Processo nº 757/2020
Data do Acórdão: 22ABR2021
Assuntos:
Autorização de residência
Antecedentes criminais
SUMÁRIO
1. O simples facto de o requerente ser titular do salvo-conduto para se deslocar a Hong Kong ou Macau a fim de ali fixar residência, emitido pelas autoridades competentes do Interior da China não priva ou isenta os serviços competentes da RAEM do seu poder-dever de examinar os pressupostos legalmente previstos na lei da RAEM na matéria da concessão de autorização de residência.
2. No procedimento administrativo desencadeado pelo pedido de autorização de residência, a reabilitação do requerente, judicial ou ope legis pelo simples decurso de tempo, não impede a Administração de valorar, para o efeito da decisão quanto ao pedido de autorização de residência, os seus antecedentes criminais, de acordo com o disposto no artº 9º/2-1) da Lei n.º4/2003, uma vez que a decisão sobre o pedido, qualquer que seja o sentido, não reveste a natureza da consequência jurídica das infracções criminais anteriores nem representa a perseguição do requerente pelos seus antecedentes criminais.
3. Dado o seu carácter meramente programático dos normativos, não desenvolvidos ou regulamentados na lei ordinária da RAEM, o artº 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que reconhece universalmente o direito à reunião familiar, não pode ter a virtualidade de impedir a Administração da RAEM de exercer as suas competências discricionárias legalmente conferidas pela Lei nº 4/2003, na matéria da fixação da residência, com vista à boa prossecução dos interesses públicos de segurança interna da RAEM.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 757/2020
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer da decisão do Senhor Secretário para a Segurança que, lhe recusou a autorização de residência, concluindo e pedindo:
a) Recorre-se do Despacho de Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 23 de Junho de 2020;
b) Estão reunidos os pressupostos processuais;
c) O Despacho recorrido indeferiu aquela “fixação de residência” na R.A.E.M., alegadamente porque o recorrente tem antecedentes criminais na R.P.C., havendo, por isso, um razoável prognóstico de que o recorrente não observará as leis vigentes na R.A.E.M.;
d) O Despacho recorrido é aquele que, por isso, nega “autorização de residência” ao recorrente na R.A.E.M. que é, com o devido respeito, por um lado, uma violação das políticas fundamentais de migração estabelecidas entre a R.A.E.M. e a R.P.C., com vista a manter em Macau uma desejável estabilidade social;
e) Por outro lado, viola a Lei Básica da R.A.E.M.; e a “lei de princípios” de autorização de residência na R.A.E.M., onde claramente se estabelece que os cidadãos chineses têm um regime diferente dos demais cidadãos - cfr. art.° 10°, n° 3 da Lei n° 4/2003 - ;
f) Macau é parte integrante da R.P.C. e, não obstante uma Região Administrativa Especial, tem uma política de “imigração” de cidadãos chineses que obedece a critérios rígidos estabelecidos na R.P.C..
g) Dito por outras e mais directas palavras, só são autorizados a fixar residência na R.A.E.M., os cidadãos chineses que as autoridades da R.P.C. decidem, como tal sendo elegíveis.
h) Tendo as autoridades da R.P.C., forçosamente em contactos com as autoridades da R.A.E.M., tendo em conta aquela política conjunta de migração - a que se alude no art.° 22° da Lei Básica da R.A.E.M. - emitido ao recorrente o “salvo conduto de uma só viagem” (前往港澳通行証), que é o culminar do processo de autorização de residência na R.A.E.M..
i) É ilegal o Despacho recorrido porque, ponderados os aspectos pessoais do recorrente, conducentes àquela “autorização de residência”, valorou os "antecedentes criminais" do recorrente, em detrimento dos seus “laços familiares ... com residentes da R.A.E.M.”.
Na verdade,
j) O cumprimento de uma pena de prisão constitui a “reabilitação legal” de um indivíduo, uma vez que faz cessar toda e qualquer incapacidade que, durante o cumprimento da mesma, recai sobre esse mesmo indivíduo;
k) O que, a acontecer, como no caso “subjudice”, constitui clara violação do disposto no art.° 9° do citado Lei n° 4/2003.
Ao que acresce,
l) Violação do art.º 38º do Lei Básica da RA.E.M., porquanto “... os idosos gozam do amparo e protecção da Região Administrativa Especial de Macau”;
m) E do art.° 10° do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que reconhece que “uma protecção e uma assistência mais amplas possíveis serão proporcionadas à familia, que é o núcleo elementar natural e fundamental da sociedade”.
n) Além do que existem factos que não são despiciendos na análise do presente processo, como são o facto do recorrente (i) se lhe for concedida a residência na R.A.E.M. como espera, vir a ser detentor de um documento de “residência não permanente” - o que permitirá às autoridades da R.A.E.M. apreciar o futuro comportamento social do interessado em Macau -; e ainda, o facto do recorrente (ii), ter declarado, “... sob compromisso de honra, de que ... observará as leis da R.A.E.M.”
o) O recorrente preenche os requisitos e tem motivos legítimos para que lhe seja concedida “autorização de residência”, devendo, por isso, o Despacho recorrido ser revogado, com as legais consequências.
Assim se fazendo JUSTIÇA.
Citado, veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do acto recorrido.
Não houve lugar à produção de provas.
Tanto o recorrente e como a entidade recorrida não apresentaram alegações facultativas.
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pela improcedência do presente recurso.
Dos elementos constantes dos autos, é tida por assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* O recorrente A é cidadão chinês residente no Interior da China, a quem foi emitido o salvo-conduto para a ida a Hong Kong ou a Macau pelas autoridades competentes da Província de Guangdong;
* Pelos factos ocorridos em 1994 no Interior da China e pela sentença penal proferida em 30JUL1997, no Tribunal competente do Interior da China, o ora recorrente foi condenado, pela prática de um crime de extorsão, na pena de dois anos de prisão;
* Pelos factos ocorridos em 2001 no Interior da China, que causaram a morte de um indivíduo ofendido, e pela sentença penal proferida em 16NOV2008, no Tribunal competente do Interior da China, o ora recorrente foi condenado, pela prática, em co-autoria moral de instigador, de um crime de ofensas corporais, na pena de 15 anos de prisão e na inibição do exercício dos direitos políticos por 5 anos.
* Mediante o requerimento que deu entrada nos serviços do CPSP em 04MAR2020, instruído com o acima referido salvo-conduto, formulou o pedido de autorização de residência por motivo de reunião familiar, ao abrigo do disposto nos artºs 9º e s.s da Lei nº 4/2003;
* Em sede do procedimento administrativo desencadeado pelo requerimento, o Senhor Secretário para a Segurança, por despacho de 23JUN2020, exarado sobre a informação nº 200105/SRDARPA/2020P (ambos ora constantes dos autos do procedimento administrativo e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), elaborada pelo pessoal do CPSP, indeferiu-lhe o pedido de autorização de residência, com fundamento nos seus antecedentes criminais; e
* Inconformado com esse despacho, o recorrente interpôs o recurso contencioso para o TSI;
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexiste nulidades.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Inexistem excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com o preconizado nas conclusões na petição do recurso, o recorrente imputou ao acto recorrido a violação da Lei Básica da RAEM, do artº 9º da Lei nº 4/2003, do artº 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, a não ponderação dos comportamentos futuros do recorrente, caso venha a ser-lhe concedida a autorização e a declaração sob compromisso de honra de que observará as leis da RAEM.
Estas questões tidas por efectivamente colocadas pelo recorrente com motivação foram analisadas no Douto parecer emitido pelo Ministério Público em sede de vista final, que é o seguinte:
Na petição inicial, o recorrente pediu ser “revogado” o despacho em causa que reza: 同意上述報告書所載意見,利害關係人存有刑事犯罪前科,且罪行嚴重,表明並非守法之人,令行政當局對其今後遵守法律缺乏信任,基於公共安全的考量, 決定按建議不批准其所提出的居留申請。(vide. fls.13 dos autos)
Repare-se que na contestação, a entidade recorrida não suscitou ne-nhuma excepção, nem arguiu a ilegalidade do pedido, ilegalidade que se traduz em o pedido consubstanciada na “revogação” do despacho recorri-do ofender frontalmente o disposto no art.20.º do CPAC.
Sendo assim e de acordo com os princípios da tutela jurisdicional efectiva, do pro actione bem como da economia processual, vamos consi-derar como lapso desculpável a supramencionada ilegalidade e apreciar as questões de fundo do recurso contencioso em apreço.
*
Sustentando o seu pedido, o recorrente arrogou que o despacho em questão contrariara as políticas fundamentais de migração estabelecidas entre a RAEM e a RPC, o regime consagrado no n.º3 do art.10.º da Lei n.º4/2003 e o art.22.º da Lei Básica da RAEM. Quid juris?
Ora, nos termos da última parte do n.º4 do art.22.º da Lei Básica da RAEM, o número dos cidadãos chineses que sejam residentes da China Continental e entrem na RAEM com o intuito de aí se estabelecerem é fi-xado pelas autoridades competentes do Governo Central, após consulta ao Governo da Região. Trata-se, sem dúvida, dum preceito imperativo.
Este comando legal dotado do valor constitucional no ordenamento jurídico da RAEM torna inquestionável que o número total anualmente fixado pelas autoridades competentes do Governo Central vincula o órgão competente da RAEM, este tem de obedecer ao referido número.
Qual é eficácia de cada salvo conduto de uma só viagem (前往港澳單程證)? Mais concretamente dito, o salvo conduto de uma só viagem cujo titular é o recorrente vincula ou não o órgão competente da RAEM? A resposta exige que se tenha em conta os seguintes três aspectos:
- Ao abrigo do disposto nos arts.2.º e 12.º da Lei Básica, a RAEM como região administrativa local da RPC exerce um alto grau de autono-mia, goza de poderes executivo, legislativo e judicial independente, e fica directamente subordinada ao Governo Popular Central.
- O n.º1 do art.22.º da Lei Básica determina imperativa e inequivo-camente: Nenhuma repartição do Governo Popular Central, província, re-gião autónoma ou cidade directamente subordinada ao Governo Popular Central pode interferir nos assuntos que a Região Administrativa Especial de Macau Administra, por si própria, nos termos desta Lei.
- Submetida ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacio-nal para registo de acordo com determinação no n.º2 do art.17.º da Lei Básica, a Lei n.º4/2003 nunca vê devolvida. Daí decorre ser plenamente legítimo presumir-se que a Lei n.º4/2003 está em conformidade com as disposições da Lei Básica respeitantes às matérias da competência das Autoridades Centrais ou ao relacionamento entre estas e a Região.
Tudo isto leva-nos a extrair que a decisão administrativa pela qual foi atribuído o salvo conduto de uma só viagem ao recorrente não vincula os órgãos competentes da RAEM, sob pena de infringir flagrantemente o art.12.º e, sobretudo, o n.º1 do art.22.º da Lei Básica. O que equivale a di-zer que os órgãos competentes da RAEM podem indeferir o requerimento de autorização de residência apresentado por quem seja titular de salvo conduto de uma só viagem.
Para além disso, importa assinalar que o art.22.º da Lei Básica de Macau é, sem sombra de dúvida, a essencial reprodução do art.22.º da Lei Básica de Hong Kong, por isso, cremos que é válida para a Lei Básica de Macau a interpretação autêntica dada ao n.º4 do art.22.º da Lei Básica de Hong Kong pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional que afirma peremptoriamente: 各省、自治區、直轄市的人,包括香港永久性居民在內地所生的中國籍子女,不論以何種事由要求進入香港特別行政區,均須依照國家有關法律、行政法規的規定,向其所在地區的有關機關申請辦理批准手續,並須持有有關機關制發的有效證件方能進入香港特別行政區。各省、自治區、直轄市的人,包括香港永久性居民在內地所生的中國籍子女,進入香港特別行政區,如未按國家有關法律、行政法規的規定辦理相應的批准手續,是不合法的。
Também acreditamos que o n.º3 do art.10.º da Lei n.º4/2003 está em plena conformidade com a sobredita interpretação autêntica emanada pelo Supremo Órgão Legislativo, e em boa verdade, o n.º3 tem por base tal interpretação e visa a positivá-la no ordenamento jurídico da RAEM.
Daí flui que, no nosso prisma, o salvo conduto de uma só viagem para os cidadãos chineses residentes da China continental não tem virtude de condição bastante, mas e tão-só condição sine qua non, nesta medida, o n.º3 do art.10.º não constitui excepção ao art.9.º da Lei n.º4/2003.
Chegando aqui, e tendo em conta o antecedente criminal do ora re-corrente, não podemos deixar de concluir que o despacho em escrutínio não contende com as políticas fundamentais de migração estabelecidas entre a RAEM e a RPC, o regime consagrado no n.º3 do art.10.º da Lei n.º4/2003 e o art.22.º da Lei Básica da RAEM.
*
Repare-se que na alínea 1) do n.º2 do art.9º da Lei n.º4/2003, exige o legislador expressamente que se deva atender, para efeitos de concessão da autorização de residência, antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no art.4º desta Lei. O que evidencia seguramente que são mais exigentes os requisitos da autorização de residência. A interpretação gramática conduz a que os três grupos de circunstâncias – antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM, qualquer das referidas no art.4º desta Lei – sejam reciprocamente independentes e também alternativas.
No que concerne ao disposto na alínea 1) do n.º2 do art.9º da Lei n.º4/2003, os doutos TSI e TUI vem constantemente sedimentando que os antecedentes criminais, só por si, constituem fundamento virtuoso para indeferimento de requerimento da autorização da residência. Na nossa óptica, não se descortina qualquer excepção a esta orientação jurispruden-cial que tem como axiologia a ideia de que os tribunais devem respeitar pelos esforços e empenhos da Administração em defender o eminente in-teresse público traduzido na segurança e tranquilidade públicas da RAEM.
Cremos que é mutatis mudantis válida no presente caso a prudente jurisprudência que proclama (vide. Acórdão do TSI no Processo n.º210/2002): O pedido de fixação de residência em Macau formulado por um cidadão de Hong Kong ao abrigo do art.16.° do Decreto-Lei n.°55/95/M,… pode ser indeferido nos termos da alínea a) do art.20.° do mesmo diploma legal, caso ele tenha tido antecedentes criminais nessa Região vizinha.
Adverte a douta jurisprudência que o “direito à família” e à “unida-de familiar” não podem ser interpretados como “direitos absolutos” de quem os invoca como motivo de autorização de residência na RAEM (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º109/2006). Pois, o direito à reunião familiar, embora direito fundamental, fica sujeito ao condicionamento legal que visa a sal-vaguarda de interesses públicos relevantes, tal como ao regime legal de entrada e permanência na RAEM. (vide Acórdão do TUI no Processo n.º56/2010)
De qualquer modo, encontra consolidada a inculca que «在家庭利益和國家安全利益有衝突時,毫無疑問必須以國家利益為優先考慮。在本個案,上訴人主張的家庭團聚和共同生活的利益遠不能凌駕澳門特別行政區內部安全的利益,因此,立法者在4/2003號法律已明示賦予執法的行政當局在考慮非澳門居民申請在澳門居留時必須考慮的因素,當中包括申請人的犯罪前科。既是法律所規定者,實難以理解依法行事的保安司司長如何通過其否決居留申請事能違反《家庭政策綱要法》的規定。» e «雖然上訴人提出的居留許可聲請被否決,但毫無疑問,有關被上訴的行政行為明顯是為了謀求公共利益,尤其為確保公共安全及社會穩定,因此上訴人的個人利益應當給予讓步。» (vide Acórdãos do TSI nos Processos n.º787/2011 e n.º570/2012, no mesmo sentido, veja-se ainda Acórdão do TSI no Processo n.º594/2009)
Em esteira das criteriosas jurisprudências supra aludidas, e atendo no antecedente criminal do recorrente, inclinamos a colher que o despa-cho atacado nestes autos não ofende o art.38º da Lei Básica, nem o art.10º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económico, Social e Cultural.
*
Repare-se que os Venerandos TUI e TSI consolidam a orientação jurisprudencial de que o n.º2 do art.9º da Lei n.º4/2003 confere verdadeiro poder discricionário à Administração, cuja avaliação e valoração de ante-cedentes criminais são judicialmente insindicáveis, salvo se padeçam de erro manifesto ou total desrazoabilidade. (a título exemplificativo, Acórdãos do TUI nos Processos n.º38/2012 e n.º123/2014, do TSI nos n.º766/2011, n.º570/2012 e n.º356/2013)
No vertente caso, o despacho em crise demonstra concludentemente que a Administração visa propositadamente a defender interesses públicos que se traduzem na segurança e ordem públicas da RAEM. Não se divisa, sem mínima dúvida, nenhum desvio do objectivo da Lei n.º4/2003 nem o manifesto erro, a total desrazoabilidade ou a injustiça intolerável.
Nesta linha de perspectiva, e à luz da regra de que prevenir vale mais que remedir, afigura-se-nos que o argumento constante da conclu-são n) da petição é inócuo e insignificante, sem virtualidade de erro nos pressupostos de facto, não podendo invalidar o despacho em causa.
*
Não há margem para dúvida de ser manifestamente distorcido e in-consistente o argumento aduzido na conclusão j) da petição inicial, com efeito, o cumprimento de uma pena nunca constitui ou germina a reabili-tação legal, aquele distingue-se substancialmente desta.
Importa ter presente que a jurisprudência uniforme dos TUI e TSI assevera que a reabilitação, judicial ou ipso iure, não impede a Administração de recusar os pedidos de autorização de residência em Macau com fundamento em antecedentes criminais. O que nos dão a conta os doutos acórdãos do TUI nos processos n.º36/2006, n.º76/2012 e n.º123/2014, do TSI designadamente nos processos n.º305/2005, n.º741/2007, n.º766/2011, n.º394/2012, n.º340/2013 e n.º827/2014.
Nestes termos, temos por certo que não viola nenhum preceito no art.9º da Lei n.º4/2003 o despacho recorrido nestes autos que consiste em indeferir o requerimento da autorização de residência do recorrente, com fundamento de ele ter antecedente criminal de crime grave e, assim, po-der perigar a segurança pública de Macau.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso.
Para nós, as questões efectivamente colocadas com alegações devidamente motivadas já foram correcta e exaustivamente debatidas no Douto parecer do Ministério Público acima integralmente transcrito, com que estamos inteiramente de acordo, não nos resta outra alternativa melhor do que a de aproveitarmos integralmente esse parecer, convertendo-o na fundamentação do presente recurso para julgar improcedente o presente recurso contencioso de anulação.
Não obstante, achamos conveniente acrescentar que o simples facto de ser titular do salvo-conduto para se deslocar a Hong Kong ou Macau a fim de ali fixar residência, emitido pelas autoridades competentes do Interior da China não priva os serviços competentes da RAEM do seu poder-dever de examinar os pressupostos legalmente previstos na lei da RAEM na matéria da concessão de autorização de residência.
Que no procedimento administrativo desencadeado pelo pedido de autorização de residência, a reabilitação, ope legis ou judicial, do requerente, não impede a Administração de valorar os seus antecedentes criminais de acordo com o disposto no artº 9º/2-1) da Lei n.º4/2003, uma vez que a eventual decisão sobre o pedido, qualquer que seja o sentido, não reveste a natureza da consequência jurídica das infracções criminais anteriores nem representa a perseguição do requerente pelos seus antecedentes.
E que em relação à alegada violação do artº 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que tem a seguinte redacção:
Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem que:
1. Deve conceder-se à família, elemento natural e fundamental da sociedade, a mais ampla protecção e assistência possíveis, especialmente para a sua
constituição e enquanto responsável pelos cuidados e a educação dos filhos a seu cargo. O casamento deve contrair-se com o livre consentimento dos futuros
cônjuges;
2. Deve conceder-se especial protecção às mães durante um período de tempo razoável antes e depois do parto. Durante o referido período, às mães que
trabalham deve ser-lhes concedida licença com remuneração ou com prestações adequadas da segurança social;
3. Devem adoptar-se medidas especiais de protecção e assistência a favor de todas as crianças e adolescentes, sem qualquer discriminação por razões de filiação ou qualquer outra condição. Devem proteger-se as crianças e adolescentes contra a exploração económica e social. O emprego em trabalhos nocivos para a sua moral e saúde, ou nos quais corra perigo a sua vida ou o risco de prejudicar o seu desenvolvimento normal, será punido pela lei. Os Estados devem estabelecer também limites de idade abaixo dos quais seja proibido e sujeito a sanções da lei o emprego remunerado de mão-de-obra infantil.
Dado o seu carácter meramente programático dos seus normativos, não desenvolvidos ou regulamentados na lei ordinária da RAEM, o artº 10º do Pacto que reconhece universalmente o direito à reunião familiar, não pode ter a virtualidade de impedir a Administração da RAEM de exercer as suas competências discricionárias legalmente conferidas pela Lei nº 4/2003, na matéria da fixação da residência, com vista à boa prossecução dos interesses públicos de segurança interna da RAEM.
Resumindo e concluindo:
1. O simples facto de o requerente ser titular do salvo-conduto para se deslocar a Hong Kong ou Macau a fim de ali fixar residência, emitido pelas autoridades competentes do Interior da China não priva ou isenta os serviços competentes da RAEM do seu poder-dever de examinar os pressupostos legalmente previstos na lei da RAEM na matéria da concessão de autorização de residência.
2. No procedimento administrativo desencadeado pelo pedido de autorização de residência, a reabilitação do requerente, judicial ou ope legis pelo simples decurso de tempo, não impede a Administração de valorar, para o efeito da decisão quanto ao pedido de autorização de residência, os seus antecedentes criminais, de acordo com o disposto no artº 9º/2-1) da Lei n.º4/2003, uma vez que a decisão sobre o pedido, qualquer que seja o sentido, não reveste a natureza da consequência jurídica das infracções criminais anteriores nem representa a perseguição do requerente pelos seus antecedentes criminais.
3. Dado o seu carácter meramente programático dos normativos, não desenvolvidos ou regulamentados na lei ordinária da RAEM, o artº 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que reconhece universalmente o direito à reunião familiar, não pode ter a virtualidade de impedir a Administração da RAEM de exercer as suas competências discricionárias legalmente conferidas pela Lei nº 4/2003, na matéria da fixação da residência, com vista à boa prossecução dos interesses públicos de segurança interna da RAEM.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 8 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 22ABR2021
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Mai Man Ieng
757/2020-16