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Processo nº 49/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 15 de Abril de 2021

ASSUNTO:
- Nulidade processual
- Princípio da livre apreciação das provas

SUMÁRIO:
- A eventual admissão/atendimento de um articulado apresentado fora do prazo constitui simplesmente uma nulidade processual prevista no nº 1 artº 147º do CPCM, nos termos do qual a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, constituem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
- Acreditar ou não o que a testemunha diz, traduz-se numa actividade da livre apreciação das provas do Tribunal, legalmente prevista no nº 1 do artº 558º do CPCM, bem como no artº 390º do CCM.
O Relator,

Ho Wai Neng


Processo nº 49/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 15 de Abril de 2021
Recorrente: A (Autora)
Recorridos: B, C e D (Habilitados da XXX)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença de 24/06/2020, julgou-se improcedente o pedido formulado pela Autora A.
Dessa decisão vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença de 24.06.2020, que julgou improcedente o pedido formulado pela autora de ser declarada única e legítima proprietária do prédio sito em Macau, na Rua do ......, nº ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ***5, por o ter adquirido por usucapião;
2. Visando arguir a nulidade da sentença por o Tribunal "a quo" não ter conhecido, como devia, da extemporaneidade da contestação apresentada pelos Réus, conhecendo de questões da matéria nela vertida e de que não podia ter conhecido;
3. E ainda questionar a não consideração, pelo Colectivo de Juízes do Tribunal "a quo" dos depoimentos de 3 das testemunhas da Autora, com o fundamento de que são filho, nora e neto da mesma, e como tal terem um notório interesse no sucesso da causa.
4. Ora, de acordo com o disposto no artigo 571º, nº 1, alínea d) do CPC, "É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento".
5. Porém, o Tribunal "a quo" para a decisão de que ora se recorre conheceu da matéria da contestação dos Réus e não se pronunciou, como devia, pela extemporaneidade da mesma, já que o prazo para a sua apresentação havia expirado em 21/05/2018, apesar do mandatário dos Réus ter renunciado ao mandato no decurso do prazo para contestar.
6. Pois que, não decorre do artigo 81º do CPC, que a apresentação do requerimento de renúncia, tenha como efeito a suspensão ou interrupção do prazo que esteja em curso.
7. O prazo para contestar que se encontrava em curso, continuou a correr, recaindo sobre o mandatário renunciante assegurar a defesa dos seus mandantes, até ao termo do prazo de 20 dias que o artigo 81º nº 3 do CPC lhes confere para constituírem novo mandatário.
8. É este, aliás, o entendimento dominante que vem sendo seguido na jurisprudência portuguesa, que aqui se invoca, designadamente do STJ, no acórdão de 11.05.1994, in BMJ 437, pago 452, do Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 03.07.2002, Processo nº 1439/2002, o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 03.03.1993, Processo nº 9230670, do Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 22.02.2018, Processo nº 1016/14.5YYLSB-A.L1-8, todos disponíveis em www.dgsi.pt. e ainda do Tribunal Constitucional Português, no acordão de 12.05.2010, Processo ACTC nº 188/2010, disponível em www.pgdlisboa.pt. assim como do Conselho Superior da Ordem dos Advogados de Portugal, no Parecer elaborado pelo Relator Fernando Cabrita, de 15.07.2005, disponível em https:// portal.oa.pt / advogados / pareceres-da-ordem / conselho-superior /2005 / parecer-10/.
9. Assim, tendo os Réus sido citados em 19.04.2018, e não obstante ter sido apresentada renúncia ao mandato pelo mandatário dos Réus, a contestação devia ter sido apresentada até 21 de Maio de 2018 e, eventualmente nos 3 dias úteis seguintes mediante o pagamento da multa a que alude o artigo 95º nº 4 do CPC.
10. No entanto, os Réus C e D, apenas apresentaram a sua contestação, já através de novo mandatário, no dia 12 de Junho de 2018,
11. Já manifestamente fora de prazo.
12. É que, de acordo com o artigo 95º nº 3 do CPC "O decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto, salvo nos casos de justo impedimento, nos termos regulados no artigo seguinte";
13. E não tendo sido apresentada a contestação dentro do prazo de 30 dias após a citação, o direito de praticar o acto extinguiu-se;
14. A secretaria devia ter apresentado os autos ao Juiz titular do processo, com informação da extemporaneidade da contestação, como impõe o artigo 115º nº 2 do CPC, para que este ordenasse o seu desentranhamento e devolução aos Réus contestantes;
15. Dos artigos 95º nº 3 e 115º nº 2 do CPC, resulta que o Juiz deve conhecer oficiosamente da extemporaneidade do acto que esteja sujeito a prazo peremptório.
16. E não tendo a secretaria dado cumprimento ao disposto no artigo 115º nº 2 do CPC, devia, mesmo assim, o Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo", aquando da prolação do despacho saneador a que alude o artigo 427º do CPC, ter conhecido da extemporaneidade da contestação e ordenar o desentranhamento da mesma.
17. O que não podia fazer era levar à base instrutória factos alegados pelos Réus na contestação, como foi o caso dos quesitos 19, 20, 21 e 22.
18. Não tendo sido conhecida esta nulidade (da extemporaneidade da contestação) no despacho saneador, podia, ainda assim, ser a mesma conhecida aquando do julgamento da matéria de facto e mesmo até aquando da prolação da sentença.
19. Pois, trata-se de uma verdadeira nulidade, e de conhecimento oficioso, apesar de não estar expressamente prevista no Código de Processo Civil;
20. É este o entendimento que vem sendo seguido na jurisprudência e doutrina portuguesas, que aqui se invoca a título comparado, designadamente o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.03.2009, Processo 3835/08-2, disponível em www.dgsi.pt. que citando Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declarativo, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, págs. 115-119 decidiu "que o regime das nulidades não está concentrado integralmente nos artigos 193º e seguintes do CPC (139º e ss do CPC de Macau), havendo que atender a outras disposições, não só derrogatórias, como também integradoras do regime aí estabelecido, como sucede com o art. 145º nº 3 (95º do CPC de Macau), em que se estabelece que o decurso do prazo peremptório faz extinguir o direito de praticar o acto...".
21. E que "A tese de que o decurso de prazo peremptório configura nulidade secundária, dependente de reclamação das partes, levando à validação do acto desde que não exista essa reclamação, não é de aceitar, pois contraria a ordem do processo e todo o sistema de preclusões".
22. Diz-se ainda no mesmo acórdão, citando A. de Castro, que "o facto de a validade de um acto praticado fora de prazo estar na dependência da contraparte equivale, de certo modo, à possibilidade de prorrogação do prazo independentemente da lei. O legislador assistiria então inerte à manipulação dos prazos, pelo simples motivo de serem do interesse exclusivo das partes - isto num regime em que (...), o estabelecimento dos prazos é tarefa exclusivamente publicistica...".
23. E, citando ainda Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código do Processo Civil anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 348, refere-se ainda no mesmo acórdão" que estaremos perante uma nulidade sui generis e que a configuração do caso como de nulidade abrangida pelo art 201º levaria a deixá-la dependente da arguição da contraparte, «o que briga notoriamente com o regime legal»".
24. Encontram-se, pois, violados os artigos 81º, 95º, nº 3 e 115º, nº 2, todos do CPC, o que importa que a sentença do tribunal "a quo" esteja ferida da nulidade a que alude o artigo 571º, nº 1, alínea d) do CPC.
Sem conceder, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que
25. Para a decisão da matéria de facto dada como provada e não provada no acordão de 24/06/2020 o Colectivo de Juízes do Tribunal "a quo" não considerou os depoimentos prestados pelas testemunhas F (F), G (G) e H, apenas por os mesmos serem, respectivamente, filho, nora e neto da Autora, e, como tal, serem interessados directos no sucesso da causa,
26. e não por eventual falta de consistência nos depoimentos, ou porque a credibilidade dos seus depoimentos tivesse sido abalada pelo depoimento de outras testemunhas com maior credibilidade.
27. O que viola as disposições sobre "capacidade para ser testemunha", sobre "impedimentos" e sobre "recusa e escusa a depor", previstas nos artigos 517º, 518º e 519º do CPC.
28. Pois, de acordo com o artigo 517º do CPC "tem capacidade para ser testemunha qualquer pessoa que não esteja interdita por anomalia psíquica" e "incumbe ao juiz verificar a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da credibilidade do respectivo testemunho".
29. Por outro lado dispõe o artigo 518º do CPC que "estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes".
30. Podem ainda, de acordo com o artigo 519º do CPC, recusar-se a depor os ascendentes nas causas dos descendentes, e vice-versa e o sogro ou sogra nas causas do genro ou da nora, e vice-versa.
31. Não existia, pois, nenhuma incapacidade para ser testemunha nem nenhum impedimento legal a que o filho, a nora e o neto da Autora, prestassem o seu depoimento, nem que os mesmos fossem tidos em conta para a convicção do Tribunal "a quo" na decisão da matéria de facto.
32. Nem nenhuma falta de aptidão física ou mental foi verificada pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo" que pudesse abalar a credibilidade dos depoimentos.
33. Aliás, todas as testemunhas, foram identificadas e perguntadas se tinham, com as partes, alguma relação de parentesco, afinidade, amizade ou dependência, ou qualquer interesse na causa, não tendo o Colectivo de Juízes do Tribunal "a quo", perante as respostas dadas, verificado qualquer incapacidade ou impedimento das mesmas para depor, como previsto no artigo 536º do CPC;
34. Foi-lhes ainda feita a advertência prevista no artigo 484º nº 1 do CPC, em que o Colectivo do Tribunal "a quo" lhes fez sentir a importância moral do juramento e o dever de serem fieis à verdade, com a advertência das sanções aplicáveis ás falsas declarações.
35. E, perante a inexistência de qualquer obstáculo a que depusessem, prestaram, então, o legal juramento de dizer a verdade e só a verdade, como previsto no artigo 484º do CPC;
36. Em lado nenhum da fundamentação da matéria de facto dada como provada se afirma que os depoimentos das testemunhas (filho, nora e neto da Autora) foram pouco consistentes ou titubeantes, com hesitações, por exemplo.
37. Nem a credibilidade dos depoimentos das testemunhas (filho, nora e neto da Autora) foi abalada por recurso ao mecanismo da contradita previsto no artigo 543º e 544º do CPC.
38. Ou seja, as testemunhas prestaram o seu depoimento, foram inquiridas a instâncias dos mandatários dos Réus, tendo todos os depoimentos sido ouvidos pelo Colectivo de Juízes e registados em áudio; e
39. O Colectivo de Juízes do tribunal "a quo", para a decisão da matéria de facto, apenas não considerou os seus depoimentos por os mesmos serem familiares próximos da Autora, como se essa circunstância de parentesco fosse um impedimento para depor como testemunha.
40. O CPC permite que os familiares próximos possam ser testemunhas, embora com a possibilidade de se recusarem a depor, precisamente para que, nenhuma das partes num processo, por falta ou recusa daqueles que tiveram conhecimento dos factos, possa ficar impedida de provar desses factos que lhe conferem algum direito ou direitos.
41. Pelo que, entende a Autora que o Colectivo de Juízes do tribunal "a quo", ao equiparar a relação familiar existente entre as testemunhas (filho, nora e neto) e a Autora, a um verdadeiro impedimento, que não existia, violou o disposto nos artigos 517º a 519º do CPC.
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Os Réus C e D (Habilitados da XXX) responderam à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 237 a 246 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- A propriedade do prédio situado em Macau, na Rua do ...... n.º ..., descrito sob o n.º ***5 na Conservatória do Registo Predial encontra-se inscrita em nome de XXX. (已確之事實A)項)
- A Autora começou a habitar no prédio referido em A) dos factos assentes em data não apurada mas necessariamente antes de 1974. (調查基礎內容第1條)
- A Autora habitava o prédio contra o pagamento de um montante mensal a título da renda. (調查基礎內容第2條)
- Uma senhora chamada ## chegou a comparecer no prédio para receber a renda mensal paga pela Autora. (調查基礎內容第6條)
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III – Fundamentação
1. Da invocada nulidade da sentença:
Para a Autora, a sentença é nula por excesso da pronúncia por ter conhecido matéria alegada na contestação apresentada fora do prazo dos habilitados C e D.
Quid iuris?
Antes de mais, é de realçar que a questão da intempestividade da apresentação da contestação foi suscitada, pela primeira vez, em sede do presente recurso jurisdicional.
Salvo o devido respeito, não achamos que o conhecimento da matéria versada na contestação alegadamente apresentada fora do prazo, constitui uma nulidade da sentença por excesso da pronúncia, já que esta nulidade consiste no Tribunal ter apreciado uma questão que não foi suscitada pelas partes nem de conhecimento oficioso, o que se difere a situação de que conheceu a matéria alegada na contestação, só que esta foi apresentada fora do prazo.
A eventual admissão/atendimento de um articulado apresentado fora do prazo, a nosso ver, constitui simplesmente uma nulidade processual prevista no nº 1 artº 147º do CPCM, nos termos do qual a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, constituem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Sendo uma nulidade processual não de conhecimento oficioso, a sua arguição da nulidade tem de ser feita ao abrigo do artº 151º do CPCM perante o Tribunal a quo, a saber:
Artigo 151.º
(Regra geral sobre o prazo da arguição da nulidade)
1. Quanto às nulidades não previstas no artigo anterior, se a parte estiver presente ou representada por mandatário no momento em que forem cometidas, só podem ser arguidas enquanto o acto não terminar; caso contrário, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
2. Arguida ou notada a irregularidade durante a prática de acto a que o juiz presida, deve este tomar as providências necessárias para que a lei seja cumprida.
3. Se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo marcado neste artigo, pode a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.
No caso em apreço, a Autora foi notificada da apresentação da contestação por carta registada datada de 28/06/2018 (fls. 119 dos autos) e só em sede do presente recurso jurisdicional é suscitou tal nulidade processual (que a qualificou como “nulidade da sentença”), o que é manifestamente intempestiva e com meio de impugnação inadequado.
Pelo exposto, é de julgar improcedente este argumento de recurso.
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2. Da não valoração dos depoimentos das testemunhas familiares da Autora:
Na óptica da Autora, o Tribunal a quo ao não dar valor aos depoimentos das suas testemunhas familiares, por serem filho, nora e neto da Autora, violou as disposições legais sobre “capacidade para ser testemunha”, “impedimentos” e “recusa e escusa a depor” (cfr. artºs 517º a 519º do CPCM.
Adiantamos desde já que não lhe assiste mínima razão.
Em primeiro lugar, as testemunhas em causa não foram impedidas ou recusadas de depor. Também não foram questionadas as suas capacidades para serem testemunha.
O que está em causa é simplesmente a força probatória dos depoimentos das mesmas, que é apreciada livremente pelo Tribunal.
Ou seja, acreditar ou não o que a testemunha diz, traduz-se numa actividade da livre apreciação das provas do Tribunal, legalmente prevista no nº 1 do artº 558º do CPCM, bem como no artº 390º do CCM.
Por outro lado, é de notar que a Recorrente nem indicou os pontos concretos da decisão da matéria de facto que foram afectados pela não valoração dos depoimentos das testemunhas em causa, o que significa que estamos perante uma imputação inócua, que não tem qualquer efeito útil.
Face ao expendido, o recurso não deixará de se julgar improvido nesta parte.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pela Autora.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 15 de Abril de 2021.

(Relator)
Ho Wai Neng

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong

(Segundo Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro





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