ambos os então ainda cônjuges, todos os demais foram adquiridos pelo cônjuge mulher durante a pendência do casamento.
Não será despiciendo fazer uma breve resenha em que é que consiste o regime de participação na comunhão de adquiridos, pois só se conhecendo o regime de bens se poderá interpretar o acordo em análise com vista a podê-lo interpretar, eventualmente no sentido de ser um contrato de promessa de partilha na sequência do divórcio.
No âmbito do regime de participação nos adquiridos, regulado no artº 1581º e seguintes do C.Civ., «cada um dos cônjuges tem o domínio e fruição, tanto dos bens que lhe pertenciam à data da celebração do casamento ou da adopção superveniente desse regime de bens, como dos que adquiriu posteriormente por qualquer título, podendo, salvas as excepções previstas na lei, dispor deles livremente».
Ou seja no que concerne à titularidade, fruição, e actos de disposição dos bens, tudo se processa como no regime de separação de bens1.
Durante a vigência2 do regime da participação nos adquiridos cada um dos cônjuges é livre de adquirir, onerar e dispor dos bens que possuía antes do casamento/vigência do regime e daqueles que veio a adquirir durante a pendência do casamento/vigência do regime, sem prejuízo das excepções legais.
O património em participação é constituído pelo produto do trabalho adquirido na constância do regime e pelos bens adquiridos na constância do mesmo, praticamente de acordo com as mesmas regras do regime de comunhão de adquiridos, até porque, as normas que definem o património comum embora com redacção diferente são em termos de conteúdo idênticas e são as mesmas as regras que definem os bens excluídos da participação/comunhão.
Contudo, embora a forma de definir o património em participação e o património em comunhão seja praticamente igual, o resultado final é substancialmente diferente.
Tal como já se referiu, durante a constância do regime em participação os cônjuges são livres de adquirirem, onerarem e disporem dos seus bens como entenderem sem autorização do outro, sendo que o património em participação só releva no momento da cessação do regime, o que coincidirá, ou com a alteração do regime por convenção pós-nupcial, ou com a separação de bens, ou com a dissolução do casamento. Nesse momento é aferido o valor do “património em participação de cada um dos cônjuges”.
Note-se que não se confunde com o apuramento do património em comunhão nos regimes de comunhão (os chamados bens comuns), uma vez que, no regime em participação o que se apura é o valor do património (próprio) de cada um dos cônjuges que foi adquirido durante a vigência do regime, sendo que a metade da diferença para mais encontrada no património de um dos cônjuges corresponde ao crédito em participação – cf. art. 1582º do C.Civ. -.
O cônjuge cujo património acresceu menos tem direito a receber do outro o crédito na participação, ou seja, metade do valor em que o património do outro cresceu mais do que o seu.
Salvo os casos previstos no artº 1593º do C.Civ. são irrelevantes as alterações do valor do património de cada um dos cônjuges ao longo da vigência do regime.
Não sendo o direito ao crédito em participação um direito indisponível, a lei condiciona, contudo, o direito à disponibilidade do mesmo.
De acordo com o nº 4 do artº 1582º do C.Civ é nula qualquer cláusula que altere a fracção de 50% na diferença entre os valores de acréscimo.
Sendo susceptível de caducidade se não for exercido – artº 1596º do C.Civ. – a renúncia ao crédito na participação está sujeita ao disposto no nº 2 do artº 1597º do C.Civ., a saber:
1. A renuncia é nula se feita antecipadamente (nº 1 do artº 1597º do C.Civ.).
Conjugada a redacção do nº 1 do artº 1597º do C.Civ com a do seu nº 2 é evidente que a renúncia nunca pode ser realizada antes da cessação do regime.
Ora o regime só cessa se:
- For celebrada convenção pós-nupcial que consagre outro regime de bens e nesse caso no dia da sua celebração;
- Na data da proposição da acção de separação de bens ou de divórcio (artº 1626º nº 3 e 1644º nº 1 ambos do C.Civ.) no que concerne às relações entre os cônjuges;
- Na data em que cessou a coabitação entre os cônjuges se estiver provada no processo e for fixada na sentença de separação judicial de bens ou divórcio (artº 1626º nº 3 e 1644º nº 1 ambos do C.Civ.) no que concerne às relações entre os cônjuges.
Logo, em jeito de conclusão podemos afirmar que no caso em apreço antes de ter sido decretado o divórcio nenhum dos cônjuges poderia ter renunciado ao crédito na participação.
O que se compreende porque embora possa ser estimado o valor do mesmo, tudo se processando durante a vigência do regime como se de um regime de separação se tratasse no que concerne à aquisição, oneração e disposição de bens, considerando as circunstâncias que normalmente antecedem uma separação judicial de bens ou divórcio, antes da data da cessação do regime não há a certeza quanto ao valor do crédito em participação o que implicaria que uma renuncia antecipada ao mesmo não seria esclarecida.
Aqui chegados temos que:
1. Nunca o crédito em participação pode ser diferente de 50% do valor correspondente à diferença do valor dos patrimónios em participação dos cônjuges.
2. Nunca pode ser renunciado antecipadamente.
Vejamos agora como se processa a partilha (como vulgarmente se diz) quando cessa o regime.
Tal como resulta dos artº 1578º nº 4 do C.Civ. e artº 1028º nº 2 do CPC, cessando o regime seja extrajudicialmente seja em inventário na sequência do divórcio as operações a realizar consistem no apuramento do valor do crédito em participação e condenação do devedor a pagar o montante apurado o que haverá de ser feito em dinheiro, sem prejuízo dos casos excepcionais que a lei autoriza que seja feito pela entrega de bens determinados.
Voltemos agora ao contrato “sub judice”.
Na decisão recorrida e pelo recorrido é sustentado que o contrato em causa é uma promessa de partilha na sequência do divórcio.
Vejamos o que se diz no contrato:
- Quanto à fracção G14 e A152C/V diz-se que o cônjuge mulher (que foi quem a comprou) a vai vender e liquidar o empréstimo garantido por hipoteca constituída sobre a mesma, bem como o empréstimo também garantido por hipoteca sob a fracção 18H até que o valor em dívida seja igual a HKD6.500.000,00;
- Quanto à fracção 4A adquirido por ambos os cônjuges vai ser vendido sendo o valor usado para liquidar o empréstimo garantido por hipoteca constituída sobre a mesma, ficando o remanescente (se o houver porque nada se diz a respeito de valores) para o cônjuge mulher;
- Quanto à fracção CR/C diz-se que fica para o cônjuge mulher (que foi quem a comprou);
- Quanto à fracção A216C/V que foi comprada pelo cônjuge mulher, diz-se que o cônjuge marido a pode comprar no prazo e valor fixados;
- Quanto à fracção 18H e A72C/V que foi comprada pelo cônjuge mulher diz-se que fica para o cônjuge marido ficando este (o cônjuge marido) responsável pelo pagamento do remanescente da hipoteca no valor de HKD6.500.000,00.
No que concerne a dizer-se que o titular do direito seja ele o cônjuge mulher (quanto às fracções G14, A152C/V e CR/C), sejam ambos os cônjuges (quanto à fracção 4A), vai/vão vender e vai/vão pagar as hipotecas é manifestamente inócuo e irrelevante o conteúdo do contrato.
O cônjuge mulher - assim como ambos os cônjuges quanto aos bens por ambos adquiridos - enquanto titular do direito tem direito a dele dispor como muito bem entender e quanto à liquidação dos empréstimos eventualmente garantidos por hipotecas é algo que cabe no âmbito da relação entre aquela e o respectivo credor.
O direito do cônjuge mulher a vender ou não esses bens e como o vai fazer é algo que apenas a si diz respeito, sendo certo que cabe na sua capacidade jurídica a qual é irrenunciável – artº 66º do C.Civ. -.
Logo, analisado o contrato quanto a estas matéria é irrelevante o que dele consta.
Aliás basta fazermos a pergunta: E se o cônjuge mulher não vendesse? Teria o cônjuge marido alguma acção ao seu dispor para exigir a execução específica do contrato? O contrato tem os elementos para essa venda? Valor? Sujeito comprador? A resposta é inevitavelmente negativa a todas as questões. Ou seja, todas estas disposições no contrato não levam a nada, sendo irrelevantes.
Dizer-se que o cônjuge mulher fica com aquilo que já lhe pertence é inócuo, resulta da lei.
Destarte, as únicas injunções que constam do contrato seriam o que pode configurar uma promessa unilateral de venda (artº 405º do C.Civ.) com prazo relativamente à fracção A216C/V, matéria que, por natureza nada tem a ver com o apuramento do crédito em participação nem com o inventário, não configurando, por natureza e de modo evidente, promessa alguma de partilha, e o ali se diz quanto às fracções 18H e A72C/V que seriam atribuídas ao cônjuge marido ficando este responsável pelo pagamento de um empréstimo contraído por ambos os cônjuges e uma terceira pessoa até ao valor de HKD6.500.000,00.
Sendo as fracções atribuídas ao cônjuge marido ficando este obrigado ao pagamento de um empréstimo que foi contraído por si, pela ex-mulher e por um terceiro, não é evidente que o contrato seja gratuito, logo à míngua de outros elementos não há aqui ainda que veladamente uma promessa de doação, o que também seria inócuo em sede de inventário.
Para que tal disposição configurasse uma promessa de partilha impunha-se que a atribuição daquela fracção ao cônjuge marido correspondesse ao pagamento àquele do crédito em participação a que tivesse direito.
Mas para chegarmos a essa conclusão seria necessário que do acordo constasse qual o valor do crédito em participação a receber pelo cônjuge que a ele tivesse direito (que neste caso teria de ser o cônjuge marido), qual o valor atribuído àquelas duas fracções (calculado de acordo com o disposto no artº 1595º do C.Civ.), qual o valor do empréstimo a pagar pelo cônjuge marido que não fosse já da sua exclusiva responsabilidade, sendo que, a diferença tinha de ser igual ao valor do crédito em participação, sob pena de, não sendo o valor igual àquele, ser o acordo nulo face às já referidas nulidades do nº 4 do artº 1582º e 1597º do C.Civ..
Ora, não se apurando o valor do crédito em participação nem tão pouco qual o cônjuge que tem direito a receber, não pode, em circunstância alguma o contrato em causa valer como promessa de partilha.
Independentemente da validade para que houvesse um contrato de partilha era necessário que o mesmo contivesse os elementos referentes e necessários à partilha, o que no caso implicava que se descriminasse o valor do património em participação de cada dos cônjuges e/ou o seu valor, o valor do crédito em participação, qual o seu titular e a forma como iria ser pago, se outra que não a prevista na lei.
Ou seja, só se pode falar de um contrato de promessa de partilha se ele contiver os elementos necessários e exigíveis para o efeito, conforme previsto no nº 2 do artº 1028º do CPC.
Para além de que, salvo melhor opinião, à míngua de outros elementos não podem as disposições quanto às fracções 18H e A72C/V valer como promessa do que quer que seja, pois não contêm elementos para o efeito.
Assim sendo e contrariamente ao que se concluiu na decisão recorrida entendemos que o acordo de divórcio quanto à parte patrimonial não configura uma promessa de partilha nem acordo algum quanto a esta sendo irrelevante para o apuramento do crédito em participação, devendo a decisão recorrida ser revogada e os autos serem remetidos ao tribunal “a quo” para que seja proferida outra em que se ordene o que houver por conveniente com vista ao andamento do processo de inventário sem que aquele acordo seja tido para qualquer efeito.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida a qual deve ser substituída por outra que ordene o que se tiver por conveniente com vista ao prosseguimento do inventário sem que o acordo de divórcio quanto à parte patrimonial seja tido em consideração para efeito algum.
Custas a cargo do Recorrido nesta instância.
Registe e Notifique.
RAEM, 11 de Março de 2021
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Veja-se por comparação a redacção do artº 1601º do C.Civ. quanto ao regime de separação.
2 Diz-se vigência porque em Macau é possível a alteração do regime de bens durante a constância do casamento o que significa que ao longo da relação matrimonial podem ser vários os regimes de bens adoptados pelos cônjuges cf. artº 1578º do C.Civ.
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947/2020 CÍVEL 29