Processo n.º 1189/2019 Data do acórdão: 2021-3-11
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova, como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1189/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (2.o arguido): B (B)
Não recorrente (1.a arguida): A (A)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 666 a 681v do Processo Comum Colectivo n.º CR5-17-0304-PCC do 5.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), na parte respeitante ao 2.o arguido B, aí já melhor identificado, este ficou condenado:
– como co-autor material, na forma consumada, de dois crimes de uso de documento falsificado de especial valor, p. e p. pelos art.os 245.o e 244.o, n.o 1, alínea c), do Código Penal (CP), em um ano e seis meses de prisão por cada;
– como co-autor material, na forma consumada, de quatro crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP, em nove meses de prisão por cada um dos dois desses crimes (com referência aos factos provados 5 e 16), e em sete meses de prisão por cada um dos restantes dois crimes (com referência aos factos provados 20 e 22);
– e, em cúmulo jurídico de todas essas penas de prisão e da punição já imposta no Processo n.o CR4-18-0181-PCC do TJB (ou seja, da pena de um ano e três meses de prisão por um crime de uso de documento falsificado de especial valor e da pena de nove meses de prisão por um crime de falsificação de documento), finalmente na pena única de três anos de prisão efectiva.
Inconformado, veio recorrer esse arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, e peticionando, na sua motivação apresentada a fls. 711 a 728 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– houve falta de fundamentação no acórdão recorrido quanto à decisão da condenação dos dois crimes de uso de documento falsificado de especial valor, com violação, assim, do art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal (CPP), geradora da nulidade da própria decisão condenatória;
– por outro lado, verificou-se erro notório na apreciação da prova;
– e, fosse como fosse, sempre teria existido duplicação na condenação penal;
– e se assim não se entendesse, não deixaria de ter existido excesso na medida da pena por parte do Tribunal recorrido, merecendo o recorrente, no final, a suspensão da execução da pena.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 744 a 748 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 761 a 764v, opinando pela condenação do recorrente somente por prática de dois crimes de uso de documento falsificado de especial valor, com nova medida da pena, sem concessão do benefício de suspensão da execução da pena.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido consta de fls. 666 a 681v dos autos, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando.
Por uma questão de lógica das coisas, passa-se a conhecer primeiro do vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP:
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No presente caso, depois de vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se mostra patente que o Tribunal recorrido tenha violado quaisquer normas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana, ou ainda quaisquer leges artis vigentes no julgamento da matéria de facto, tendo esse Tribunal, ao invés, explicado, de modo lógico e razoável, todo o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos de intervenção do 2.o arguido ora recorrente, em comparticipação com a 1.a arguida, na celebração dos dois contratos de arrendamento em questão nos autos, e na assinatura, sucessivamente, de dois documentos respeitantes a uma dessas fracções autónomas (cfr. inclusivamente e sobretudo as conclusões tecidas pelo mesmo Tribunal – acerca da análise crítica e global de todos os elementos probatórios referidos ao longo da fundamentação probatória da sua decisão sobre os factos nesta parte em causa – no terceiro parágrafo da página 21 do texto do aresto recorrido, a fl. 676), pelo que não pode ter havido vício de erro notório na apreciação da prova nos termos esgrimidos pelo recorrente.
E agora da alegada falta de fundamentação: da leitura do teor de toda a fundamentação do acórdão recorrido, resulta nítido que o Tribunal recorrido não chegou a violar o art.o 355.o, n.o 2, do CPP, pelo que há que naufragar o recurso nesta parte, sem mais indagação por desnecessária.
É tempo de conhecer da questão de duplicação de condenação:
Ante a matéria de facto já dada por provada em primeira instância, realiza o presente Tribunal de recurso que o 2.o arguido só pode ser condenado como co-autor material, em comparticipação com a 1.a arguida, de dois crimes consumados de uso de documento falsificado de especial valor, e de um crime consumado continuado de falsificação de documento.
Com efeito:
– a primeira das duas fracções autónomas referidas na matéria de facto provada foi arrendada à 1.a arguida, a qual, com uso de um bilhete de identidade de residente de Macau falsificado por outrem (cfr. os factos provados 3 e 4 e 5), assinou no respectivo contrato como sendo arrendatária (cfr. o facto provado 5), tendo os dois arguidos agido em conluio e conjugação de esforços (cfr. os factos provados 2, 6, 25 e 26), o que significa que, no processo de celebração desse primeiro contrato, o 2.o arguido não chegou a assinar qualquer documento com falsa declaração sobre o seu próprio nome completo, ainda que oralmente se tenha identificado perante outrem como sendo de apelido “Cheong 張”. Assim, a respeito desse primeiro contrato, só praticaram os dois arguidos, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de uso de documento falsificado de especial valor, o que implica a devida absolvição dos dois arguidos da prática, na mesma ocasião, de um crime de falsificação de documento (é que, frisa-se, o acto de a 1.a arguida ter assinado nesse contrato com declaração de uma identidade falsa deve ser entendido como já absorvido pela conduta de uso daquele bilhete de identidade falso na celebração do mesmo contrato, o que leva à devida absolvição do 2.o arguido por um crime de falsificação de documento);
– e no tangente à segunda fracção autónoma referida na matéria de facto objecto do segundo contrato de arrendamento, esta fracção autónoma foi arrendada à 1.a arguida, a qual, com uso do bilhete de identidade de residente de Macau falsificado por outrem acima referido (cfr. os factos provados 3 e 4 e 16), assinou no respectivo contrato como sendo arrendatária (cfr. o facto provado 16), tendo os dois arguidos agido em conluio e conjugação de esforços (cfr. os factos provados 2, 16, 25 e 26), o que significa que o 2.o arguido não chegou a assinar nesse contrato de arrendamento com falsa declaração sobre o seu próprio nome completo (ainda que oralmente se tenha identificado perante outrem como sendo de apelido “Cheong 張” – cfr. o facto provado 17). Assim, a respeito desse segundo contrato, só praticaram os dois arguidos, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de uso de documento falsificado de especial valor, o que implica a devida absolvição dos dois arguidos da prática, na ocasião da celebração do mesmo contrato, de um crime de falsificação de documento (é que, também se salienta aqui, o acto de a 1.a arguida ter assinado nesse contrato com declaração de uma identidade falsa deve ser entendido como já absorvido pela conduta dela de uso daquele bilhete de identidade falso na celebração do mesmo contrato, o que leva à devida absolvição do 2.o arguido por um crime de falsificação de documento);
– e sobre os dois documentos – um, referido no facto provado 20, para confirmação da lista de mobiliário e equipamento da fracção arrendada, e o outro, referido no facto provado 22, para tratamento de devolução da fracção arrendada – sucessivamente assinados pelo próprio 2.o arguido a propósito da segunda fracção autónoma arrendada, ele de facto assinou nesses dois documentos com igual declaração, como sendo sua, de uma falsa identidade. Esta conduta sua dele (de ter assinado nesses dois documentos) já não deve ser absolvida pela conduta da 1.a arguida de celebrar esse contrato em causa com uso daquele bilhete de identidade falso. Entretanto, não deve ser ele punido por prática de dois crimes de falsificação de documento (falsificação daqueles dois documentos por ele assinados), mas sim um só crime consumado continuado de falsificação de documento (praticado em co-autoria com a 1.a arguida – cfr. nomeadamente os factos provados 20, 22, 25 e 27), isto porque o acto de assinar o documento referente à devolução da fracção arrendada se prendeu com a rescisão do respectivo contrato de arrendamento, circunstância essa que naturalmente fez com que o grau de culpa na execução dessa conduta de assinar esse documento tenha sido diminuída de modo considerável, se comparado com a (primeira) conduta de assinar o documento de confirmação da lista do mobiliário e equipamento da mesma fracção.
Realça-se que se faz a análise nos termos acima expostos e a expor infra, tudo também em relação à primeira arguida, porque é o art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do CPP que dita isto.
É altura de se ocupar da medida da pena:
Considerada a factualidade provada, aos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, com ponderação também das necessidades da prevenção geral, entende-se que a pena de prisão de um ano e seis meses achada no aresto recorrido para cada um dos dois crimes consumados de uso de documento falsificado de especial de valor por que vinha condenado o recorrente em primeira instância em co-autoria com a 1.a arguida já não admite mais margem para qualquer redução.
Quanto ao crime consumado continuado de falsificação de documento do 2.o arguido (em co-autoria com a 1.a arguida) (por causa dos factos provados 20 e 22), é de puni-lo com sete meses de prisão, nos termos dos art.os 29.o, n.o 2, e 73.o do CP (decisão essa que aproveita à arguida).
Em cúmulo jurídico dessas três penas de prisão em causa, é de passar a condenar os dois arguidos igualmente em dois anos e três meses de prisão, com suspensão da execução da pena para a 1.a arguida, pelo período de três anos, sob condição da prestação de dez mil patacas de contribuição, no prazo de trinta dias, a favor da entidade beneficiária referida no dispositivo do acórdão recorrido, e sem suspensão da execução da pena para o 1.o arguido (por ser este um delinquente doloso não primário).
Entretanto, a pena única a aplicar finalmente ao 2.o arguido não vai ser somente de dois anos e três meses de prisão, visto que as suas três penas de prisão acima referidas têm que entrar em cúmulo jurídico também com as duas penas de prisão parcelares então impostas a ele no âmbito do Processo n.o CR4-18-0181-PCC do TJB (ou seja, com a pena de um ano e três meses de prisão por um crime de uso de documento falsificado de especial valor e com a pena de nove meses de prisão por um crime de falsificação de documento), daí que tudo ponderado é de passar a impor-lhe dois anos e nove meses de prisão única, sem suspensão da sua execução (por não ser de formar juízo de prognose favorável a ele para os efeitos a relevar do art.o 48.o, n.o 1, do CP, por ele ter voltado a praticar delitos penais congéneres, o que significa que a mera censura dos factos e a ameaça da execução da prisão nesta vez já não deverão poder assegurar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição na vertente sobretudo de prevenção especial).
Em suma, procede o recurso do 2.o arguido, mas apenas parcialmente, e por fundamentação algo diversa da sustentada por ele na questão da duplicação de condenação.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do 2.o arguido B, e passando, por conseguinte, a condenar (nos termos nomeadamente do art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal), e somente:
– o 2.o arguido B e a 1.a arguida A apenas como co-autores, na forma consumada, de dois crimes de uso de documento falsificado de especial valor, p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea c), e 245.o do Código Penal, igualmente em um ano e seis meses de prisão por cada, e de um crime continuado de falsificação de documento (com referência aos factos provados 20 e 22), p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea b), 29.o, n.o 2, e 73.o do Código Penal, igualmente em sete meses de prisão;
– a 1.a arguida A em dois anos e três meses de prisão única (resultante do cúmulo jurídico das três penas acima referidas), com suspensão da sua execução pelo período de três anos, sob condição da prestação de dez mil patacas de contribuição, no prazo de trinta dias, a favor da entidade beneficiária referida no dispositivo do acórdão recorrido;
– o 2.o arguido B em dois anos e nove meses de prisão única efectiva, resultante do cúmulo jurídico das suas três penas de prisão acima referidas com as duas penas de prisão então impostas a ele no âmbito do Processo n.o CR4-18-0181-PCC do TJB.
Pagará o 2.o arguido 3/4 das custas do seu recurso, com seis UC de taxa de justiça.
Macau, 11 de Março de 2021.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 1189/2019 Pág. 14/14