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Processo nº 20/2021 Data: 21.05.2021
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Decisão que determina a cessação de funções em cargo de chefia.
Audiência do interessado.
Formalidade essencial.



SUMÁRIO

1. A Administração está vinculada ao princípio da “legalidade”, da “prossecução do interesse público”, da “protecção dos direitos e interesses dos residentes”, da “justiça” e “boa fé”, (cfr., art. 41° da L.B.R.A.E.M. e os art°s 3°, 4°, 7° e 8° do C.P.A.), cabendo-lhe (também) o dever de evitar “decisões-surpresa”, devendo, assim, observar, adequada e regularmente, o “contraditório”, facultando aos particulares o (justo) “direito de participar nas suas decisões”.

2. O direito à audição não serve apenas à protecção jurídica subjectiva, mas visa também fins de formação de consenso, maior proximidade aos factos e aumento da aceitação das decisões. Trata-se pois de uma formalidade que se insere na tendência da moderna Administração para dialogar, buscar o consenso, e, desta forma, realizar a desejada “justiça material”.

3. Quando obrigatória ou não dispensada em concreto, a audiência dos interessados constitui uma “formalidade essencial” cuja preterição acarreta vício de forma e a invalidade do acto administrativo que consubstancie a decisão final.

4. A “falta de prévia audiência do interessado” apenas constitui – ou se degrada em – “formalidade não essencial” quando em causa estiver uma decisão proferida no exercício de um “poder vinculado”.

O relator,

José Maria Dias Azedo

Processo nº 20/2021
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em sede dos Autos de Recurso Contencioso n.° 1112/2019, em que é recorrente A (甲), e entidade recorrida, o SECRETÁRIO PARA A ADMINISTRAÇÃO E JUSTIÇA, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão datado de 08.10.2020, onde considerou o acto administrativo aí recorrido – que declarou a cessação da comissão de serviço do recorrente como Chefe do Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões – inquinado com o vício de “violação de lei por falta de audiência prévia”, decidindo-se pela sua anulação.

Tem o Acórdão recorrido o teor seguinte:

“I. Relatório
A (甲), com os demais sinais constantes dos autos, inconformado com o despacho proferido pelo Secretário para a Administração e Justiça da RAEM na Proposta do Fundo de Pensões n.º 004/VPRES-D/FP/2019, veio interpor recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância, com as seguintes conclusões de recurso:
1. O Secretário para a Administração e Justiça proferiu o despacho na Proposta n.º 004/VPRES-D/FP/2019 em 9 de Setembro de 2019 que cessou a comissão de serviço do recorrente como chefe do Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões, a decisão entrou em vigor no dia da proferição do despacho, assim, a respectiva proposta faz parte do acto recorrido.
2. De acordo com o teor do acto recorrido, a comissão de serviço do recorrente ficou cessada, uma vez que o recorrente estava impedido de exercer funções por mais de 6 meses por força da Lei n.º 15/2009.
3. A cessação ou não da comissão de serviço do recorrente como chefe do Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões é um acto discricionário e não vinculado.
4. Durante o período entre o início de impedimento do exercício das funções e a notificação de cessação da comissão de serviço, a Administração nunca procedeu previamente à audiência escrita ou oral do recorrente nos termos do Código do Procedimento Administrativo.
5. De acordo com o Código do Procedimento Administrativo, salvo os casos excepcionais, a audiência dos interessados é um mecanismo necessário e deve ser feita em determinado momento do processo, concretamente, é necessário ouvir o interessado sobre o assunto a decidir, para que o mesmo defenda a sua opinião e que a respectiva opinião seja tida em conta na decisão, a fim de tomar decisão final de aceitar ou não a respectiva opinião.
6. Além disso, a entidade recorrida não deve deixar de considerar a revogabilidade a todo tempo da respectiva medida de coacção.
7. Designadamente, o acto recorrido é um acto administrativo com natureza sancionatória, pelo que, a falta de audiência do recorrente violou o disposto no art.º 122.º n.ºs 1 e 2 al. d) do Código do Procedimento Administrativo, pelo que o acto recorrido é nulo.
8. Caso os Exm.ºs Juízes julguem que o acto recorrido não é um acto administrativo com natureza sancionatória, o acto recorrido pode ainda ser anulável por violação do disposto no art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo devido à falta de audiência.
9. Tendo em conta os motivos da cessação antecipada da comissão de serviço previstos no art.º 16.º n.º 1 da Lei n.º 15/2009, combinando com os casos da compensação por cessação da comissão de serviço previstos no art.º 18.º n.º 1 da Lei n.º 15/2009, o legislador visa conferir ao titular uma compensação no caso de cessação antecipada da comissão de serviço por causa não imputável ao titular.
10. Mesmo que o recorrente cessasse as funções públicas para cooperar a investigação criminal, segundo o princípio da presunção de inocência, presume-se inocente o recorrente antes da sentença transitada em julgado, isto é, não existe causa imputável ao recorrente.
11. Segundo o espírito legislativo no art.º 18.º da Lei n.º 15/2009, devem fazer compensação ao recorrente nos termos legais.
12. Portanto, nos termos do art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo, o acto é anulável por ter enfermado do vício do erro na aplicação da lei.
13. O recorrente já indicou expressamente, no requerimento de consulta dos autos deduzido em 20 de Setembro de 2019, que ele deduziu o requerimento de consulta para que possa adoptar os meios do processo administrativo e os meios processuais, assim, durante o período entre a dedução do requerimento e a autorização da consulta de autos, o prazo de recurso contencioso deve ser suspenso.
Face ao exposto, solicita-se aos Exm.ºs Juízes que julguem procedente o presente recurso:
- Solicita-se aos Exm.ºs Juízes que declarem nulo o acto recorrido por ter enfermado do vício de nulidade por falta de audiência;
- Caso os Exm.ºs Juízes não concordem com a referida opinião, solicita-se aos Exm.ºs Juízes que anulem o acto recorrido por ter enfermado do vício do erro na aplicação da lei no acto recorrido.
Tendo citado regularmente, a entidade recorrida, ora Secretário para a Administração e Justiça, contestou, alegando que não existe nenhum vício no acto recorrido e pedindo ao Tribunal que negue provimento ao recurso (vide fls. 24 a 38 dos autos).
Por despacho do juiz relator, o recorrente e a entidade recorrida foram notificados de apresentar as alegações facultativas.
O recorrente e a entidade recorrida, após a notificação, não apresentaram as alegações facultativas.
Em seguida, tendo visto os autos, o Exm.º Delegado do MP emitiu o seguinte parecer.
Na petição inicial, o recorrente solicitou a declaração da nulidade ou, subsidiariamente, a anulação do despacho em escrutínio, invocando a indevida preterição da audiência e o vício da aplicação de lei reportada in casu ao preceito no n.ºl do art.18º da Lei n.º15/2009.
*
De acordo com o disposto no n.º1 do art.115º do CPA, inclinamos a colher que o despacho impugnado neste recurso contencioso consiste em autorizar e absorver a Proposta n.º004/VPRES-D/FP/2019 na sua íntegra (doc. de fls.5 a 8 do P.A.). O que implica que tal despacho contém em si duas decisões consubstanciadas respectivamente em cessar a comissão de serviço do recorrente como chefe do Departamento, e em não atribuir-lhe a compensação, nos termos das disposições na alínea 3) do n.º1 ex vi n.º2 do art.16º e no n.º1 do art.18º da Lei n.º15/2009.
Repare-se que como um dos fundamentos, o n.º1 da Proposta supra aludida menciona clara e propositadamente que o MMº Juiz do Juízo da Instrução Criminal aplicou, nos termos do disposto na alínea a) do n.º1 do art.185º do CPP, ao ora recorrente a medida de coacção da suspensão de exercício de qualquer função pública.
Ora, o documento de fls.1 do P.A. demonstra inequivocamente que a sobredita suspensão de exercício de qualquer função pública foi imposta pelo MMº Juiz do Juízo da Instrução Criminal em 26/10/2018 e produziu efeito imediatamente. Daí decorreram dez meses e tal desde 26/10/2018 até a 09/09/2019 que é a data do despacho recorrido, por isso verifica-se o pressuposto previsto na alínea 3) do n.º1 do art.16º da Lei n.º15/2009.
Não se divisa dúvida de que o recorrente foi já ouvido pelo MMº Juiz antes da aplicação da dita suspensão de exercício de qualquer função pública, e essa decisão judicial constitui o fundamento mais decisivo da referida cessação da comissão de serviço incorporada no despacho in quaestio, em boa verdade não havendo instrução para tal cessação.
Nesta linha de ponderação, e sem embargo do muito elevado respeito pela opinião diferente, parece-nos que se aplica ao caso sub judice a previsão da alínea a) do art.97º do CPA, no sentido de que é dispensável a audiência que se degreda em formalidade não essencial, e a preterição da audiência não invalida a apontada “cessação da comissão de serviço”.
*
Ora, nos termos do preceituado na alínea 3) do n.º1 do art.16º da Lei n.º15/2009, pode ser causa e fundamento da cessação da comissão de serviço qualquer motivo que tenha impedido o titular de direcção ou de chefia de exercer funções por mais de 6 meses. Com efeito, esta alínea 3) evidencia, só por si e de maneira indubitável, que aqui o legislador não distingue o motivo imputável do inimputável.
Por sua vez, a alínea 2) do n.º1 do art.18º desta Lei estabelece que a compensação tem como pressuposto a cessação da comissão de serviço antes do respectivo termo por motivo de conveniência de serviço, extinção ou reestruturação do respectivo serviço ou subunidade orgânica, ou devida a ausência prolongada do titular por motivo de doença. O que patenteia indisputavelmente que a doença é o único motivo pessoal legalmente consagrado como fundamento da compensação, quando tiver provocado a ausência prolongada do titular.
Procedendo à interpretação sistemática e axiológica do disposto no n.º4 do art.18º da Lei n.º15/2009, designadamente em coerência com os deveres prescritos no art.279º do ETAPM, acreditamos que a cessação da comissão de serviço não dá luz à compensação quando fundar em serem imputados suficientes indícios da prática de crime ao titular, sobretudo quando tal cessação se basear na aplicação da suspensão do exercício da função pública de acordo com a alínea a) do n.º1 do art.185º do CPP.
Tudo isto impulsiona-nos a opinar que o acto recorrido na parte de determinar não atribuir compensação ao recorrente está na plena conformidade com a axiologia dos n.º1 e no n.º4 do art.18º da Lei n.º15/2009, e por isso não padece da assacada violação de lei.
Na medida em que a única resolução legal consiste em não atribuir compensação ao recorrente, o despacho atacada na parte acima apontada constitui acto vinculado, daí flui que, segundo nos parece, a preterição da audiência se degreda na formalidade não essencial.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pelo improcedência do presente recurso contencioso.
Colhidos os vistos dos dois Exm.ºs juízes-adjuntos, vieram os autos do recurso à conferência.
O TSI é competente em razão da matéria, do território e da hierarquia.
O processo é próprio. Não há nulidades e questões prévias que obstam ao conhecimento do presente recurso.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade neste recurso.
II. Fundamentação
De acordo com os elementos do presente processo e do processo administrativo, são os factos relevantes e úteis para o conhecimento do presente recurso e que não foram impugnados pelos sujeitos processuais:
- O recorrente A exerceu as funções do chefe do Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões em regime de comissão de serviço desde 1 de Março de 2012;
- Por despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal no Processo de Inquérito n.º 11205/2018 em 26 de Outubro de 2018, ao recorrente foi aplicada a medida de coacção de suspensão do exercício das funções públicas;
- Esta medida de coacção mantém-se até hoje;
- O Secretário para a Administração e Justiça proferiu despacho em 9 de Setembro de 2019, que decidiu cessar antecipadamente a comissão de serviço do recorrente como chefe do Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões, com fundamento de impedimento de exercício de funções por mais de 6 meses devido à medida de coacção, nos termos do art.º 16.º n.º 1 al. 3) e n.º 2 da Lei n.º 15/2009, decisão essa entrou em vigor desde 9 de Setembro de 2019 (cfr. fls. 24 a 27 dos autos do processo administrativo).
- Inconformado com o despacho, o recorrente interpôs recurso contencioso para o TSI.
Nos termos do art.º 589.º do Código de Processo Civil, por remissão do art.º 1.º do Código de Processo Contencioso Administrativo, o recurso tem por objecto as questões levantadas e delimitadas nas conclusões da petição do recurso e as questões de que devem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal de recurso.
No recurso, não há questões de que devem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal de recurso.
Portanto, de acordo com o âmbito delimitado pela petição de recurso, cumpre conhecer das seguintes questões:
1. Nulidade do acto recorrido;
2. Audiência do interessado; e
3. Compensação por cessação da comissão de serviço.
1. Nulidade do acto recorrido:
Alegou o recorrente que o acto recorrido é um acto administrativo com natureza sancionatória, assim, antes de fazer esse acto administrativo com natureza sancionatória, o órgão administrativo não deu ao recorrente a oportunidade do exercício do direito de audiência, pelo que constitui um acto administrativo violador do teor essencial do direito fundamental previsto no art.º 122.º n.ºs 1 e 2 al. d) do Código do Procedimento Administrativo e consequentemente, deve ser declarado nulo o acto recorrido.
Para fundamentar a sua posição, o recorrente citou a conclusão formulada no acórdão do TSI no Processo de Recurso Contencioso n.º 965/2009:
“No âmbito dos procedimentos sancionatórios, mais do que um direito de audiência dos interessados, está em causa um direito de audiência e defesa. Por este motivo, e na medida em que o direito de defesa em procedimentos sancionatórios constitui um direito, liberdade e garantia, a não realização deste trâmite naqueles procedimentos conduz à nulidade do acto administrativo, por violação do conteúdo essencial de um direito fundamental.”
Por outras palavras, entende o recorrente que o acto recorrido tem natureza sancionatória, o órgão administrativo, antes de fazer esse acto administrativo com natureza sancionatória, não realizou a audiência do recorrente, o que constitui a violação do direito fundamental do recorrente, pelo que é nulo o acto recorrido.
O fundamento de facto do acto recorrido consiste na medida de coacção de suspensão do exercício das funções públicas (art.º 185.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal) aplicada pelo Juiz de Instrução Criminal no processo penal pendente, enquanto o fundamento de direito reside no art.º 16.º n.º 1 al. 3) e n.º 2 da Lei n.º 15/2009:
Artigo 16.º
Causas de cessação eventual da comissão de serviço
1. A comissão de serviço dos titulares de cargos de direcção pode ser dada por finda, durante a sua vigência:
1) Por conveniência de serviço, devidamente fundamentada, nomeadamente com base na não comprovação superveniente da capacidade adequada a garantir a execução das orientações superiormente fixadas ou na não realização dos objectivos previstos;
2) A requerimento do interessado;
3) Quando o titular se veja impedido de exercer funções por mais de 6 meses;
4) Com fundamento em incumprimento do dever de exclusividade, independentemente da responsabilidade disciplinar que ao caso couber;
5) Com fundamento em incumprimento das regras de selecção e recrutamento do pessoal, independentemente da responsabilidade financeira e disciplinar que ao caso couber;
6) Com fundamento em incumprimento das regras relativas às garantias de imparcialidade da Administração Pública, sem prejuízo de outras responsabilidades que ao caso couberem;
7) Com fundamento na prática de infracção disciplinar em que seja aplicada pena de multa ou superior;
8) Por aplicação do disposto no artigo 23.°
2. A comissão de serviço dos titulares de cargos de chefia pode ser dada por finda, durante a sua vigência, por qualquer dos motivos referidos nas alíneas 1) a 7) do número anterior e quando lhes seja atribuída menção de «Satisfaz» na avaliação do respectivo desempenho.
Evidentemente, a decisão do órgão administrativo sobre a cessação da comissão de serviço do recorrente foi tomada com base no facto objectivo de que o recorrente se constituiu como arguido num processo penal pendente e foi impedido de exercer as funções públicas por mais de 6 meses, assim, está satisfeito o pressuposto de facto previsto no art.º 16.º n.º 1 al. 3) da Lei n.º 15/2009.
Portanto, o acto administrativo recorrido não só não tem qualquer conteúdo crítico ou censurável, mas também não foi feito conforme o procedimento disciplinar previsto no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau. Sem dúvida, o acto administrativo recorrido não tem natureza sancionatória.
Pelo que esta parte do recurso é improcedente.
2. Audiência do interessado
O recorrente também alegou a anulabilidade do acto recorrido por não ter exercido o direito de ser ouvido.
De acordo com o princípio da participação previsto no art.º 10.º do Código do Procedimento Administrativo, os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência, nos termos deste Código.
A fim de aplicar o princípio da participação, 1.…, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta por força do art.º 93.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo.
A audiência visa permitir que os interessados em procedimento administrativo participem activa e construtivamente no processo de decisões que sobre os mesmos tenham impacto directo, especialmente para que os interessados expressem as suas opiniões ou posições sobre as decisões a serem tomadas pelos órgãos administrativos.
Aliás, todo o princípio tem excepção.
Regulando a inexistência e a dispensa de audiência prescrevem os art.°s 96.° e 97.° do C.P.A. que:
Artigo 96.º
(Inexistência de audiência dos interessados)
Não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada.
Artigo 97.º
(Dispensa de audiência dos interessados)
O órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados.
No entanto, a situação envolvida no acto administrativo recorrido não se enquadra nas disposições jurídicas supracitadas.
Além disso, nos termos do art.º 16.º n.º 1 al. 3) da Lei n.º 15/2009, ora Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia, apenas o órgão administrativo pode cessar a comissão de serviço dos titulares de cargos de direcção quando o titular se veja impedido de exercer funções por mais de 6 meses.
O legislador utiliza a expressão “pode ser dada por finda, durante a vigência”, o que significa que não é obrigatório ou sem alternativa, mas sim confere ao órgão administrativo um poder discricionário para que este decide se cessar ou não a comissão de serviço em função da situação concreta.
Tal como indicou o MP, o recorrente tem direito de ser ouvido quanto à aplicação da medida de coacção e o direito conferido no exercício do direito do contraditório, a aplicação da medida de coacção foi feita tendo em conta os interesses do processo penal, isto é, a fim de garantir o bom andamento do processo e a execução efectiva da eventual sentença condenatória, relativamente, aos indícios dos factos criminosos que ao arguido estão imputados, ou porque se verifica o perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do processo ou destruição de prova, e perigo de continuação da actividade criminosa nos termos do art.º 188.º do Código de Processo Penal. O recorrente, como arguido, exerceu os direitos conferidos pelo princípio do contraditório apenas sobre as questões e os pressupostos supracitados, no entanto, isso não significa ou substitui a oportunidade do recorrente de pronunciar-se sobre a matéria considerada pelo órgão administrativo no processo da cessação da comissão de serviço.
Os bens jurídicos tutelados pelo processo penal e pelo processo administrativo são distintos, assim, in casu, é necessário dar palavra ao recorrente no respectivo processo administrativo antes da cessação da sua comissão de serviço.
Todavia, o órgão administrativo fez o acto recorrido sem audiência do interessado, pelo que o acto administrativo deve ser anulado por violação do princípio do contraditório.
3. Compensação pela cessação da comissão de serviço
Alegou o recorrente que o sentido legislativo no art.º 18.º da Lei n.º 15/2009 implica que a cessação da comissão de serviço por motivo não imputável ao titular do órgão confere o direito a compensação ao interessado. In casu, o motivo da cessação da comissão de serviço não é imputável ao recorrente, mas o órgão administrativo não fez tal compensação ao recorrente, daí, o acto recorrido deve ser anulado por violação da lei.
O órgão administrativo recorrido entende que a cessação da comissão de serviço do recorrente não se enquadra em nenhum caso previsto no art.º 18.º da Lei n.º 15/2009, isto é, por motivo de conveniência de serviço, extinção ou reestruturação do respectivo serviço ou subunidade orgânica, ou devida a ausência prolongada do titular por motivo de doença, pelo que a lei não conferiu o direito a compensação pela cessação da comissão de serviço.
Com efeito, de acordo com a expressão do art.º 18.º da Lei n.º 15/2009, o legislador apenas enumerou uma parte de situações de cessação antecipada da comissão de serviço no art.º 16.º.
O Código Civil prevê, no art.º 8.º n.º 3, que a interpretação da lei, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
As disposições jurídicas no presente caso encontram-se no mesmo capítulo e na mesma lei, assim, o legislador quem soube exprimir o seu pensamento em termos adequados devia colocar expressamente a situação do art.º 16.º n.º 1 al. 3) no art.º 18.º nas situações de compensação previstas no art.º 18.º.
Todavia, o legislador não fez isso.
Assim, este Tribunal não constatou como é que o legislador omitiu os casos ou as expressões pretendidas no processo legislativo na mesma lei.
Assim, a cessação antecipada da comissão de serviço por impedimento de exercício das funções por mais de 6 meses não se enquadra nas situações carecidas da compensação, pelo que não se verifica a ilegalidade da decisão do órgão administrativo de não fazer compensação.
Conclusões:
1. A decisão da cessação da comissão de serviço por mero impedimento de exercício das funções por mais de 6 meses pelo titular de direcção ou de chefia nos termos do art.º 16.º n.º 1 al. 3) da Lei n.º 15/2009 não é um acto administrativo com natureza sancionatória.
2. Antes de tomar decisão de cessação da comissão de serviço do titular de direcção ou de chefia nos termos do art.º 16.º n.º 1 al. 3) da Lei n.º 15/2009, o órgão administrativo deve dar palavra ao titular para exercer o direito de ser ouvido.
3. O art.º 16.º n.º 1 al. 3) da Lei n.º 15/2009 não se encontra nos casos previstos no art.º 18.º n.º 1 da mesma Lei, o que não implica que o legislador omitiu tal expressão.
III. Decisão
Face ao exposto, o Juízo Colectivo de Recurso Civil e Administrativo do TSI vota através da conferência, julgando procedente o recurso do recorrente A e anulando o acto administrativo recorrido.
Sem custas judiciais pelo recorrente.
Registe nos termos da lei e notifique os sujeitos processuais.
(…)”; (cfr., fls. 52 a 57-v e 5 a 23 do Apenso).

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Inconformada com o assim decidido, traz a entidade administrativa o presente recurso, onde, em alegações, produz as seguintes conclusões:

“1. Por acórdão, o TSI julgou procedentes as motivações de recurso e anulou o acto administrativo recorrido. Salvo o devido respeito, a entidade de recurso discordou parcialmente da decisão supracitada, ela entende que o acto administrativo recorrido não enfermou do vício de anulação e o acórdão recorrido incorreu no erro na aplicação da lei, com os seguintes fundamentos.
2. Nos termos do art.º 93.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, o pressuposto para que o interessado possa ser ouvido no processo consiste em que a Administração já realizou a instrução no respectivo processo, a instrução visa recolher os factos e as provas relevantes para a decisão administrativa, para que o órgão administrativo tome decisão adequada.
3. À luz do art.º 86.º n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, não carecem de prova nem de alegação os factos notórios bem como os factos de que o órgão competente tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções.
4. Após a instrução, a audiência dos interessados visa dar conhecimento aos interessados dos fundamentos da decisão da Administração, para evitar uma decisão repentina para os interessados.
5. Por força do art.º 93.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, a audiência pressupõe que a Administração procedesse à instrução sobre os factos que fundamentam a decisão.
6. In casu, tanto a entidade de recurso como o recorrido sabiam bem o facto de que o Juízo de Instrução Criminal aplicou ao recorrido a medida de coacção de suspensão do exercício das funções públicas por mais de 6 meses, ele pode prever a possibilidade da decisão da Administração de cessar as suas funções.
7. Dado que o facto que fundamenta a decisão da entidade de recurso da cessação da comissão de serviço, não está carecido de instrução, e o recorrido também sabia bem o respectivo facto, assim, não está satisfeito o pressuposto da audiência previsto no art.º 93.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo.
8. Além disso, considerando a finalidade substancial da audiência, o recorrido pode prever a possibilidade da decisão da Administração da cessação da comissão de serviço e os fundamentos de facto e de direito desta decisão, pelo que a respectiva audiência não é procedimento essencial.
9. A entidade de recurso, antes de tomar decisão, não procedeu à audiência do recorrido devido à falta de necessidade de audiência, o que não significa uma decisão repentina nem afecta os direitos do recorrido, pelo que a decisão da entidade de recurso não enfermou do vício da anulação indicado no acórdão recorrido.
10. A entidade de recurso concordo plenamente com a douta opinião do Exm.º Magistrado do MP no processo em epígrafe, a audiência do recorrido é um procedimento não essencial, pelo que o acto administrativo recorrido sem audiência não afecta nenhum direito do recorrido.
11. Face ao exposto, o acto administrativo recorrido não enfermou do vício indicado no acórdão recorrido, solicita-se aos Exm.ºs Juízes que anulem o acórdão recorrido por erro na aplicação da lei e mantenham o acto administrativo recorrido”; (cfr., fls. 67 a 72 e 24 a 31 do Apenso).

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Sem resposta, e admitido que foi o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, (cfr., fls. 63), vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando pela improcedência do recurso.

Tem este Parecer o teor seguinte:

“Nos termos previstos na norma do artigo 157.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), vem o Ministério Público pronunciar-se nos termos que seguem:
1.
O Tribunal de Segunda Instância, por acórdão proferido nos presentes autos a fls. 52 a 57 julgou procedente o recurso contencioso interposto por A, melhor identificado nos autos, e, em consequência, anulou o acto do Secretário para a Administração e Justiça, datado de 9 de Setembro de 2019 através do qual foi cessada a comissão de serviço do Recorrente contencioso como chefe do Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões.
Inconformado, veio o Secretário para a Administração e Justiça interpor o presente recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância pugnando pela revogação daquele acórdão.
Alega, em síntese, que, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal de Segunda Instância, a lei não obrigava à audiência do Recorrente previamente à prolação do acto anulado uma vez que esse acto não foi antecedido de qualquer instrução.
2.
2.1.
Discute-se no presente recurso jurisdicional uma única questão: a de saber se o Recorrente, antes de decidir cessar a comissão de serviço do Recorrido como chefe de Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões, estava legalmente obrigado a proceder à respectiva audiência.
Salvo o devido respeito pelo entendimento contrário, parece-nos que a resposta a essa questão não pode deixar de ser positiva.
Procuraremos, em termos necessariamente breves, demonstrar porquê.
A questão decidenda prende-se, essencialmente, com a interpretação do n.º 1 do artigo 93.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Aí se preceitua: «Salvo o disposto nos artigos 96.º e 97.º, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta».
Perante este normativo, o Recorrente, a partir do segmento inicial da letra da lei, sustenta uma interpretação minimalista, no sentido de que só há lugar a audiência dos interessados quando tiver havido instrução, entendida esta, também, em sentido muito estrito, ou seja, enquanto conduta destinada fixar os elementos que venham a constituir os pressupostos de facto do acto a praticar (embora o Recorrente não o diga, tal entendimento corresponde a uma corrente da jurisprudência administrativa portuguesa).
Não cremos, todavia, ser essa a boa interpretação da referida norma.
Desde logo porque, o sentido normativo de «instrução» é mais amplo do que aquele que a Recorrente aponta.
Na verdade, a instrução procedimental deve ser entendida, como um conjunto de formalidades, informações, pareceres, apresentação ou produção de provas, realização de diligências, vistorias, exames e avaliações necessárias à prolação do acto.
A instrução em causa pode, por isso, consistir tão-só num simples parecer ou informação dos serviços do órgão decisor (nestes termos, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal (Pleno) de 17.12.1997, publicado no Apêndice ao Diário da República, II Série, de 11.01.2001).
Ora, no caso, a decisão da anterior Secretária para a Administração e Justiça aqui em causa foi antecedida de uma proposta da Vice-presidente do Conselho de Administração do Fundo de Pensões que pode ser enquadrada como um acto de instrução de um procedimento que, diga-se, foi desencadeado oficiosamente e não por iniciativa do particular.
Por outro lado e de forma mais relevante, estamos em crer que a interpretação do Recorrente, com todo o respeito, não é teleologicamente adequada.
Com efeito, através da audiência do interessado, o que se procura é assegurar-lhe a possibilidade de se pronunciar não só sobre os factos e sobre a sua prova no âmbito do procedimento, mas também, mais do que isso, sobre o próprio resultado da operação da subsunção dos factos à norma que o órgão administrativo se propõe realizar, mesmo quando esteja em causa um poder vinculado (assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015, p. 115).
Com a audiência prévia do interessado procuram-se assegurar funções subjectivas, evitando-se decisões-surpresa e facultando ao particular a possibilidade de fazer valer a sua posição e funções objectivas, auxiliando a Administração a decidir melhor (nestes termos, MARCELO REBELO DE SOUSA - ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, tomo III, Lisboa, 2007, p. 127).
Sendo isto assim, não se vislumbra, na verdade, qualquer razão válida para distinguir para efeitos de audiência prévia do interessado, entre situações em que tenham ou não existido diligências instrutórias no procedimento. Aliás, uma tal interpretação da norma, levada às últimas consequências implicaria um resultado que seria causador, no mínimo, de enorme perplexidade pois que redundaria em claro benefício do infractor nas situações em que a Administração omitisse culposamente a realização de diligências instrutórias, nomeadamente preterindo absolutamente tais diligências (chamando a atenção para este aspecto, JOÃO PACHECO DE AMORIM, A instrução do procedimento: pareceres vinculativos e audiência dos interessados no Código do Procedimento Administrativo, Cadernos de Justiça Administrativos, n.º 82, p. 28).
Acompanhamos, pois, a interpretação da norma do artigo 93.º, n.º 1 do CPA que vai no sentido de que, existe sempre, antes da prática de um acto administrativo um momento de averiguação mínima dos pressupostos de facto e de direito, ou seja, uma actividade de instrução procedimental em sentido funcional pelo que, em regra, sempre se justifica que, em procedimentos de iniciativa da Administração, se faculte ao interessado a possibilidade de se pronunciar sobre o sentido provável da decisão. Por isso, mesmo nessas situações, não encontra justificação a exclusão do direito procedimental à audiência prévia (cfr., neste sentido, MARCELO REBELO DE SOUSA – ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito…, p. 127).
Concluímos, assim, no sentido que foi sufragado pelo acórdão recorrido de que, mesmo quando a decisão final não é antecedida de uma actividade instrutória propriamente dita ainda assim deve ser facultada ao interessado a possibilidade de se pronunciar em sede de audiência prévia nos termos previstos no n.º 1 do artigo 93.º do CPA.
2.2.
No caso em apreço, é incontroverso que a Administração não ouviu o Recorrido antes da prolação da decisão que cessou a respectiva comissão de serviço como chefe de um departamento do Fundo de Pensões pelo que foi preterida a dita formalidade procedimental da audiência prévia.
Por outro lado, a situação não se enquadra em nenhuma das hipóteses de inexistência do dever de audiência ou de dispensa de tal dever a que se referem os artigos 96.º e 97.º do CPA.
A este último propósito diremos que, com todo o respeito por entendimento diferente, parece-nos, como também se assinalou na decisão recorrida, nos parece que o contraditório que o Recorrido pôde exercer no processo penal anteriormente à aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício de funções públicas que esteve na base da decisão de cessação da comissão de serviço aqui impugnada não supre a omissão da audiência prévia a que alude o artigo 93.º, n.º 1 do CPA, pelo que não está preenchido o pressuposto da dispensa (que, aliás, sempre teria de ser administrativamente determinada) a que se refere a alínea a) do artigo 97.º do CPA.
Da apontada preterição resulta, em nosso modesto entendimento, a consequência que foi apontada pelo Tribunal a quo, ou seja, a anulabilidade do acto recorrido sem que, diga-se, se mostre possível proceder ao seu aproveitamento.
Com efeito, o acto recorrido foi praticado ao abrigo da norma de competência prevista no artigo 16.º, n.º 1, alínea 3) da Lei n.º 15/2009, nos termos do qual «a comissão de serviço dos titulares de cargos de direcção pode ser dada por finda, durante a sua vigência» quando o respectivo titular se veja impedido de exercer funções por mais de 6 meses (sempre se diga que a parte remanescente do acto recorrido, aquela em que a Administração considerou que o Recorrente não tem direito à compensação a que se refere o artigo 18.º da dita Lei n.º 15/2009 tem, parece-nos claro, natureza meramente opinativa e por isso não releva na presente equação).
Significa isto, portanto, que aquele acto corresponde ao exercício de um poder discricionário. Ora, entre nós tem vindo a ser decidido de modo uniforme que, quando tal suceda, não é possível aproveitar o acto praticado com preterição da audiência prévia. Apenas quando «no exercício de poderes vinculados por parte da Administração, o tribunal conclua, através de um juízo de prognose póstuma, que a decisão administrativa tomada era a única concretamente possível» é que a falta de audiência do interessado, prevista no art.º 93.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo se degrada em preterição de formalidade não essencial (assim, entre muitos outros, veja-se o acórdão do Tribunal de última Instância de 31.7.2020, processo n.º 18/2020).
Estando em causa um poder discricionário, só pode aproveitar-se o acto ferido de vício procedimental por omissão de audiência nas situações em que a apreciação do caso permita identificar apenas uma solução como possível (as chamadas situações de redução da discricionariedade a zero). Ora, manifestamente, isso não sucede no caso em apreço pelo que, como dissemos, cremos ser inviável a neutralização do efeito invalidante do vício antes assinalado ao acto recorrido.
3.
Deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.
(…)”; (cfr., fls. 82 a 85).

*

Aqui chegados, e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, em causa no presente recurso está saber se acertado foi o entendimento explanado no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, com o qual se concedeu provimento ao anterior recurso contencioso do (aí recorrente e) ora recorrido, com a consequente anulação da decisão administrativa então impugnada.

E como igualmente se colhe de uma leitura ao aludido Acórdão e conclusões do recurso agora trazido a esta Instância, perfeitamente identificada está a “questão” sobre a qual se requer uma pronúncia: consiste pois em saber se correcto é o dito entendimento do Tribunal de Segunda Instância que considerou que a decisão pela então recorrida, agora recorrente proferida – e que determinou a “cessação de funções” do agora recorrido como Chefe de Departamento do Regime de Aposentação e Sobrevivência do Fundo de Pensões – padecia do vício de “violação de lei”, por falta da sua “prévia audiência”.

Nesta conformidade – nenhum motivo existindo para não se ter a “decisão da matéria de facto”, (que aliás, não está impugnada), como definitivamente fixada, e, esclarecendo-se, desde já, que a referida “decisão” não tem a natureza de “decisão política” ou de “acto praticado no exercício da função (essencialmente) política”, o que, como se sabe, implicava a conclusão de que insusceptível era o seu recurso; (sobre a questão, vd., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 04.03.2020, Proc. n.° 61/2017) – cabe dizer que, como (bem) nota o Exmo. Representante do Ministério Público no seu douto Parecer, reparo não merece o Acórdão recorrido na identificação e constatação do aludido “vício”, muito não se mostrando de acrescentar ao que sobre a referida “questão” já consignou o Colectivo de Juízes do Tribunal de Segunda Instância assim como o Exmo. Representante do Ministério Público, que se tem como claro, suficiente e adequado, e que se dá como reproduzido para efeitos de fundamentação da solução que adiante se irá adoptar.

Seja como for, tem-se como adequadas e oportunas as considerações que seguem.

Pois bem, dúvidas não cremos que existam que, à Administração – vinculada que está ao princípio da “legalidade”, da “prossecução do interesse público” e da “protecção dos direitos e interesses dos residentes”, assim como da “justiça” e “boa fé”, (cfr., art. 41° da L.B.R.A.E.M. e os art°s 3°, 4°, 7° e 8° do C.P.A.) – cabendo (também) o dever de evitar “decisões-surpresa”, observando, adequada e regularmente, o “contraditório”, e facultando aos particulares, o (justo) “direito de participar nas suas decisões”; (neste sentido, e expressamente, o art. 10° do dito C.P.A., onde se preceitua que “Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência, nos termos deste Código”).

Daí, consagrar-se, (também e no mesmo sentido), no art. 93° do referido C.P.A., o “direito” que aos interessados assiste em serem ouvidos antes de ser tomada a decisão final, até mesmo como forma de compensar (eventuais) “insuficiências de representatividade” do órgão administrativo, e a fim de melhor se “assegurar o conhecimento da situação” a quem compete decidir; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 18.03.2020, Proc. n.° 16/2020, podendo-se sobre o tema ver, com desenvolvimento, L. Ribeiro e C. Pinho in, “C.P.A. Anotado e Comentado”, pág. 483 e segs.).

Como também notou este Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 25.07.2012, (Proc. n.° 48/2012):

“A audiência dos interessados é o momento por excelência da participação dos particulares no procedimento administrativo.
Por outro lado, a doutrina sublinha, justamente, que a audiência dos interessados antes de ser tomada a decisão final é um direito e não uma benesse da Administração, aliás, como resulta da própria letra da lei. Acrescenta ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA que «Na audição, o cidadão deve ter a possibilidade real de levar para o processo a sua visão das questões relevantes. O direito à audição constitui uma garantia de um procedimento transparente (protecção contra decisões-surpresa), de igualdade de oportunidades e de uma decisão que atende às circunstâncias do caso concreto. Estes objectivos fundamentais não são garantidos apenas através da audição, mas também através de outros mecanismos, como direito à orientação e ao aconselhamento, o direito à colaboração no esclarecimento dos factos, o direito à consulta do processo, o direito a ser informado ou o direito a uma clara e completa fundamentação da decisão final.
O direito à audição não serve apenas à protecção jurídica subjectiva, mas visa também fins de formação de consenso, maior proximidade aos factos e aumento da aceitação das decisões. Trata-se pois de uma formalidade que se insere na tendência da moderna Administração para dialogar, buscar o consenso, enfim, realizar a justiça material»”.

Como também nota Luís Cabral de Moncada, “A audiência prévia é seguramente o conteúdo procedimental mínimo da relação jurídica administrativa. Por essa razão devem ser contados os casos em que a Administração dele pode prescindir bem como os casos em que em procedimentos especiais ela está como que reduzida ao mínimo expoente por poderosas razões de interesse público.
É, portanto, dentro de um enquadramento necessariamente muito restritivo que se deve admitir a dispensa legal da audiência e a possibilidade de a Administração considerar que a lei lhe deu a possibilidade de prescindir da audiência prévia do particular no procedimento administrativo. É a própria substância da relação jurídica administrativa que está em causa se não for assim”; (in “A Relação Jurídica Administrativa, Para um Novo Paradigma de Compreensão da Actividade, da Organização e do Contencioso Administrativos”, Coimbra, 2009, pág. 226 a 227).

Com efeito, e na esteira da doutrina maioritária, tem-se entendido “a audiência como uma formalidade absolutamente essencial, para além, claro dos casos em que se trata de um verdadeiro direito de defesa (como acontece nos procedimentos sancionatórios)”, argumentando-se para tanto que “a formalidade da audiência corresponde a um direito dos interessados, com dignidade constitucional e legal e degradá-la logo em formalidade relativamente essencial parece-nos excessivo, menosprezando-se o alcance jurídico que se quis dar à sua introdução no procedimento administrativo”; (cfr., v.g., Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e João Pacheco de Amorim in, “C.P.A. Comentado”, 2ª ed., pág. 454).

É também essa a posição de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, que consideram que “Quando obrigatória ou não dispensada em concreto, a audiência dos interessados constitui uma formalidade essencial cuja preterição acarreta vício de forma e a invalidade do acto administrativo que consubstancie a decisão final (…)”; (in “Direito Administrativo Geral – Actividade administrativa”, Tomo III, pág. 130).

No mesmo sentido, veja-se também Sérvulo Correia, que vai ao ponto de considerar que a sua preterição conduz sempre à nulidade do acto administrativo praticado por ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos do art. 122°, n.° 2, alínea d), do C.P.A.:

“Parecendo indiscutível a intenção legislativa de atribuição de um direito subjectivo de participação procedimental, cabe agora a interrogação: tratar-se-á ainda de um direito fundamental?
O n.° 1 do artigo 16.° da Constituição encerra uma cláusula aberta ou de atipicidade dos direitos fundamentais: «Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional».
(…)
Acresce que o direito de audiência é um direito de defesa, circunstância que justifica a sua qualificação como «direito de natureza análoga» para efeitos do artigo 17.° da Constituição.
Não podem pois restar dúvidas quanto à natureza do direito de audiência, tal como configurado nos artigos 100.° e seguintes do CPA: é um direito fundamental atípico, com regime análogo, no tocante aos efeitos da sua violação, aos dos direitos, liberdades e garantias consignadas no Título II da Parte I da Constituição.
A ofensa do conteúdo essencial do direito de audiência determina portanto a nulidade do acto principal do procedimento”; (in “O Direito à Informação e os Direitos de Participação dos Particulares”, Escritos de Direito Público, Vol. I, Direito Administrativo (1), págs. 439 a 440).

In casu, diz essencialmente a entidade administrativa agora recorrente que o “recorrido podia prever a decisão administrativa” proferida, pelo que era aquela “audiência” desnecessária, até porque não constituía uma “formalidade essencial”.

Sem embargo do muito respeito por opinião em sentido diverso, não se mostra de acolher a referida argumentação.

Na verdade – e para além de se mostrar de explicitar que a “audiência” em questão deve ocorrer quando estiver “concluída a instrução”, (cfr., o citado art. 93°, n.° 1), evidente sendo também que no caso dos presentes autos esta teve lugar, bastando para tal consultar o “Processo Administrativo” em apenso pela recorrente enviado ao Tribunal de Segunda Instância nos termos do art. 55°, n,° 1 do C.P.A.C., e do qual consta, nomeadamente, um ofício do Juízo de Instrução Criminal datado de 26.10.2018, (com o qual aquele se iniciou, dando conhecimento que em sede dos Autos de Inquérito n.° 11205/2018, 1ª Secção do Ministério Público, ao ora recorrido tinha sido aplicada a medida de coacção de “suspensão do exercício de funções públicas”), dois expedientes do Comissariado Contra a Corrupção, uma Informação elaborada pelo Fundo de Pensões com a referência n.° XXX/UPRES-D/FP/2019, de 03.09.2019, na qual, após 2 pareceres, foi exarada a decisão administrativa em questão, e uma acta de uma reunião do Conselho de Administração do referido Fundo, (cfr., fls. 1 a 11) – apresenta-se-nos de considerar que a aludida afirmação respeitante à “previsibilidade” (do ora recorrido) não passa de um mero “juízo de probabilidade”, em relação ao qual explicitadas (também) não estão as razões da sua assunção.

Nesta conformidade, a única “razão” que se nos afigura plausível está pois relacionada com o facto de se ter a decisão de “cessação de funções” do ora recorrido como um resultado “necessário” da decisão do Mmo Juiz de Instrução Criminal que nos termos do art. 185°, n.° 1, al. a) do C.P.P.M. ao mesmo decretou a medida de coacção de “suspensão do exercício de funções públicas”.

Porém, a questão tem (outros) contornos que importa ponderar.

Com efeito, (e como se salientou no Acórdão recorrido), nos termos do art. 16° da Lei n.° 15/2009:

“1. A comissão de serviço dos titulares de cargos de direcção pode ser dada por finda, durante a sua vigência:
1) Por conveniência de serviço, devidamente fundamentada, nomeadamente com base na não comprovação superveniente da capacidade adequada a garantir a execução das orientações superiormente fixadas ou na não realização dos objectivos previstos;
2) A requerimento do interessado;
3) Quando o titular se veja impedido de exercer funções por mais de 6 meses;
4) Com fundamento em incumprimento do dever de exclusividade, independentemente da responsabilidade disciplinar que ao caso couber;
5) Com fundamento em incumprimento das regras de selecção e recrutamento do pessoal, independentemente da responsabilidade financeira e disciplinar que ao caso couber;
6) Com fundamento em incumprimento das regras relativas às garantias de imparcialidade da Administração Pública, sem prejuízo de outras responsabilidades que ao caso couberem;
7) Com fundamento na prática de infracção disciplinar em que seja aplicada pena de multa ou superior;
8) Por aplicação do disposto no artigo 23.º
2. A comissão de serviço dos titulares de cargos de chefia pode ser dada por finda, durante a sua vigência, por qualquer dos motivos referidos nas alíneas 1) a 7) do número anterior e quando lhes seja atribuída menção de «Satisfaz» na avaliação do respectivo desempenho”; (sub. nosso).

E, tendo presente o estatuído no n.° 1, alínea 3, e n.° 2 do transcrito comando legal, que foram invocados na “decisão” agora em questão, sem esforço se constata que a mesma integra uma (clara) manifestação do exercício de um “poder administrativo discricionário”, não sendo assim a “única solução (possível) a adoptar”, e que, como tal, não tinha que – ou podia não – acontecer; (tenha-se igualmente em conta o n.° 2 do referido art. 185° do C.P.P.M., onde se prescreve que: “A suspensão é comunicada à autoridade competente para decretar a suspensão ou a interdição respectiva”; sub. nosso).

E, então, (não constituindo a “única solução possível”), como considerar a dita decisão administrativa como uma “consequência necessária” (e única) da decretada medida de coacção aplicada para efeitos de a ter como “previsível”, (se a mesma até só veio a ser proferida decorridos cerca de 11 meses de “silêncio” em relação à data da dita aplicação da medida da coacção)?

Como é óbvio, não se olvida que possível também é entender que, após tantos meses de “suspensão de funções”, era de se esperar que a dita comissão de serviço viesse a ser dada por finda…

Porém, tal “perspectiva”, em sede dos presentes autos, não se nos mostra razoável e adequada, e seja como for, claro cremos que é, e importa realçar, que o critério da (mera) previsibilidade do (eventual) sentido de uma decisão não constitui “motivo legal” – como os previstos no art. 97°, al. a) e b) do C.P.A. – para se dispensar (e justificar a não observância de) um “dever jurídico”, como no caso é, precisamente, o de se facultar ao interessado um efectivo direito de se pronunciar, em toda a extensão que entender, sobre a “matéria daquela”, (e que, no caso, como se viu, atento o período de tempo que entretanto decorreu, evidente se apresenta que podia ocorrer).

É também considerado que a dita “audiência” consistia (apenas) numa (mera) “formalidade não essencial”, e assim, “irrelevante”.

Há – certamente – equívoco.

Com efeito, como se sabe, (e como tem sido entendimento firme e pacífico deste Tribunal), a “falta de prévia audiência do interessado” apenas constitui – ou se degrada em – “formalidade não essencial” quando em causa estiver uma decisão proferida no exercício de um “poder vinculado”; (cfr., v.g., e entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 19.12.2018, Proc. n.° 91/2018, de 18.03.2020, Proc. n.° 16/2020, de 22.07.2020, Proc. n.° 54/2020, de 31.07.2020, Proc. n.° 18/2020 e de 14.10.2020, Proc. n.° 124/2020).

E, como se viu, (decididamente), não é o caso dos presentes autos.

*

Por fim, uma última nota.

Poder-se-ia, eventualmente, chamar à colação o estatuído nos art°s 7° e 8°, n.° 2 da “Lei de Bases da Organização Judiciária”, (Lei n.° 9/1999), onde se prescreve que “No cumprimento das suas atribuições, os tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades” e “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”.

Todavia, independentemente do demais, importa ter em conta que as “decisões” em questão – a “judicial”, (do Juiz de Instrução Criminal), e a “administrativa” da entidade ora recorrente – não são “coincidentes”, pois que uma, (a 1ª), determina a “suspensão do exercício da função pública”, constituindo, necessariamente, uma medida meramente cautelar e provisória, com limitações temporais, (cfr., art. 202° do C.P.P.M.), tendo a que decretou a “cessação de funções” alcance e efeitos completamente distintos na situação (profissional e económica) do seu destinatário, não sendo de se olvidar, também, que até mesmo o “processo disciplinar” instaurado a um agente ou funcionário da Administração Pública mantém autonomia em relação ao “processo penal”, (cfr., art. 287° do E.T.A.P.M. – pois que o “ilícito disciplinar” visa, essencialmente, preservar a capacidade funcional do serviço público, e o “ilícito criminal” se destina à defesa dos bens jurídicos essenciais à vida em sociedade), realidade que, mutatis mutandis, não parece que deva deixar de ser adequada e devidamente ponderada e tida em conta na situação dos presentes autos; (sobre a questão, cfr., v.g., Manuel Leal-Henriques in, “Direito Disciplinar de Macau”, C.F.J.J., 2020, pág. 81 e segs.).

Dest’arte, e visto estando que nenhuma censura merece o Acórdão recorrido, adequada se apresenta a sua confirmação.

Decisão

3. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Sem tributação, (dada a isenção).

Registe e notifique.

Macau, aos 21 de Maio de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

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Proc. 20/2021 Pág. 35