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Processo n.º 152/2021 Data do acórdão: 2021-3-18
Assuntos:
– pedido de recusa de juiz
– art.º 30.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
– art.º 32.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal
– art.º 32.º, n.º 3, do Código de Processo Penal
– queixa-crime e participação disciplinar de juiz contra advogado
S U M Á R I O

1. No âmbito do Código de Processo Penal (CPP), consagram-se, como espécies de garantias da imparcialidade do julgador, os impedimentos (art.os 28.º e 29.º), as recusas e as escusas (art.º 32.º).
2. No impedimento, verificado o facto especificado na lei, o juiz tem o dever de imediatamente se declarar impedido e portanto de se abster de intervir (art.º 30.º, n.º 1).
3. A recusa tem de ser arguida pelo Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil. Os fundamentos dela são necessariamente diversos dos do impedimento, e de carácter menos grave do que os do impedimento, traduzidos em correr o risco de ser considerada suspeita a intervenção de um juiz, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (art.º 32.º, n.os 1 e 2).
4. A escusa, apesar de se reconduzir aos mesmos fundamentos da recusa, corresponde a um pedido de dispensa dirigido pelo juiz ao tribunal competente (art.º 32.º, n.º 3).
5. A suspeita sobre a imparcialidade do juiz só é susceptível de conduzir à recusa deste quando objectivamente considerada. Não basta um puro convencimento por parte do requerente para se tenha por verificada a suspeição. Nem basta qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que esse motivo seja grave e sério, circunstâncias que, na falta de critério legal, terão que ser ajuizadas a partir do senso e experiência comuns.
6. A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser consideradas objectivamente, não bastando um puro convencimento subjectivo para que se possa ter por verificada a ocorrência da suspeição.
7. No caso dos autos, como a queixa-crime e a participação disciplinar referidas no pedido de recusa de juiz, formulado pelo arguido, não têm por visado a própria pessoa dele, mas sim um advogado por causa da conduta deste num outro processo penal a que o arguido é alheio, assim, mesmo que este advogado seja agora um dos seus cinco mandatários com poderes de representação forense no ora subjacente processo penal, esta circunstância, objectivamente considerada, não é susceptível de gerar a desconfiança, por parte do público, sobre a rectidão do exercício de funções jurisdicionais, se forem exercidas pela juíza visada no subjacente processo, então autora daquelas queixa e participação, pelo que se indefere o pedido de recusa.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 152/2021
(Autos de pedido de recusa de juiz)
Requerente (arguido): A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Veio o arguido A do ora subjacente Processo n.o CR2-21-0018-PCS do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base formular, ao abrigo dos art.os 32.o a 34.o do Código de Processo Penal (CPP), o pedido de recusa da intervenção da M.ma Juíza Dr.a B no julgamento desse processo penal, por razões expostas no petitório de fls. 2 a 10 do presente processado, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido, tendo alegado, nomeadamente, o seguinte:
– (segundo os pontos 7 a 10 desse pedido:) todos os três M.mos Juízes do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, Dr.a C, Dr.a B e Dr. D, tinham chegado, na sequência de um incidente ocorrido na audiência de julgamento de 17 de Junho de 2020 do Processo Comum Colectivo n.o CR2-19-0210-PCC, a apresentar uma queixa-crime por um crime de difamação qualificada contra o Ex.mo Dr. E, o qual é actualmente um dos mandatários constituídos pelo arguido ora requerente, queixa-crime ainda em fase de inquérito, ao que acresce que os mesmos três M.mos Magistrados Judiciais tinham apresentado também uma participação disciplinar contra esse mesmo Ex.mo Advogado ao Conselho Superior de Advocacia da Associação dos Advogados de Macau, ainda em fase de inquérito;
– (conforme o ponto 11 do seu pedido de recusa:) “quer o ora requerente continuar a ser representado e defendido pela equipa de advogados que livremente contratou, tendo total confiança no escritório “X ADVOGADOS” e, pois, mantém e confirma sem qualquer reserva ou ressalva a sua confiança plena e irrestrita em cada um dos 5 advogados por si constituídos, incluindo no aludido E”;
– (de acordo com os pontos 13 e 14 do mesmo pedido de recursa:) “A circunstância de a Dr.a B (bem como os outros magistrados judiciais do 2.o Juízo Criminal do T.J.B. acima aludidos) ter deduzido uma queixa-crime por difamação qualificada, bem como uma participação disciplinar, precisamente a propósito de incidentes ocorridos no contexto do exercício profissional de um dos advogados do aqui arguido – na audiência de julgamento de 17 JUN 2020 realizada nos autos n.o CR2-19-0210-PCC – afigura-se objectivamente de molde a poder razoavelmente sustentar um plausível pré-juízo de desconfiança relativamente à sua imparcialidade e ao seu distanciamento para assumir o julgamento dos presentes autos”, e “O aqui arguido, tendo livremente escolhido o conjunto de 5 advogados que, em conjunto e trabalhando articuladamente, pretende que o representem em juízo, tem o direito básico e fundamental de exigir que a sua causa seja julgada por um tribunal relativamente ao qual não exista qualquer réstia de fundamento que possa, mesmo que remota ou hipoteticamente, colocar em risco ou perigo a respectiva capacidade de ausência de preconceito, de distanciamento crítico, de imparcialidade ou de isenção”.
Notificada para efeitos do art.o 34.o, n.o 3, do CPP, a M.ma Juíza visada Dr.a B apresentou resposta a fls. 29 a 30, na qual fez uma súmula de dados processuais respeitantes ao Processo n.o CR2-19-0210-PCC e ao ora subjacente Processo n.o CR2-21-0018-PCS, ambos do Tribunal Judicial de Base.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame do presente processado, decorrem os seguintes dados, pertinentes à decisão:
1. Em 16 de Dezembro de 2020, o Ministério Público deduziu acusação contra o ora arguido A, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de acolhimento.
2. Em 28 de Dezembro de 2020, esse arguido, por procuração desse dia, conferiu poderes de representação forense (com faculdade de substabelecimento) aos Ex.mos Advogados Dr. F e Dr.a G.
3. Em 15 de Janeiro de 2021, os autos daquela acusação penal foram distribuídos à M.ma Juíza B, ficando identificados como sendo Processo Comum Singular n.o CR2-21-0018-PCS do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base.
4. Em 18 de Janeiro de 2021, esses mesmos autos foram conclusos à mesma M.ma Juíza, a qual, por despacho proferido nesse mesmo dia, designou o dia 1 de Março de 2021 para a audiência de julgamento.
5. Em 21 de Janeiro de 2021, o Ilustre Advogado substabeleceu, com reserva, os acima referidos poderes de representação forense nos seus Colegas Ex.mo Advogado Dr. E e Ex.mas Advogadas Estagiárias H e I.
6. Em 18 de Fevereiro de 2021, foi apresentado, em nome do arguido A, o pedido de recusa da M.ma Juíza Dr.a B no julgamento do Processo n.o CR2-21-0018-PCS, pedido esse então assinado somente pelo Ex.mo Advogado Dr. E, e depois, como que em segunda via, no dia seguinte, também pelos Ex.mos Dr. F, Dr.a G, Dr.a H e Dr.a I.
7. Segundo os pontos 7 a 10 desse pedido de recusa, todos os três M.mos Juízes do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, Dr.a C, Dr.a B e Dr. D, tinham chegado, na sequência de um incidente ocorrido na audiência de julgamento de 17 de Junho de 2020 do Processo Comum Colectivo n.o CR2-19-0210-PCC do Tribunal Judicial de Base, a apresentar uma queixa-crime por um crime de difamação qualificada contra o Ex.mo Dr. E, o qual é actualmente um dos mandatários constituídos pelo arguido ora requerente, queixa-crime ainda em fase de inquérito, ao que acresce que os mesmos três M.mos Magistrados Judiciais tinham apresentado também uma participação disciplinar contra esse mesmo Ex.mo Advogado ao Conselho Superior de Advocacia da Associação dos Advogados de Macau, ainda em fase de inquérito.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
No âmbito do CPP consagram-se, como espécies de garantias da imparcialidade do julgador, os impedimentos (art.os 28.º e 29.º), as recusas e as escusas (art.º 32.º).
Ora, adaptada a doutrina de JOSÉ ALBERTO DOS REIS (in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1.º, 2.ª Edição, 1960, Coimbra Editora, páginas 387 e seguintes) às normas do CPP nesta matéria, cabe observar que:
– o impedimento caracteriza-se pelo seguinte traço: verificado o facto especificado na lei, o juiz tem o dever de imediatamente se declarar impedido e portanto de se abster de intervir (art.º 30.º, n.º 1). Se o não fizer, podem o Ministério Público, o arguido, o assistente ou parte civil, logo que sejam admitidos a intervir no processo, provocar a declaração do impedimento, em qualquer estado do processo (art.º 30.º, n.º 2);
– a recusa tem de ser arguida pelo Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil. Os fundamentos dela são necessariamente diversos dos do impedimento, e de carácter menos grave do que os do impedimento, traduzidos em “correr o risco de ser considerada suspeita [a intervenção de um juiz], por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art.º 32.º, n.os 1 e 2);
– e a escusa, apesar de se reconduzir aos mesmos fundamentos da recusa, corresponde a um pedido de dispensa dirigido pelo juiz ao tribunal competente (art.º 32.º, n.º 3).
Sendo certo que conforme o já defendido no douto Acórdão de 2/2/1999 do Tribunal da Relação de Lisboa de Portugal, no Processo n.º 67445 (in www.dgsi.pt/jtrl.nsf/3318…), citado aqui a título de mera referência académica: a suspeita sobre a imparcialidade do juiz só é susceptível de conduzir à recusa deste quando objectivamente considerada. Não basta um puro convencimento por parte do requerente para se tenha por verificada a suspeição. Nem basta qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que esse motivo seja grave e sério, circunstâncias que, na falta de critério legal, terão que ser ajuizadas a partir do senso e experiência comuns.
Em sentido convergente, cfr. também, a título de mera referência académica, o douto Acórdão de 10/7/1996 do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal, in Col. Jur. XIX, 4, 62, aliás já citado no douto Acórdão de 15/10/1999 do então Tribunal Superior de Justiça de Macau no Processo n.º 1235 (in Jurisprudência 1999, II Tomo, págs. 659 a 661): a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser considerados objectivamente, não bastando um puro convencimento subjectivo para que se possa ter por verificada a ocorrência da suspeição.
No caso dos autos, realiza o presente Tribunal Colectivo que como a queixa-crime e a participação disciplinar referidas no pedido de recusa do ora arguido não têm por visado a própria pessoa dele, mas sim o Ex.mo Senhor Dr. E, a circunstância, aqui apreciada objectivamente, de este ser um dos cinco Mandatários com actuais poderes de representação forense do próprio ora requerente no subjacente Processo n.o CR2-21-0018-PCS do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base não é susceptível de gerar a desconfiança, por parte do público, sobre a rectidão do exercício de funções jurisdicionais, se forem exercidas pela M.ma Juíza Dr.a B nesse subjacente processo, pelo que se indefere o pedido de recusa, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em indeferir o pedido de recusa, com duas UC de taxa de justiça pelo arguido recorrente.
Macau, 18 de Março de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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