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Processo nº 673/2020
(Recurso Contencioso)

Data do Acórdão: 15 de Abril de 2021

ASSUNTO:
- Revogação da autorização de residência.
- Prática de factos que constituem um tipo legal de crime.
- Poder discricionário.

SUMÁRIO:
- Demonstrada a prática de factos que constituem um tipo legal de crime é possível concluir pelo perigo para a segurança e ordem pública, fundamento da Revogação da autorização de residência, independentemente da eventual condenação criminal;
- Só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC -.
- A intervenção do tribunal fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre o acto praticado e os interesses particulares sacrificados.




____________________________
Rui Pereira Ribeiro




















Processo nº 673/2020
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 15 de Abril de 2021
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 20.05.2020 que declarou a caducidade da autorização de residência da Recorrente, formulando as seguintes conclusões:
Entendimento erróneo do art.º 9.º, n.º 2 da Lei n.º 4/2003 e do art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003
1. No acto recorrido, entendeu a entidade recorrida que a recorrente admitiu o envolvimento na prática do crime de falsificação de documentos previsto pelo art.º 18.º da Lei n.º 6/2004, a fim de obter interesse ilegal.
2. Porém, a recorrente não é julgada pelos tribunais, e não tem qualquer antecedente criminal.
3. Quer dizer, não se pode dizer que a situação da recorrente é o comprovado incumprimento das leis da RAEM.
4. Se assim não for entendido, no caso sub judice, a situação da recorrente é mais próxima ao seguinte caso no art.º 4.º da respectiva Lei: “existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes;”
5. Ou seja, a entidade recorrida pode entender que há fortes indícios de acto criminoso praticado pela recorrente.
6. Porém, segundo o acórdão do TSI n.º 641/2009, são “fortes” os indícios quando destes resulte que a possibilidade da condenação do arguido é maior do que a da sua absolvição.
7. Mas o respectivo caso ainda se encontra na fase de inquérito, e o Ministério Público não deduz acusação contra a recorrente, pelo que não se pode considerar preenchido o requisito de “fortes indícios”.
8. Normalmente, a adopção das medidas de recusa da entrada ou de revogação da autorização de residência fundamenta-se na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
9. Neste caso concreto, não se verifica qualquer facto ou prova concreta do perigo efectivo causado pela recorrente para a segurança ou ordem públicas da RAEM, a recorrente não praticou, por si, actos ilegais, tem mantido um bom comportamento, e não tem qualquer registo de acto ilegal ou ilícito.
10. A recorrente é acusada da falsificação de documentos, o respectivo caso ainda se encontra na fase de inquérito, e não é imputado à recorrente qualquer outro crime, nem há indícios de influência trazida pela recorrente para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
11. Obviamente, não se aplica necessariamente ao caso da recorrente a medida administrativa de declaração de caducidade da autorização de residência.
12. Ademais, segundo o “princípio da proporção” da pena, não se verifica, no caso vertente, a gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que determinam a interdição de entrada.
13. Por outro lado, no entendimento da recorrente, a entidade recorrida atendeu meramente à causa penal da recorrente, violando o art.º 9.º da supracitada Lei.
14. Do supracitado artigo resulta que, para conceder ou não a autorização de residência, deve-se considerar não só a al. 1) do n.º 2, mas também os restantes elementos neste número.
15. Primeiro, a recorrente é de nacionalidade vietnamita, e casou com o marido B em Macau no dia 25 de Janeiro de 2013. Depois, com base no motivo de união com o cônjuge B, a entidade recorrida proferiu despacho em 18 de Dezembro de 2013 autorizando a residência da recorrente, que é renovável até 17 de Dezembro de 2020.
16. Durante o período de autorização de residência, a recorrente nasceu dois filhos menores em Macau, e agora vive com o marido, os dois filhos menores e os pais do marido na Rua da XX, XX XX, XXº andar XX.
17. Desde o nascimento, os dois filhos menores são sempre atendidos pela recorrente.
18. Os dois filhos menores já entram na fase de educação infantil, e agora precisam muito do acompanhamento e cuidado da mãe (recorrente).
19. Se for declarada a caducidade da autorização de residência da recorrente, ela não poderá viver em Macau por longo tempo. A terra de origem da recorrente é o Vietname, e por razões económicas e da distância entre os dois lugares, não conseguirá a recorrente educar e cuidar dos dois filhos menores.
20. Não obstante que a recorrente ainda tenha oportunidade de entrar em Macau, ele só poderá permanecer em Macau por pouco tempo cada ano devido à perda do direito à residência. E por razões referidas no artigo anterior, não poderá a recorrente visitar Macau por várias vezes.
21. Quer dizer, as duas crianças perderão o cuidado e ensino da mãe, bem como a oportunidade de aproximar a mãe, e serão causadas, definitivamente, influências negativas e irreversíveis ao desenvolvimento e à vida familiar das crianças.
22. De acordo com a experiência comum da sociedade, a separação de filhos menores da sua mãe é absolutamente desumana.
23. Por outro lado, o sogro da recorrente C sofre de diabete, hipertensão arterial, dores de cabeça, faringite e laringite, e tem ido ao hospital para acompanhamento das suas doenças por longo tempo. Não obstante que C possa ir, por si, ao hospital e cuidar de si próprio, por sofrer de doenças crónicas, ocorrem-lhe, ocasionalmente, umas situações menores, tais como tontura e outros sintomas desconfortáveis, pelo que ele também precisa de atendimento de certo grau.
24. A sogra da recorrente tem mais de 60 anos de idade, e apesar de não precisar de atendimento especial, também não pode cuidar do marido C sozinha, pelo que a recorrente e o seu marido responsabilizam-se por cuidar de C.
25. Por isso, a recorrente também assume a responsabilidade de cuidar do seu sogro.
26. Daí que, se for declarada a caducidade da autorização de residência da recorrente, ela não poderá cuidar do sogro, e em consequência, serão maiores os encargos da recorrente e do seu marido.
27. Segundo os factos acima expostos, 3 dos 6 membros da família da recorrente precisam de atendimento a longo prazo, e dois deles são filhos menores da recorrente.
28. Se for declarada a caducidade da autorização de residência da recorrente, será destruída a família desta, e caberá ao marido e à sogra da recorrente o encargo de cuidar dos dois filhos menores e de C, mas o marido precisa de trabalhar e a sogra tem uma idade avançada, pelo que eles não têm a exigida força física e mental.
29. Tal prejuízo não é susceptível de avaliação pecuniária.
30. Além disso, como é referido no artigo 35.º da presente petição, os 6 membros da família da recorrente vivem na fracção XX do edifício XX XX na Rua da XX.
31. Essa fracção é alugada em nome da sogra da recorrente, com renda mensal de HKD$12.500,00.
32. Mas os sogros da recorrente não têm rendimento, pelo que a referida renda é paga com os rendimentos da recorrente e do seu marido. A recorrente e o seu marido auferem, respectivamente, MOP$21.500,00 por mês.
33. A caducidade da autorização de residência da recorrente resultará na perda de metade dos rendimentos da sua família, o que trará, sem dúvida, consequências muito graves à economia familiar, por exemplo, não poder pagar a renda, perder a residência, não poder cuidar dos filhos, e o nível de vida dos filhos será consideravelmente pior.
34. Se for perdido o rendimento da recorrente, a capitação de rendimento da família desta será de apenas MOP$4.300,00, que é muito inferior ao valor mediano da renda em Macau (segundo o inquérito ao emprego do 1º trimestre de 2020 feito pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, o valor mediano é MOP$16.000,00).
35. Quanto à capacidade de subsistência, como acima referido, a recorrente vive em Macau por mais de 6 anos, tem um emprego com renda estável, e trabalha na respectiva companhia (D) há mais de 5 anos.
36. Assim, a recorrente tem capacidade de subsistência em Macau.
37. Como acima referido, a recorrente reside em Macau para a união com o marido e a constituição de família.
38. Agora, a recorrente vive em Macau com o marido, os sogros e dois filhos menores, e tem uma boa relação com eles, sendo a família feliz.
39. A finalidade de residência da recorrente é de boa fé e humanitária, e ainda se sustenta.
40. A recorrente trabalha como croupier na D, sendo o seu emprego legítimo e o rendimento estável.
41. A recorrente casou com o marido B em Macau, nasceu dois filhos, vive com os sogros e tem uma boa relação com eles. A recorrente educa os dois filhos e cuida deles, sendo um membro muito importante da família.
42. Em fim, a recorrente saiu da terra de origem (Vietname) e vive em Macau há 6 anos. Apesar de ainda ter a seu cargo os pais e a avó no Vietname, basicamente, a recorrente já não tem qualquer relação na vida com o Vietname. O mais importante é que, agora, a recorrente tem a família em Macau, onde vivem os seus familiares mais importantes.
43. Por isso, se a recorrente for expulsa e sair de Macau, não conseguirá manter uma relação estreita com a família, e será colocada, sem dúvida, numa situação de separação familiar.
44. Por razões humanitárias, continuar a autorizar a residência da recorrente é a prática que está em conformidade com as exigências legais.
45. Pelo exposto, atendendo à situação da recorrente, incluindo a vida, a família, a economia e outros elementos, a entidade recorrida entendeu erradamente ou não considerou plenamente os dispostos no n.º 2 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003.
46. Por isso, o acto administrativo praticado pela entidade recorrida padece do vício de anulabilidade conforme o art.º 124.º do CPA.
A decisão de declarar a caducidade da autorização de residência da recorrente viola a Lei Básica e o princípio da presunção de inocência no CPP
47. De acordo com o art.º 82.º da Lei Básica e o art.º 49.º do CPP, o princípio da presunção de inocência é o princípio mais fundamental no direito penal moderno. O depoente presume-se inocente antes de ser julgado pelo tribunal.
48. Pelo exposto, antes de o tribunal declarar a condenação da recorrente, o acto administrativo impugnado revogou a autorização de residência desta com fundamento em que a mesma presumivelmente cometeu o crime de falsificação de documentos, aplicou erradamente a lei, e violou o espírito da lei, bem como o “princípio da presunção de inocência” e os direitos de “ser julgado e exercer o contraditório” previstos pelo art.º 29.º da Lei Básica.
49. A recorrente mantém um bom comportamento e nunca violou qualquer lei, e até ao presente, nunca foi julgada pelo tribunal.
50. Por isso, o acto administrativo praticado pela entidade recorrida padece do vício de anulabilidade conforme o art.º 124.º do CPA.
A decisão de declarar a caducidade da autorização de residência viola o princípio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do art.º 5.º do CPA
51. O princípio da proporcionalidade significa que os actos da Administração, nomeadamente aqueles que limitem e prejudiquem os direitos individuais e interesses legais, devem ser adequados e necessários para atingir os objectivos visados.
52. A causa penal relativa à recorrente ainda se encontra na fase de inquérito, e não é imputado à recorrente qualquer outro crime, nem há indícios de influência trazida pela recorrente para a segurança ou ordem públicas da RAEM. Desta forma, a declaração da caducidade da autorização de residência da recorrente é obviamente inadequada e viola o princípio da proporcionalidade.
53. Ou seja, a respectiva decisão viola o art.º 5.º do CPA, e conforme o art.º 124.º do mesmo Código, tal acto administrativo padece do vício de anulabilidade.
Violação da Lei n.º 6/94/M – Lei de Bases da Política Familiar
54. Como acima referido, a recorrente requereu a residência em Macau para unir com o marido e cuidar da família.
55. A Lei de Bases da Política Familiar visa proteger a constituição da família, e todos têm direito a constituir família e a contrair casamento em condições de plena igualdade.
56. A entidade recorrida declarou a caducidade da autorização de residência da recorrente com fundamento em que esta presumivelmente cometeu o crime de falsificação de documentos, causando danos à família já constituída da recorrente. Também são violados os artigos 1.º, 5.º e outros da Lei de Bases da Política Familiar.
57. Por isso, o acto administrativo praticado pela entidade recorrida padece do vício de anulabilidade conforme o art.º 124.º do CPA.
  Citada a entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar com os fundamentos constantes de fls. 92 a 98, traduzido a fls. 104 a 113.
  
  Notificadas as partes para querendo apresentarem alegações facultativas, veio a Recorrente fazê-lo.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
  1.
  A, melhor identificada nos autos, interpôs recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança, datado de 20 de Maio de 2020, que declarou a caducidade da autorização de residência da Recorrente em Macau.
  Alegou, em síntese, que o acto recorrido enferma dos seguintes vícios:
  (i) Violação do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 e do artigo 24.º, n.º 1 do Regulamento administrativo n.º 5/2003;
  (ii) Violação do princípio da presunção de inocência;
  (iii) Violação do princípio da proporcionalidade;
  (iv) Violação da Lei de Bases da Política Familiar.
  2.
  2.1.
  Alega a Recorrente que acto impugnado enferma do vício de violação de lei porquanto, em seu entender, o artigo 24.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003 e o artigo 9.º da Lei n.º 4/2003.
  A nosso ver, salvo o devido respeito, não tem razão.
  Consignou-se no acto recorrido o seguinte: «a interessada (…) enganou a Administração Pública junto com o seu marido, perturbou a política e a ordem da entrada e saída e agiu de forma desonestam fazendo com que a Administração Pública perdesse a confiança depositada na sua boa personalidade ao conceder-lhe a autorização de residência e não confiasse que a interessada iria observar a lei e agir com honestidade no futuro. Pelo que, segundo o art. 24.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003 e o art. 9.º da Lei n.º 4/2003, decide-se declarar caducada a autorização de residência de A» (transcrevemos parte da versão portuguesa do acto recorrido que se encontra nos autos).
  Nos termos da norma da alínea 1) do artigo 24.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, é causa de caducidade da autorização de residência o decaimento de quaisquer pressupostos ou requisitos sobre os quais se tenha fundado a autorização.
  Por sua vez, da norma da alínea 1) do n.º 2 da norma do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 resulta que constitui pressuposto da autorização de residência a formulação de um juízo administrativo de prognose favorável relativamente ao cumprimento das leis da Região por parte do interessado, constituindo o comprovado incumprimento dessas leis, em princípio, obstáculo àquela autorização.
  No caso, dos factos que constituíram os pressupostos da actuação administrativa contenciosamente questionada resulta que a Recorrente terá comparticipado directamente em factos susceptíveis de serem criminalmente punidos ao abrigo do artigo 18.º da Lei n.º 6/2004 e que, ainda que o não sejam ou que o não venham a ser, constituem, em qualquer caso, uma violação das leis que regulam a atribuição de autorizações de permanência em Macau aos trabalhadores não residentes.
  Verifica-se, deste modo, que um dos pressupostos nos quais se fundou a autorização de residência e que anteriormente referimos, qual seja, o do prognóstico favorável quanto ao cumprimento das leis da Região por parte do interessado, decaiu. Por isso, mostra-se preenchida a hipótese da norma da alínea 1) do artigo 24.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, a qual legitima a Administração a declarar, como efectivamente declarou, a caducidade da Autorização de residência da Recorrente. Não ocorre, assim, a invocada violação de lei.
  2.2.
  A Recorrente alega também a violação do princípio da presunção de inocência para sustentar a invalidade do acto recorrido.
  Também aqui nos parece que lhe falta razão.
  Vejamos.
  Da fundamentação do acto recorrido resulta que o seu pressuposto de facto é o seguinte:
  «(…) para obter interesse pecuniário, a interessada e o seu marido ajudaram E a obter o título de identificação de trabalhador não residente e permanecer em Macau, mas na realidade E não trabalhou por conta deles (…)».
  Ao contrário do que sustenta a Recorrente, na perspectiva da validade do acto recorrido, é irrelevante, a nosso ver, o facto de a mesma ainda não ter sido condenada por sentença transitada em julgado pelos factos que a Administração apurou e que serviram como pressupostos do acto. Mesmo que o inquérito criminal venha a ser arquivado ou que, em eventual instrução, a Recorrente venha a ser não pronunciada ou, finalmente, que venha a ser absolvida por sentença final proferida em processo penal, nem por isso a Administração deixaria de estar legitimada a actuar da forma como o fez através do acto impugnado. A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores é, a este propósito, uniforme neste mesmo sentido.
  O princípio da presunção de inocência releva, em exclusivo, no processo penal e, como é bom de ver, a Administração não condenou, e muito menos criminalmente, a Recorrente. Antes, a Administração, sequência da actividade procedimental administrativa de natureza instrutória levada a cabo, concluiu que a Recorrente praticou factos susceptíveis de integrar a previsão da norma de competência que justificou a actuação agora impugnada. Nisto, não se vislumbra qualquer ilegalidade, nomeadamente aquela que foi apontada pela Recorrente.
  2.3.
  Diz a Recorrente que o acto impugnado violou o princípio da proporcionalidade.
  Não nos parece.
  O princípio da proporcionalidade, como se sabe, encontra assento normativo no artigo 5.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo (CPA): «As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar».
  De acordo com a jurisprudência firmada do Tribunal de Última Instância, na aferição do respeito pela proporcionalidade quando estão em causa actos restritivos ou limitativos de direitos dos particulares «há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação dos princípios orientadores do exercício de poderes discricionários, tais como da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça» (assim, veja-se o Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
  Ora, tendo a Administração declarado a caducidade da autorização de residência da Recorrente com fundamento no facto de esta ter praticado factos que colocaram em causa o juízo de prognose favorável quanto ao cumprimento das lei de Macau que foi efectuado no momento da prolação daquele acto de autorização, e, portanto, com vista a, de acordo com um juízo de administrativo de prognose, salvaguardar a segurança e ordem públicas, o «sacrifício» imposto à Recorrente, não só se revela apto (ou adequado na pouco exacta, terminologia tradicional) e necessário a alcançar aquele fim, como, além disso, não se mostrara inaceitável ou intolerável, o mesmo é dizer, desproporcional em sentido estrito.
  Por isso, não vemos que ocorra a apontada violação de lei consistente na infracção do princípio da proporcionalidade.
  2.4.
  Finalmente, para justificar a sua pretensão impugnatória, a Recorrente invocou a violação, pela Entidade Recorrida, da Lei n.º 6/94/M, ou seja, da Lei de Bases da Política Familiar.
  Como é evidente, esta alegação carece de qualquer fundamento que a suporte.
  Na verdade, de acordo com o n.º 2 do artigo 1.º da referida Lei, incumbe «à Administração, em estreita colaboração com as associações relacionadas com os interesses das famílias, a promoção, a melhoria da qualidade de vida e a realização moral e material das famílias e dos seus membros».
  Todavia, como bem se compreende, essa norma de carácter marcadamente programático não pode constituir, nem, aliás, constitui um obstáculo juridicamente relevante ao exercício por parte da Administração das competências que a lei lhe defere quando, como no caso, está em causa a declaração de caducidade de uma autorização de residência fundada no decaimento dos respectivos pressupostos.
  3.
  Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.
  
  Foram colhidos os Vistos.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos factos
  
  Destes autos e do processo administrativo apenso foi apurada a seguinte factualidade:
a) Em 18.12.2013 foi concedida à Recorrente a autorização de residência em Macau, a qual tendo sido sucessivamente renovada era válida até 17.12.2020 – fls. 59, 60 e 128 do PA -;
b) Tendo a PSP apurado que a agora Recorrente e o seu marido para obterem vantagem económica de uma cidadã de nacionalidade Vietnamita declararam que a mesma trabalhava para si como empregada doméstica, o que sabiam não corresponder à verdade, permitindo que aquela assim obtivesse autorização de permanência em Macau como trabalhador não residente, veio a ser lavrada a proposta que consta de fls. 233 a 236 do processo administrativo apenso com o seguinte teor:
1. 參閱本廳報告書201558/SRDARPREN/2019P,於2019年9月11日及19日先後接獲本廳調查及遣送處通知(編號510061/CIRDCF/2019P)及外地僱員分處便函(編號201017/STNRDARP/2019P),並附上述通知影印本。主要內容如下:在調查一宗由本廳外地僱員分處轉介之個案時,發現一名外地僱員E 於2018年8月6日至今受聘於一本澳居民B(利害關係人配偶)擔任家務助理,在對E作出調查期間,利害關係人及其配偶一同前往該警司處查詢有關E受邀協助調查之情況,在回應利害關係人配偶提問過程中,發現利害關係人及其配偶對所聘任之外地僱員工作時間、作息安排及其身份資料回答並不一致且前後矛盾,懷疑其等涉及虛假聘任,故邀其等協助調查。經先後向E、A及B查問,其等均承認有關僱傭關係為虛假,且從沒有為僱主提供任何形式之服務,而E先後所持有之兩張外地僱員身份認別證均以金錢給予B澳門幣一萬七千元及澳門幣八千元作報酬購買所得,目的為逗留澳門尋找工作;而利害關係人及其配偶亦承認目的為收取不法利益。有關行為涉嫌觸犯第6/2004號法律第18條【偽造文件】之犯罪行為,案件於2019年9月7日送交檢察院處理。(P.181-193)
2. 於2019年9月17日,本廳致函(119279/SRDARPREN/2019P)檢察院查詢利害關係人有關案件的情況。於2019年9月27日獲覆函(487/2019/S7/VL),稱該案仍處偵查階段,倘有最終決定時將適時作出通知。(P.174、175)
3. 鑑於利害關係人有關行為的性質對公共秩序構成威脅。故根據《行政程序法典》第93及第94條的規定,我們以“書面聽證”形式,將本廳擬定的意見向利害關係人作出通知擬宣告其原獲批之居留許可失效;本廳於2019年9月多次致電卻未能與利害關係人取得聯絡,而利害關係人亦一直沒有親臨本廳接受上述程序。(P.172、173)
4. 於2019年10月8日,根據有關指引向利害關係人以單掛號形式作出“書面聽證”之通知,詳情參閱公函第119292/SRDARPREN/2019P號及通知書第201558/SRDARPREN/2019P號。而利害關係人可在收到通知書十天內,對建議內容以書面發表意見。(P.167-171)
5. 於2019年10月11日,利害關係人前來本廳書面要求延期30天遞交文件,同日獲上級批示同意。(P.166)
6. 於2019年10月16日,接獲利害關係人代理律師的公函及相關文件傳真要求查閱卷宗。10月17日完成有關查閱程序。(P.162-165)
7. 於2019年10月23日,利害關係人代理律師向本廳寄送以下文件:
- 利害關係人代理律師F大律師的聲明書,內容大意是聲稱: “...陳述人絕不認同聽證通知書的內容。事實經過並非如通知書所述。首先,陳述人並沒有在澳門實施犯罪,沒有觸犯了澳門第6/2004號法律第18條之犯罪行為,亦沒有實施其他犯罪。陳述人絕對相信,經過檢察院公正的調查後,將還陳述人清白,並將陳述人案件歸檔。在被批准留澳的這時間中,陳述人已與丈夫誕下兒子G和女兒H。陳述人與其丈夫、兩名未成子女以及其丈夫之父母,一家六口住於澳門。兩名未成年子女出生到現在,均由陳述人所照料,他們現已進入幼兒教育階段。因此現時是極度需要母親(即陳述人)陪伴身邊教育以及照顧。倘現在宣告陳述人的居留許可失效,陳述人將不可能長時間久居於本澳,而且陳述人之原居地是越南,基於經濟原因以及兩地間的距離,陳述人根本無法對兩名未成年子女作出教育及照顧。亦即,兩名小朋友便自此失去母親照顧以及看管教導。眾所周知,倘兩名小朋友在成長的過程中失去了母親的照顧,以及失去了與母親親近的機會,這是絕對會令小孩的成長以及家庭生活做成不可逆轉的負面影響。根據一般社會經驗可知,未成年小孩與母親分離,這絕對是一個不人道的情況。另外,家翁C同時患有糖尿病、高血壓、頸痛以及咽喉炎疾病,一直長期前往醫院跟進。照顧C的責任主要由陳述人及其丈夫負責。倘現在宣告陳述人的居留許可失效,將導致陳述人的家庭破碎,以及令照顧C以及兩名未成年人的工作落在丈夫及其家婆身上,但陳述人丈夫需要上班,家婆又年事已高,他們兩位根本沒有這般體力及心力去處理。家婆及家翁沒有經濟收入,所以有關租金是靠陳述人及陳述人丈夫的收入維持。在本具體個案中,並沒任何具體事實或證據證明陳述人對澳門的公共安全或公共秩序確實構成危險。陳述人被指涉嫌偽造文件,有關案件尚在偵查階段,而且陳述人亦沒有被指控其他的犯罪,沒有跡像顯示陳述人對澳門的治安或公共安全造成影響。「無罪推定原則」是現代刑事法最基本的原則。陳述人在法院審判前都被認定是無罪。陳述人是一個行為良好,沒有觸犯任何法律的人,到目前止,沒有接受過任何審判。綜上所述,懇請能考慮上述事實和理由,不宣告陳述人之居留許可失效。”(詳見該聲明書)(P.155-161)
- 利害關係人婚姻登記之敘述證明影印本。(P.154)
- 利害關係人兒子的出生登記之敘述證明影印本,內載其姓名G於20XX年XX月XX日於澳門出生(現年6歲),父親B,母親A。(P. 153)
- 利害關係人女兒的出生登記之敘述證明影印本,內載其姓名H於20XX年XX月XX日於澳門出生(現年4歲),父親B,母親A。(P. 152)
- 利害關係人家婆之樓宇租賃合約及收據影印本。(P.150、151)
- 利害關係人配偶的XX銀行信用咭月結單。(P.149)
- 利害關係人家翁及家婆的電話費單。(P147、148)
- 利害關係人兒子和女兒的澳門學生證影印本。(P.145、146)
- 利害關係人家翁的醫生聲明書2份。(P.143、144)
- 利害關係人配偶的工作證明。(P.142)
- 利害關係人的工作證明。(P.141)
- 利害關係人的授權書。(P.139、140)
- 利害關係人代理律師之申請查閱卷宗公函正本,及書面聽證通知書,及有關通知公函的影印本。(P.136-138)
8. 經查有關出入境紀錄顯示。在過去約半個月(2019年10月19日至2019年10月30日)期間,利害關係人及其配偶居澳均12夭。(P.133-135)
9. 綜合分析本案,根據利害關係人代理律師陳述稱,若宣告利害關係人居留失效,將無法留澳,家庭經濟亦將受影響,利害關係人亦不能照顧澳門的家庭。但利害關係人在調查過程中已承認有關犯罪事實,其承認以收取不法利益為目的,並在另一越南籍中介之協助下,以虛假聘用形式與E建立虛假僱傭關係,但由始至終E並沒有為申請人提供任何形式之服務,且在是次虛假聘用過程中收取不法金錢利益作為報酬。鑑於有關行為對澳門公共秩序構成威脅。經考慮第4/2003號法律第9條第2款所指各項因素,及第5/2003號行政法規第24條第1款之規定,建議宣告原獲批居留許可失效。
10. 呈上級審批。
c) Em 28.05.2020 foi proferido despacho a revogar a autorização de residência da aqui Recorrente com os fundamentos constantes da proposta referida na alínea anterior e parecer nela lavrado tudo conforme consta de fls. 236 e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
d) A Recorrente foi notificada daquela decisão em 08.06.2020 conforme consta de fls. 248 do processo administrativo apenso.
  
  b) Do Direito
  
  Nas suas alegações de recurso invoca a recorrente que o despacho recorrido enferma de:
  - Vício de violação de lei;
  - Violação do princípio da presunção de inocência;
  - Violação do princípio da proporcionalidade;
  - Violação da Lei de Bases da Política Familiar.
  
  Do Vício de violação de lei.
  
  No que concerne ao vício de violação de lei entende a Recorrente que não tendo sido condenada pela prática de qualquer crime, nem havendo indícios de o ter cometido não está demonstrada a existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem pública da RAEM.
  O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
  «O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
  Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
  (…)
  A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
  a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
  b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
  c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
  d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
  e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
  f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
  g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
  A autorização de residência da Recorrente foi revogada com base no artº 24º nº 1 do regulamento Administrativo nº 5/2003 e artº 9º da Lei nº 4/2003, porquanto para obter interesse pecuniário a Recorrente e o seu marido ajudaram determinado sujeito a obter o título de trabalhador não residente, declarando que o mesmo trabalhava para eles quando sabiam que tais declarações não correspondiam à verdade.
  No que à situação dos autos interessa é a seguinte a redacção dos nºs 1 e 2, 1) do artº 9º da Lei nº 4/2003:
  1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
  2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
  1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
  Por sua vez é a seguinte a redacção da alínea 3) do nº 2 do artº 4º do mesmo diploma para o qual remete a citada alínea 1 do nº 2 do artº 9º:
  2. Pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
  …
  3) Existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes;
  Entende a Recorrente que na decisão sob recurso não está demonstrada a existência de perigo para a segurança e ordem pública, porquanto ainda não foi condenada pela prática de qualquer crime e não estar demonstrada a existência de fortes indícios.
  Ora, tal como já se refere no Douto parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público o que releva para a atribuição da autorização de residência ou sua caducidade não é a existência concreta de uma condenação pela prática de actos criminalmente puníveis mas a formulação de um juízo de prognose para a segurança ou ordem pública que a actuação dessa pessoa tenha gerado.
  São várias as situações que, podendo ser integradas como factos criminalmente puníveis, podem nunca vir a dar origem a uma condenação criminal, nomeadamente por prescrição do procedimento, ausência de queixa, ou outras circunstâncias que obstem àquele, sem que contudo, deixe de ser evidente em face dos factos apurados que a conduta do sujeito foi contrária ao direito e à ordem pública da RAEM.
  Mais, quando na alínea 1) do nº 2 do artº 9º da Lei 4/2003 se fala de incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artº 4º, o legislador está expressamente a afastar a consideração de apenas aspectos criminais, da concessão de autorização de residência.
  Isto é, a relevância dos factos criminalmente puníveis é um dos, mas não o único aspecto, no que concerne ao incumprimento das leis, que releva.
  Em sentido idêntico ao destes autos se decidiu no Acórdão do TUI de 24.02.2021 proferido no processo nº 206/2020 relativamente a esta questão e ao conceito indeterminado que encerra:
  «E, como no Acórdão de 21.10.2020, (Proc. n.° 84/2020), já tivemos oportunidade de considerar:
  «Apresenta-se-nos inquestionável que a expressão “perigo para a segurança ou ordem pública” vertida na referida “alínea 3 do n.° 1 do art. 11°”, constitui um “conceito jurídico indeterminado”.
  Sobre o seu “sentido” e “alcance”, teceram-se já considerações abundantes, valendo a pena aqui lembrar o que este Tribunal já teve oportunidade de sobre o mesmo explanar:
“Como refere ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA a expressão conceito indeterminado pretende referir aqueles conceitos que se caracterizam por um elevado grau de indeterminação. A estes opõem-se os conceitos determinados, sendo os relativos a medidas (metro, litro, hora) ou a valores monetários (pataca, dólar norte-americano) os conceitos mais determinados.
  Quase todos os conceitos jurídicos contêm algum grau de indeterminação, de tal sorte que PHILLIP HECK sublinhou que os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito.
  A utilização pelo legislador de conceitos indeterminados constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários, como para «permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, ou para facultar uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, ou para permitir levar em conta os usos do tráfico, ou, enfim, para permitir uma “individualização” da solução».
  ROGÉRIO SOARES acentua que o legislador utiliza prodigamente os conceitos indeterminados perante as complexidades da sociedade moderna.
  Pois bem, a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação da lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
  Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma – e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente.
  Por isso, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA referiu que «a discricionariedade começa onde acaba a interpretação».
  Deste modo, quando se conclua que a tarefa a efectuar é apenas a de interpretar a lei, o tribunal pode fiscalizar a aplicação do direito feita pela Administração.
  (…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.05.2000, Proc. n.° 9/2000, com vasta doutrina sobre a questão).
  In casu, apresenta-se-nos ser exactamente o que sucede, pois que a consideração no sentido de que o ora recorrente constituía “uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau”, implica uma “decisão administrativa”, mas “judicialmente sindicável”».
  No âmbito do mesmo aresto, teve-se também oportunidade de considerar que «Como salienta Pedro J. Lopes Clemente: “a ordem pública representa o ponto de equilíbrio entre a desordem suportável e a ordem indispensável, pois que a liberdade não sobrevive na anarquia …”, (in “Da Polícia de Ordem Pública”, Lisboa, Governo Civil do Distrito de Lisboa, 1998), sendo de se ter em consideração dois princípios fundamentais intrinsecamente ligados à matéria da “ordem pública”: o da “legalidade” e o da “proporcionalidade” (ou, “proibição do excesso”), necessário sendo um permanente e são equilíbrio entre as “razões” e os “meios utilizados” e os “resultados” que se pretendem obter, não se podendo olvidar igualmente que o tema da “ordem pública” tem vindo a desempenhar um papel cada vez mais relevante, exigindo uma redobrada atenção (e responsabilidade) na sua abordagem por parte do Legislador, da Administração, dos Órgãos Judiciários e da própria Opinião Pública.
Da mesma forma, (e relacionada com a questão), mostra-se de reconhecer que, como o salienta G. Marques da Silva, a questão da “prevenção criminal” é de sobeja importância, podendo-se considerar que até suplanta a ideia de punir os que prevaricam: “o que importa à colectividade, (…), não é tanto punir os que transgridem, mas evitar, pelo adequado uso dos meios legais de dissuasão, que transgridam”; (in “A Polícia e o Direito Penal”, 1993)».
  Nenhum motivo se nos afigurando existir para não se ter por adequado o que se deixou exposto, apresenta-se-nos absolutamente claro que o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância fez uma correcta apreciação da “matéria de facto” (aí) dada como “provada”, tendo efectuado, igualmente, a um acertado “enquadramento jurídico”.
  Com efeito, encontrando-se – no momento – o ora recorrente “acusado da prática de 3 crimes de emprego ilegal”, nenhuma razão existia para se censurar a decisão administrativa proferida (e então recorrida) que considerou verificada a situação da já referida “alínea 3, do n.° 1 do art. 11° da Lei n.° 6/2004” para efeitos da revogação da sua autorização de permanência na R.A.E.M.».
  Por outro lado, tal como também resulta de todo o processo em momento algum a Recorrente põe em causa a prática dos factos que lhe são imputados, o que nada obstava que o fizesse, demonstrando a sua inocência.
  Destarte, a exigência de uma decisão penal condenatória ou, até de acusação, não é requisito fundamental para que se possa concluir no sentido de estar verificado o “perigo para a segurança e ordem pública”, desde que, o juízo da administração assente em factos, que não tendo sido contrariados, permitam concluir que a conduta do sujeito em causa constitui um perigo para a segurança ou ordem pública, por exemplo se esses factos forem enquadráveis em situações que sejam susceptíveis de vir a preencher algum tipo legal de crime, como é o caso dos autos.
  Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, tendo sido apurado que a agora Recorrente juntamente com o seu marido prestou falsas declarações no sentido de fazer crer que determinado indivíduo para si trabalhava quando sabia que tais declarações não correspondiam à verdade recebendo em contrapartida benefício económico para permitir que aquele obtivesse autorização de permanência em Macau, o que, não sendo legalmente admissível constitui matéria criminal, constando tal facto do acto recorrido e tendo sido com base no mesmo que se concluiu que o comportamento da ora Recorrente era gerador de potencial perigo para a segurança ou ordem pública da RAEM, impõe-se concluir que o acto administrativo objecto deste recurso não enferma de vício de violação de lei, seja por erro nos pressupostos de facto, seja por errada aplicação do direito.
  Da violação do princípio da presunção de inocência.
  
  Mais entende a Recorrente que o acto administrativo em causa ofende o princípio de presunção de inocência.
  Remete-se para o que o Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu Douto Parecer refere a respeito do princípio da presunção de inocência.
  Este princípio apenas implica que até que seja condenado não podem recair sobre o “suspeito” quaisquer efeitos decorrentes da prática dos factos criminalmente puníveis que lhe são imputados.
  No entanto, não invalida que noutra sede, que não a criminal, se possa fazer a prova dos mesmos factos para os efeitos que daí sejam decorrentes.
  Mais uma vez, volta à colação que não se exige que aquele a quem é revogada a autorização haja sido “condenado” por crime algum, sendo bastante que se faça a prova de lhe serem imputados factos que eventualmente possam levar a uma condenação, ainda que por outras razões aquela possa até nunca acontecer.
  No que concerne à Recorrente, em sede de juízo criminal continua a beneficiar da alegada presunção, porém, aqui, onde os factos que lhe são imputados nem sequer são contraditados, face aos elementos existentes nos autos, convenceu-se a administração e este tribunal pela prática dos mesmos.
  Pelo que, não enferma o acto impugnado do vício de violação de lei por violação daquele princípio.
  
  Da violação do princípio da proporcionalidade.
  
  Mais entende a Recorrente que o acto administrativo em causa ofende o princípio da proporcionalidade.
  Dispõe o artº 5º do Código do Procedimento Administrativo que:
Artigo 5.º
(Princípio da igualdade e da proporcionalidade)
  1. Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever nenhum administrado em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
  2. As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.
  O poder de revogar a autorização de residência é um poder discricionário a cargo da Administração.
  Actualmente é pacífico o entendimento de que mesmo no exercício de poderes discricionários pode haver vício de violação do princípio de igualdade e proporcionalidade quando se ofenderem «os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais: o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa-fé, etc.» – Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit a pág. 352.
  Para Vitalino Canas o princípio da proporcionalidade é um «princípio geral de direito, constitucionalmente consagrado, conformador dos actos do poder público e, em certa medida, de entidades privadas, de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjectivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para atingir os fins legítimos e concretos que cada um daqueles actos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins”1».
  Tem vindo a ser entendimento deste Tribunal e do TUI que «a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.» - Acórdão do TUI de 31.07.2012, Procº nº 38/2012, entre outros.
  A este respeito alega-se que a revogação da autorização de residência viola o princípio da proporcionalidade porque os factos que lhe são imputados ainda estão em fase de inquérito e embora noutra sede, porque implica que não possa estar permanentemente em Macau com a sua família prestando-lhe o auxílio e apoio necessário.
  O princípio da proporcionalidade haverá de ser aferido em função do objectivo preconizado pela norma em causa, isto é, dos bens e interesses que se pretendem proteger ou alcançar em função da norma.
  Ora, os efeitos que se invocam por lhe ser revogada a autorização de residência não cabem no campo de protecção da norma em causa nem de outra que se sobreponha aos interesses que se pretendem garantir ao fazer depender a autorização de residência do cumprimento das regras de segurança e de ordem pública que enfermam o sistema jurídico da RAEM.
  Destarte, sendo o princípio da proporcionalidade também entendido como a proibição do excesso, cabendo a decisão de revogação de autorização de residência à Administração no âmbito de poderes discricionários, estando em causa a segurança e ordem pública, não resulta que a decisão em causa tenha violado de modo intolerável os interesses do interessado.
  
  Da violação da Lei de Bases da Política Familiar.
  
  Relativamente a esta matéria igualmente se remete para o que consta do Douto parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público.
  A Lei de Bases da Política Familiar visa promover e concretizar a protecção das famílias residentes em Macau, contudo, para a ela recorrer e dela poder beneficiar necessário se torna que previamente a família ou algum dos elementos do respectivo agregado familiar esteja autorizado a residir em Macau.
  A protecção da família sendo do interesse público não se sobrepõe à protecção e defesa de outros interesses também eles relevantes para a ordem pública, tendo todos eles de coexistir.
  Ora, a protecção da família poderá justificar a atribuição da autorização de residência para reunião familiar, mas, não afasta que se verifiquem simultaneamente os demais pressupostos para o efeito, pelo que, nas situações em que tal situação não ocorra, não é bastante para a atribuição da respectiva autorização em violação dos demais requisitos para o efeito.
  
  Assim sendo, impõe-se concluir que o acto recorrido não enferma dos vícios de violação de lei, violação do princípio da presunção de inocência, violação do princípio da proporcionalidade e violação da Lei de Bases da política Familiar que a Recorrente lhe imputa, devendo em consequência ser negado provimento ao recurso.
  Em sentido idêntico ao destes autos tem este Tribunal vindo a entender, nomeadamente, nos acórdãos proferidos em 20.02.2019, Procº nº 389/2019, em 21.11.2019, Procº nº 11/2019 e em 16.07.2020, Procº nº 868/2019, assim como pelo Venerando Tribunal de Última Instância no Acórdão citado supra de 24 de Fevereiro deste ano.
  
IV. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo da Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC´s – artº 89º nº 1 do RCT -.
  
  Registe e Notifique.
  RAEM, 15 de Abril de 2021
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro Mai Man Ieng
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Lai Kin Hong
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Fong Man Chong
1 Em O princípio da proporcionalidade Uma Nova Abordagem em Tempos de Pluralismo, de Laura Nunes Vicente, pág. 23, Publicação de Instituto Jurídico, Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra.
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673/2020 REC CONT 33