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Processo n.º 958/2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Data: 22/Abril/2021

Descritores:
- Renovação da proibição de entrada nos casinos
- Acto materialmente administrativo
- Competência do Tribunal Administrativo

SUMÁRIO
A decisão tomada pela A, S.A., e que se traduz na renovação da proibição de entrada do interessado nos casinos explorados pela mesma, é acto materialmente administrativo, sendo o Tribunal Administrativo o competente para conhecer do recurso contencioso interposto daquela decisão, ao abrigo do artigo 30.º, n.º 2, alínea 1), subalínea (3) da Lei n.º 9/1999.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo n.º 958/2020
(Autos de recurso jurisdicional)

Data: 22/Abril/2021


Recorrente:
- A, S.A.

Objecto do recurso:
- Despacho que julgou improcedente a excepção de incompetência do Tribunal Administrativo

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B, com sinais nos autos (doravante designado por “recorrido” ou “parte contrária”), notificado do despacho praticado pela concessionária de jogos de fortuna ou azar A, S.A. (doravante designada por “recorrente” ou “entidade recorrida”), que determinou a renovação da proibição de entrada daquele nos casinos explorados por esta concessionária, dele não se conformando, recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo (TA).
Citada para contestar, aquela concessionária de jogos de fortuna e azar invocou a excepção de incompetência do Tribunal.
Por decisão do TA, foi julgada improcedente a excepção invocada.
Inconformada, recorreu a entidade recorrida jurisdicionalmente para este TSI, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
     “1. O presente recurso tem por objecto a douta decisão do Tribunal Administrativo que, julgando improcedente a excepção de incompetência suscitada pela Recorrente, julgou-se materialmente competente para julgar o recurso contencioso de anulação interposto pelo Recorrido.
     2. O objecto do recurso contencioso de anulação em questão é uma decisão da Recorrente tomada ao abrigo da “reserva de admissão prevista no artigo 7º da Lei n.º 10/2012”, que o Recorrido e o Tribunal Administrativo consideram ser um “acto administrativo” praticado pela Recorrente, enquanto “concessionária de jogos de fortuna ou azar”, “em 22 de Março de 2019, que determinou a renovação da proibição de entrada do ora Recorrente nos casinos explorados pela Entidade Recorrida, o qual foi comunicado oralmente ao Recorrente no dia 7 de Outubro de 2019 e, posteriormente, por carta datada de 23 de Outubro de 2019” (artigo 1º da petição de recurso).
     3. A Recorrente suscitou a excepção de incompetência material do Tribunal Administrativo por não concordar com o entendimento segundo o qual a decisão da Recorrente que constituiu o objecto do recurso contencioso de anulação interposto pelo Recorrido é um acto administrativo, uma vez que não foi exercido no âmbito de um poder de autoridade.
     4. Os actos praticados pela Recorrente no exercício da empresa comercial dedicada à exploração dos jogos de fortuna e azar são actos de comércio, nos termos do artigo 3º, n.º 1, alínea b) do Código Comercial e da presunção legal estabelecida no n.º 3 do mesmo artigo.
     5. São, portanto, legalmente presumidos como sendo actos comerciais, regulados, no seu procedimento, pelo direito privado.
     6. Os actos de comércio praticados pela Recorrente só passam a ser regulados pelo direito público, nomeadamente no que diz respeito ao procedimento que tenha em vista a sua prática, quando, nos termos do artigo 2º, n.º 2 do CPA, são praticados no “exercício de poderes de autoridade”.
     7. Importa, portanto, determinar se a decisão da Recorrente de limitar o acesso do Recorrido às empresas comerciais de que a Recorrente é proprietária, nos termos da “reserva de admissão prevista no artigo 7º da Lei n.º 10/2012”, constituiu um mero “acto de comércio”, como é presumido pelo artigo 3º, n.º 3 do Código Comercial, ou antes um acto administrativo, por ter sido praticado no exercício de “poderes de autoridade”, nos termos do artigo 2º, n.º 2 do CPA.
     8. A douta decisão recorrida não logrou demonstrar, ressalvando o devido respeito, que a decisão fundamentada da Recorrente de impedir o acesso do Recorrido às empresas comerciais da Recorrente constituiu o exercício de um poder de autoridade.
     9. A reserva do direito de admissão é uma faculdade potestativa fundamental, de natureza jurídico-privada, que todas as pessoas, incluindo as pessoas colectivas como a Recorrente, têm no sentido de condicionar o acesso aos seus domicílios, às suas empresas comerciais e às suas instalações, com as excepções previstas na lei.
     10. O artigo 7º da Lei n.º 10/2012 não atribui, portanto, ex novo, um poder de autoridade às concessionárias para condicionarem o acesso aos casinos.
     11. Pelo contrário, em vez de atribuir um poder de autoridade às concessionárias, essa norma limita-lhes o âmbito do exercício da reserva do direito de admissão, que já lhes assistia de forma universal, com base nos direitos privados de personalidade e de propriedade da empresa comercial.
     12. A decisão sobre a conveniência, ou não, da admissão de um determinado utente, nos termos do artigo 7º da Lei n.º 10/2012, é, portanto, um acto de gestão privada, de natureza privada, e não deverá, portanto, ser impugnada por via administrativa, uma vez que não foi tomada pela Recorrente no exercício de poderes de autoridade.
     13. A decisão de uma concessionária sobre a conveniência ou inconveniência da entrada ou permanência de determinadas pessoas nos casinos é incompatível com um procedimento rígido como o exigido pelo CPA para os procedimentos administrativos.
     14. A intenção do legislador com o reconhecimento da reserva do direito de admissão às concessionárias não foi certamente o de impedir as concessionárias de cabalmente exercerem essa faculdade impondo-lhes um procedimento administrativo que, na prática, as impediria de, quando têm os clientes e jogadores à porta, restringir o seu acesso.
     15. Mas mesmo que subsistam dúvidas sobre a natureza jurídica da decisão da Recorrente de impedir o acesso do Recorrido aos seus casinos, essa dúvida deverá ser resolvida no sentido de qualificar a decisão como sendo destituída de “poder de autoridade” e, logo, insusceptível de impugnação administrativa.
     16. Apesar de o regime previsto na Lei n.º 10/2012, que regula o “condicionamento da entrada, do trabalho e do jogo nos casinos”, conter maioritariamente normas de direito público, não nos parece que o seu artigo 7º estabeleça qualquer poder de autoridade, convertendo as decisões comerciais que as concessionárias tomem ao abrigo desse preceito em actos administrativos.
     17. O Recorrido não ficou impossibilitado, nem impedido, com a decisão da Recorrente, de entrar e permanecer nos casinos das restantes cinco operadoras de jogos de fortuna ou azar, que operam dezenas de outros casinos em Macau, como teria acontecido no caso de uma interdição.
     18. Sendo a decisão da Recorrente de restringir o acesso pelo Recorrido aos casinos da Recorrente uma decisão de direito privado, legalmente presumida como “acto de comércio”, a impugnação da sua validade deveria ter sido efectuada junto do Tribunal Judicial de Base.
     19. Da mesma forma que teria de discutir no Tribunal Judicial de Base o utente que pretendesse impugnar uma decisão de um estabelecimento hoteleiro ou similar de impedir o seu acesso a esses estabelecimentos em violação do artigo 41º do Decreto-Lei n.º 16/96/M, que aprovou o novo regime de actividade hoteleira e similar.
     20. Se a decisão tomada por um estabelecimento hoteleiro ou similar de restrição de entrada a um utente assume natureza jurídico-privada, isto é, destituída de poderes de autoridade, é difícil de conceber que uma decisão semelhante, tomada por uma concessionária de jogos de fortuna ou azar, também proprietária desse tipo de estabelecimentos, assuma natureza administrativa.
     21. A decisão da Recorrente de impedir o acesso do Recorrido aos casinos explorados pela Recorrente esteve sempre despida de qualquer poder de autoridade e a Recorrente, apesar de ser uma sociedade concessionária, actuou “numa posição de paridade com os particulares”, “nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado”.
     22. Não se pode, assim, salvo o devido respeito, elevar a limitação imposta pelo artigo 7º da Lei n.º 10/2012 à faculdade potestativa da Recorrente de controlar a admissão de pessoas a um pretenso poder de autoridade.
     23. Mas, mesmo que se entendesse a decisão da Recorrente como um acto de gestão pública, por ser tomada por uma concessionária, o que não se concede, ainda assim, teria que se atentar que é um acto de gestão pública, mas destituído de autoridade.
     24. Motivo pelo qual, se o Recorrido entende que a decisão da Recorrente no sentido de impedir a entrada do Recorrido nos casinos explorados pela Recorrente exorbita aquilo que poderia ser considerado “conveniente”, por lhe parecer ser uma interdição ou expulsão, ou por considerar a decisão desproporcional ou desadequada, deverá o Recorrido recorrer ao Tribunal Judicial de Base para apreciar essa questão.
     25. Da mesma forma que teria de o fazer, por exemplo, o utente de um estabelecimento hoteleiro ou similar que fosse impedido de entrar ou permanecer num hotel ou num restaurante por razões ou com fundamentos que considerasse inválidos, desproporcionais ou desadequados.
     26. Por todas as razões expostas, deveria o Tribunal a quo ter julgado procedente a excepção de incompetência material, oportunamente suscitada pela Recorrente.
     Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e julgando-se procedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal a quo, assim se fazendo JUSTIÇA!”
*
Ao recurso respondeu o recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Pelo Tribunal Administrativo foi proferida a seguinte sentença:
“Foi o presente recurso contencioso interposto, neste Tribunal, do acto da determinação da renovação da proibição de entrada do Recorrente nos casinos explorados pela Entidade Recorrida.
Na contestação, veio a Entidade Recorrida suscitar a excepção da incompetência do Tribunal, com fundamento na ausência de natureza administrativa do acto recorrido, cuja legalidade, no seu entender, não poderá ser impugnada perante o Tribunal Administrativo, sendo este materialmente incompetente para julgar a causa.
Seguidamente, foi colhido o parecer da digna Delegada do M.º P.º, que entende a actividade em causa como exorbitante do âmbito da autonomia privada empresarial, que se traduz, portanto, no exercício do poder público conferido pela Administração Pública, pugnando-se pela improcedência da excepção.
Cumpre apreciar e decidir.
Desde logo, a competência deste Tribunal encontra-se estatuída no artigo 30.º do LBOJ, nos seguintes termos:
“Artigo 30.º
Tribunal Administrativo
1. O Tribunal Administrativo é competente para dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, fiscais e aduaneiras.
2. No âmbito do contencioso administrativo, e sem prejuízo da competência do Tribunal de Segunda Instância, compete ao Tribunal Administrativo conhecer:
1) Dos recursos dos actos administrativos ou em matéria administrativa praticados pelas seguintes entidades:
(1) Directores de serviços e outros órgãos da administração que não tenham categoria superior à daqueles;
(2) Órgãos dos institutos públicos;
(3) Concessionários;
(4) Órgãos de associações públicas;
(5) Órgãos de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa;
…” (sublinhado nosso).
No caso dos autos, estando em causa um acto praticado no âmbito da actividade desenvolvida pela Entidade concessionária de exploração de jogo, a questão que nos interessa para aferir a competência deste Tribunal Administrativo nesta matéria, é a de saber se a situação daí emergente é enquadrável na relação jurídica administrativa, ou seja, no âmbito da actividade materialmente administrativa desta Entidade concessionária.
Como se bem compreende, seja qual for o seu sujeito, uma actuação é qualificável como administrativa em sentido material quando envolve, em primeira linha, o exercício de poderes públicos de autoridade legalmente habilitados que competem, em princípio, à Administração Pública em sentido restrito ou organizatório.
Por sua vez, as entidades concessionárias, de exploração de jogo, tal como concessionários de outros serviços públicos, não são os órgãos públicos integrados na Administração Pública, mas sim as entidades privadas a quem a Administração, quando não quiser ou não lhe convier, transfere o poder de gerir, por sua conta e risco, os respectivos serviços públicos.
Sendo assim, tal poder de exploração encaixa-se indiscutivelmente na função administrativa dessas entidades privadas, cujo exercício é destinado à satisfação da necessidade colectiva e pública. Daí que, a transferência do exercício desses poderes públicos implica a sujeição das respectivas concessionárias, em certa medida, ao regime do Direito Administrativo, e a subsequente extensão do regime do Código de Procedimento Administrativo a estas entidades investidas de poderes públicos administrativos, conforme se prevê no disposto do artigo 2.º, n.º 2 desse Código.
A despeito disso, como podemos facilmente constatar, estas entidades concessionárias não deixam, pelo facto de ser titulares de concessões, de ser privadas, na medida em que por um lado obedecem a um modelo de estruturação orgânica regulado por normas de direito privado, e por outro lado, por se tratar de entidades privadas, tomam parte em relações jurídicas de Direito privado, actuando no exercício da sua capacidade jurídica de direito privado dentro dos limites decorrentes do princípio de especialidade. Ou seja, no exercício da sua actividade, as Entidade concessionárias têm o âmbito de gestão privada muito mais alargada do que as Entidades públicas.
Importa, por isso, em cada caso concreto, descortinar se a Entidade concessionária ao tempo da prática do acto estava investida no poder público de autoridade, ou se no exercício da sua capacidade jurídica ao abrigo das normas do direito privado. A solução passará, necessariamente, pela identificação da natureza do poder exercício pela Entidade privada concessionária.
Como diz o Professor Pedro Gonçalves, “se nada for expressamente estabelecido na lei ou (com fundamento na lei) no acto público que opera a transferência do exercício da função administrativa ou que cria uma entidade em forma privada só se encontra autorizada a actuar com o instrumentarium ao dispor de um qualquer sujeito com personalidade de direito privado”
Na situação vertente, a ora Entidade recorrida decidiu, em 2 de Maio de 2019, tomar a providência no sentido de prorrogar o prazo da interdição da entrada do Recorrente nos casinos por si explorados por um período adicional de 2 anos, decisão essa foi tomada, alegadamente, com base no disposto do artigo 7.º da Lei n.º 10/2012 (Condicionamento da entrada, do trabalho e do jogo nos casinos), onde se estabelece o seguinte:
“Artigo 7.º
Reserva do direito de admissão
As concessionárias podem impedir a entrada ou determinar a saída dos casinos das pessoas cuja admissão ou permanência considerem inconveniente, sem prejuízo do princípio da não discriminação, nomeadamente por motivos de sexo, raça, etnia, cor, ascendência, nacionalidade, local de residência, língua ou religião.”
À partida, a providência tomada pela ora Entidade concessionária constitui uma estatuição autoritária e unilateral, com a produção dos efeitos ablativos e sancionatórios na esfera jurídica concreta dos particulares.
Como nos parece evidente, uma providência como esta, independentemente de saber se enquadra ou não do âmbito da norma legal acima transcrita, só poderá, pelo seu carácter manifestamente exorbitante (porque implica a aplicação de uma sanção pública aos particulares enquanto administrados), ter fundamento na norma de direito público.
Trata-se, portanto, de um acto administrativo, de acordo com o conceito preceituado no disposto do artigo 110.º do CPA, cuja prática cabe à Entidade administrativa.
Aliás, a transferência do exercício deste poder às Entidades concessionárias privadas não poderá provocar a privatização da natureza jurídica deste. O acto quando surge no exercício privado é tão público como seria se tivesse sido praticado pela qualquer Entidade Administrativa.
Neste sentido “…o princípio segundo o qual qui recipit ad modum recipiendum recipitur aplica-se a tarefas e actividades não autoritárias (v.g., gestão de serviços públicos), as quais são exercidas segundo o direito público ou o direito privado, de acordo com a natureza do autor. Mas já não se aplica a poderes que são públicos, pelo facto de só existirem no âmbito do direito público ou de não poderem deixar de ser regulados enquanto poderes públicos, seja quem for que os exerça.”
Tudo o que ficou dito de per si permite concluir pelo exercício do poder público de autoridade pela Entidade concessionária.
Ainda assim, vejamos se a “delegação legal” na norma do artigo 7.º da Lei n.º 10/2012, ao abrigo da qual a Entidade recorrida alegou ter sido autorizada a restringir a liberdade de acesso e de permanência dos determinados particulares nos seus casinos, conferiu o poder público de autoridade ou o poder nos termos do direito privado.
De acordo com o ensinamento do Professor Pedro Gonçalves, são expressões da situação jurídica activa de uma entidade privada que se revelam susceptíveis de serem qualificadas como exercício do poder público de autoridade: a emissão de normas jurídicas administrativas, a prática de actos jurídicos concretos, a execução coerciva de actos administrativos e o emprego da força e a coacção física.
Temos para nós que, quanto ao exercício do poder de expulsão ou de interdição da entrada nos termos da norma do citado artigo 7.º da Lei n.º 10/2012, situamo-nos no domínio do emprego de força e do exercício de poder jurídico de coacção directa pelas Entidades privadas.
Pergunta-se: será, como entendeu a Entidade recorrida, que o exercício deste tipo de poder é concebível sob égide de direito privado como seu fundamento, quando, por exemplo, o seu autor for impulsionado pelos interesses meramente comerciais particulares? Isso equivale a perguntar se é legítimo a um particular impor unilateralmente uma restrição do direito ao outro, nos termos do direito privado.
Mais uma vez, lendo as observações do Professor Pedro Gonçalves, é-nos possível extrair, resumidamente, as seguintes notas:
- É que, desde logo, não se admite os direitos privados de coacção física pela ordem jurídica, com fundamento no monopólio estadual do emprego da força.
- Mas daí apenas resulta um “princípio de proibição”, não uma exclusão total e absoluta do emprego da força por particulares. Admite-se, em casos excepcionais e com ultima ratio, o emprego de força nas relações inter-privatos, quando a força privada é legalmente autorizada numa lógica de subsidiariedade relativamente ao uso da força pelas autoridades públicas, ou seja, a força privada é admissível quando seja impossível a intervenção da força pública para defender os interesses próprios dos particulares.
- Assim, o legítimo emprego da força nas relações entre particulares encontra expressão em institutos clássicos no direito civil – a acção directa, ou no direito penal, como a legítima defesa.
- Apenas nestes casos, o emprego da força não reveste natureza pública, que é reconhecido como direito privado da qualquer pessoa, e que representa uma base jurídica fundamental da actividade de segurança privada.
Voltemos ao nosso caso concreto.
Como vimos, o emprego da força directa autorizada pela referida norma do artigo 7.º da Lei n.º 10/2012 permite-se com a mera invocação dos motivos de conveniência, o que nos afigura incompatível desde logo com a princípio de proibição e da exigência de “ultima ratio” da força privada, não sendo por isso enquadrável nos casos excepcionais em que o emprego da força privada seja legitimado pelo direito privado em subsidiariedade à força pública.
Aliás, seja qual for o interesse justificativo por trás disso, sempre se dirá que esta norma que confira o direito de reserva de admissão às Entidades concessionárias é a de direito público.
Neste sentido, o facto de a norma legal ter facultado às Entidades concessionárias a possibilidade de ser socorrer da “coacção directa” ou “via de facto”, por motivos de conveniência própria, justifica-se apenas em virtude da boa execução do contrato de concessão de exploração de jogo de que uma entidade privada é titular.
Dito por outra forma, na execução do contrato de concessão, as Entidades concessionárias nunca são livres, nem o podem ser, como se fossem no quadro do exercício da sua capacidade jurídica de direito privado, de determinar a expulsão dos particulares dos seus casinos, assim como de determinar o encerramento destes estabelecimentos ou a suspensão das suas operações, como é exigido no disposto na alínea 1) do artigo 22.º da Lei n.º 16/2001. Mas quando tal for permitido por uma norma do direito público, é porque o exercício deste poder era no interesse público prosseguido pela Entidade concessionária em veste do representante da Administração Pública – por exemplo, para a realização do objectivo referido no artigo 1.º da mesma Lei, o qual poderá coincidir com o interesse próprio e mercantis destas entidades privadas, mas nem por isso a sua actuação passa a ser desqualificada como administrativa.
Tudo visto, somos de concluir que é a relação jurídica material administrativa que está em causa por envolver o exercício do poder público de autoridade, e que, por isso, este Tribunal é competente para julgar a causa.
Nestes temos, julga-se improcedente a excepção suscitada pela Entidade recorrida.
Notifique.
Seguidamente, cumpre-se o disposto do artigo 64.º do CPAC.”
*
Aberta vista ao Ministério Público, foi emitido pelo Digno Procurador-Adjunto o seguinte douto parecer:
“Nas alegações do recurso jurisdicional em apreço, a ora recorrente pediu a revogação do despacho in quaestio que consubstancia em julgar improcedente a excepção aduzida pela mesma na sua contestação (cfr. fls. 88 a 141 dos autos), excepção que consiste em arguir a incompetência do Tribunal Administrativo para julgar o recurso contencioso n.º 2908/19-ADM.
No art. 1.º da petição, o recorrente contencioso aí identificado indica que o sobredito recurso contencioso foi interposto do acto administrativo praticado em 22/03/2019 pela sociedade “A, S.A.” que é entidade recorrida no recurso contencioso e ora recorrente, e traduzido em determinar a renovação da proibição de entrada do recorrente contencioso nos casinos explorados pela mesma sociedade.
Na sua notificação escrita dirigida ao ilustre mandatário forense do recorrente contencioso (doc. de fls. 83 a 84 dos autos), a sociedade “A, S.A.” reconheceu claramente: A decisão no sentido de impedir a entrada do senhor Anthony Kamp nos nossos casinos, por inconveniência, foi por nós prorrogada em 22 de Março de 2019 por um período adicional de dois anos, já que se continuavam a verificar os receios de perturbação do funcionamento do casino, da tranquilidade e ordem pública nos mesmos e a possibilidade de prática de jogo com recurso a técnicas e perícias.
Considerando a contestação, a réplica do recorrente contencioso, as alegações bem como as correlativas contra-alegações, podemos extrair que a única divergência consiste apenas em indagar se a “decisão” aludida pela própria sociedade “A, S.A.” na supramencionada notificação tiver comportado o exercício do poder de autoridade?
*
Nos termos do n.º 2 do art. 25.º da Lei n.º 16/2001 na redacção primitiva, os membros da direcção de qualquer casino que tivesse exercido o poder de expulsão previsto no respectivo n.º 1 ficavam obrigados a comunicar a sua decisão à DICJ no prazo de 24 horas e a pedir a confirmação.
Note-se que a sobredita obrigação legal de comunicação e de pedir a confirmação não tem consagração na Lei n.º 10/2012, e o n.º 1 do art. 10.º desta Lei qualifica os directores dos casinos na categoria de “autoridades competentes” para solicitar a identificação dos frequentadores dos casinos e também ordenar a expulsão quando em exercício de funções e, deste modo, atribui a competência para ordenar a expulsão aos directores dos casinos. O que patenteia que comparada com o art.25.º da Lei n.º16/2001 na redacção primitiva, a Lei n.º10/2012 reforça o poder de expulsão conferido a tais directores, no sentido de que as ordens de expulsão emanadas por esses directores são datadas da executoriedade própria, na medida em que tais ordens de expulsão produzem interdição consignada no n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 10/2012 e não necessita da confirmação da DICJ.
Convém assinalar que o ordenamento jurídico de Macau não é o único que permite a transferência temporária de certas funções públicas a pessoas ou entidade privadas (a título meramente exemplificativo, cfr. Paulo Otero: Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina 2013, pp. 464 a 483); e de outro lado, nem a Lei n.º 16/2001 nem a Lei n.º 10/2012 é a primeira legislação que atribui as funções públicas a pessoas ou entidade privadas – com efeito, houve já deliberativa jurisprudência que asseverou categoricamente (cfr. Acórdão do ex-TSJM de 05/05/1999 no Processo n.º 928, in Jurisprudência 1999, I TMOMO, pp. 40 a 63): Para que tal missão – da realização de interesses públicos – possa ser alcançada com eficácia, o concessionário de serviços públicos, dada a sua inserção na Administração Pública, recebe da lei poderes de autoridade pública que ficam a pertencer-lhe como poderes próprios e não delegados, entre os quais revelam, pela sua importância, os poderes de emitir regulamentos e praticar actos ou celebrar contratos administrativos, que, assim, e nessa medida, estão sujeitos à fiscalização dos tribunais administrativos.
Ora, em Macau é consabida a fulcral importância da indústria do jogo de fortuna ou azar, pois trata-se de indústria que constitui a principal e insubstituível fonte das finanças públicas. O que levou o legislador a consagrar que as concessionárias estão obrigadas a fazer funcionar normalmente todas as dependências dos casinos e anexos para os fins a que se destinam ou sejam autorizados (art. 22.º, alínea 1), da Lei n.º 16/2001). Tudo isto justifica e explica cabalmente a atribuição legal da competência para expulsão aos directores dos casinos.
Bem, o n.º 1 do art. 6.º da Lei n.º 16/2001 estabelece que os casinos devem funcionar durante todos os dias do ano, parece-nos que a função primordial do jogo de fortuna ou azar para a Fazenda Pública e a modus vivendi das concessionárias traduzida na interrupta prosseguição do lucro implicam indissoluvelmente que os casinos incluindo as salas de jogo são lugares predestinadamente abertos a qualquer pessoa não interdita.
Interpretada neste contexto e ainda em harmonia com a interdição provisória de 5 dias estabelecida no n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 10/2012, a reserva do direito de admissão prevista no art. 7.º da mesma Lei não pode deixar de ser excepcional ao princípio de livre acesso, em consequência e por natureza das coisas, as medidas de impedir a entrada e de determinar a saída contempladas neste art. 7.º são cautelares e circunstanciais. E a nosso ver, tem razão o MM.º Juiz a quo ao afirmar que “Como vimos, o emprego da força directa autorizada pela referida norma do artigo 7.º da Lei n.º 10/2012 permite-se com a mera invocação dos motivos de conveniência, o que nos afigura incompatível desde logo com a princípio de proibição e da exigência de “ultima ratio” da força privada, não sendo por isso enquadrável nos casos excepcionais em que o emprego da força privada seja legitimado pelo direito privado em subsidiariedade à força pública.”
Evidente é que tanto tais medidas como as solicitações de identificação e ordens de expulsão prescritas no n.º 1 do art. 10.º da Lei n.º 10/2012 se distinguem, completa e substancialmente, dos negócios das concessionárias destinados à exploração do jogo de fortuna ou azar. Nesta linha de vista e com todo o respeito pelo melhor entendimento em sentido contrário, afigura-se-nos que as medidas, solicitações e ordens supra aludidas ficam fora da previsão do n.º 1 do art. 3.º do Código Comercial, e por isso não constituem nem podem ser consideradas actos de comércio.
Chegando aqui, resta-nos a concluir que, na nossa óptica, a decisão tomada pela “A, S.A.” e traduzida em renovar a proibição de entrada do referido indivíduo nos casinos explorados pela mesma durante dois anos é acto materialmente administrativo, e que o Tribunal Administrativo é competência para conhecer do recurso contencioso interposto dessa decisão (art. 30.º, n.º 2, alínea 3), subalínea (3), da Lei n.º 9/1999).
***
Por todo o expendido acima, propendemos pelo não provimento do presente recurso jurisdicional.”
*
Ouvida a douta opinião do Ministério Público e analisada a sentença de primeira instância que antecedem, louvamos a acertada decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC, aplicável subsidiariamente.
Sendo assim, há-de negar provimento ao recurso jurisdicional.
***
III) DECISÃO
Face ao acima exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela entidade recorrida.
Registe e notifique.
***
RAEM, 22 de Abril de 2021



Tong Hio Fong
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong

Mai Man Ieng



Recurso Jurisdicional 958/2020 Página 21