Processo nº 1146/2020
(Autos de Recurso Civel e Laboral)
Data do Acórdão: 29 de Abril de 2021
ASSUNTO:
- Impugnação da matéria de facto
SUMÁRIO:
- Em impugnação da matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 1146/2020
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 29 de Abril de 2021
Recorrente: A
Recorridos: B e C
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
B e C, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo que:
1. Seja reconhecido o direito de preferência que a autora tem sobre a fracção autónoma com finalidade residencial sita na Travessa do XX nºs XX e Travessa do XX, nºXX, BR/C, R/C, descrita na Conservatória do Registo Predial, sob o nº8XX0, a fls. XX do livro XX e inscrita na matriz predial da Driecção dos Serviços de Finanças sob o nº7XXX4, bem como seja julgada adquirida pela Autora a quota de 1/2 do direito de propriedade da referida fracção autónoma alienada pelo 1º Réu ao 2º Réu, mediante a celebração de escritura pública de compra e venda; e
2. Seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição da quota de 1/2 do direito de propriedade da supracitada fracção requerido pelo 2º Réu em 12 de Novembro de 2015 junto da Conservatória do Registo Predical, com o número de inscrição 3XXXX8G
Caso não sejam consideradas procedentes as ditas razões, vem a Autora pedir subsidiariamente que:
1. Nos termos do artº 232º do Código Civil, seja declarada nula a escritura celebrada entre os 1º e 2º Réus, em 20 de Outubro de 2015, no Cartório Notarial das Ilhas, tendo o 1º Réu, mediante a escritura, alienado ao 2º Réu a quota de 1/2 do direito de propriedade da supracitada fracção;
2. Seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição da quota de 1/2 do direito de propriedade da supracitada fracção requerido pelo 2º Réu em 12 de Novembro de 2015 junto da Conservatória do Registo Predical, com o número de inscrição 3XXXX8G.
Proferida sentença, foi a acção julgada improcedente e os Réus absolvidos dos pedidos.
Não se conformando com a decisão proferida vem a Autora interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões e pedido:
1. Salvo o devido respeito, a recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo que julgou improcedente o pedido formulado pela autora relativo à nulidade da transacção da fracção em causa, devido à simulação (vd. fls. 163 e 163v dos autos).
2. A recorrente considera que a decisão do Tribunal a quo incorreu em erro por ter julgado incorrectamente a matéria de facto (vd. art.º 599.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Civil.
3. Nos autos, segundo as declarações prestadas pelas partes e depoimentos prestados pelas testemunhas, bem como provas documentos constantes dos autos, devem ser julgados provados os pontos 1 a 3 e 5 dos factos por provar.
4. Segundo as alegações feitas pelas partes na audiência de julgamento (vd. decisão da matéria de factos nos autos), tendo o 1.º réu confessado que, na qualidade do titular da quota de 1/2 do direito de propriedade da fracção em causa, não tinha intenção de vender a sua quota, mas a pedido de E a quem o 1.º réu pediu dinheiro emprestado, o 1.º réu celebrou com E a procuração sobre a quota de 1/2 do direito de propriedade indicada no facto assente D, para servir de garantia de liquidação da dívida.
5. Uma vez que a celebração da procuração feita pelo 1.º réu no princípio só tinha como finalidade a liquidação da dívida, a venda da fracção em causa não deve incluir no âmbito da procuração, E não devia vender a fracção em causa mediante tal procuração.
6. E, antes de celebrar a escritura pública de compra e venda da fracção em causa, também não obteve o consentimento do 1.º réu, mas sim, após ter celebrado pessoalmente a escritura pública de compra e venda da fracção em causa, nunca entregou ao 1.º réu o valor de HK$1.500.000 que o 2.º réu alegou ter pago.
7. Razão por que E sabia bem que o 1.º réu não tinha intenção de vender a fracção em causa, e pelo que nunca E comunicou ao 1.º réu a venda da fracção em causa.
8. Evidentemente, o acto praticado por E de ter vendido a fracção em causa é contrário à finalidade pela qual foi celebrada a procuração entre ele e o 1.º réu no princípio, tal acto violou as obrigações do mandatário previstas no art.º 1087.º, als. a), c) e e) do Código Civil, reunindo o abuso de direito previsto nos art.ºs 326.º e 262.º do mesmo código.
9. Por outro lado, segundo as alegações feitas pelas partes na audiência de julgamento (vd. decisão da matéria de factos nos autos), tendo o 2.º réu também confessado que não se mudou para a fracção em causa, e através dos depoimentos prestados pelas testemunhas da autora, foi confirmado que o 1.º réu ainda detinha a chave e geria a fracção em causa (vd. factos provados n.º4).
10. Justamente foi devido a que E também não tinha a verdadeira intenção de vender a quota de 1/2 do direito de propriedade da fracção em causa, razão pela qual não exigiu ao 1.º réu que entregasse a chave da fracção.
11. Através da procuração relativa à fracção em causa constante de fls. 14 dos autos, da escritura pública de compra e venda da fracção constante de fls. 19, da procuração constante de fls. 42 pela qual o 2.º réu constitui advogados, bem como da declaração de identidade prestada por E no CPSP, as quais mostram que os endereços de contacto declarados por E e pelo 2.º réu são igualmente o local sito em Macau, na Rua de XX, n.ºXX, Centro Comercial XX, XX.º andar XX, daí podemos verificar que E tem uma relação muito próxima com o 2.º réu.
12. Evidentemente, o 2.º réu, na celebração da escritura pública com E, já soube que entre E e o 1.º réu existe uma relação de dívida, bem como o âmbito de poderes da procuração acordado entre o 1.º réu e E (garantia de liquidação da dívida), razão pela qual nunca o 2.º réu procurou saber junto do 1.º réu se tinha intenção de vender a fracção e qual o preço da venda.
13. Nos autos, E não celebrou com o 2.º réu o contrato-promessa de compra e venda da fracção em causa, mas sim optou por celebrar directamente a escritura pública.
14. Segundo os cheques e extractos mensais do banco, a fls. 55 a 58 dos autos, os dois cheques com montantes de HK500.000 e de HK$1.000.000, respectivamente foram emitidos e pagos pela testemunha F (esposa do 2.º réu) em 24 de Setembro e 30 de Outubro de 2015, mas não foram pagos pelo 2.º réu, altura em que os dois cheques foram emitidos a favor de E, segundo as supracitadas provas documentais, só ficou provado que F pagou a E HK$500.000 e HK$1.000.000, respectivamente, e além disso, nos autos não há prova documental que E tenha entregado o valor da fracção ao 1.º réu.
15. Evidentemente, todas as circunstâncias acima indicadas são diferentes das da transação normal, em particular, o 2.º réu não pagou ao 1.º réu o valor da fracção.
16. Tendo em consideração que o 2.º réu já sabia que o 1.º réu e E não tinham verdadeira intenção de vender a quota de 1/2 do direito de propriedade da fracção em causa, o 2.º réu ainda celebrou a escritura pública da fracção com E que tinha procuração, bem como o 2.º réu não pagou ao 1.º réu o valor da fracção em causa, pelo que o 2.º réu também não tinha verdadeira intenção de adquirir a quota de 1/2 do direito de propriedade da fracção.
17. E E, em representação do 1.º réu, celebrou com o 2.º réu a escritura pública da fracção em causa, a fim de enganar a autora e prejudicar os interesses dela, fazendo com que a autora tivesse de exercer o seu direito de preferência por um valor irrazoável do mercado.
18. Tendo em consideração que o Tribunal a quo incorreu em vício de julgamento incorrecto, nos termos do art.º 629.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Civil, deve o Tribunal de hierarquia superior, segundo as alegações prestadas pelas partes, os depoimentos prestados pelas testemunhas da autora, bem como as provas documentais constantes dos autos, alterar e julgar provados os factos por provar n.ºs 1 a 3 e 5 na decisão.
19. E segundo os factos assentes nos autos, dar como provado que o negócio jurídico praticado por E, em representação do 1.º réu, de ter celebrado com o 2.º réu a escritura pública da fracção em causa, reúne a simulação prevista no art.º 232.º do Código Civil, de modo a julgar nula a respectiva transacção simulada e ordenar o cancelamento do registo de aquisição da quota de 1/2 do direito de propriedade da supracitada fracção requerido pelo 2.º réu em 12 de Novembro de 2015 junto da Conservatória do Registo Predical, com o número de inscrição 3XXXX8G.
Pelo acima exposto e contando com o douto entendimento de V. Ex.as, deve ser julgada procedente a motivação do recurso e consequentemente deve ser alterada a decisão do Tribunal a quo e julgada nula a transação da fracção em causa devido à simulação, bem como ordenado o cancelamento do registo de aquisição da quota de 1/2 do direito de propriedade da supracitada fracção requerido pelo 2.º réu em 12 de Novembro de 2015 junto da Conservatória do Registo Predical, com o número de inscrição 3XXXX8G.
Contra-alegando veio o Recorrido C pugnar para que fosse negado provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:
Factos assentes:
- Mediante escritura pública de compra e venda realizada no dia 23 de Fevereiro de 1999, a A. e o 1.º R. adquiriram a fracção autónoma BR/C do R/C, para fim habitacional, ficando cada um deles com uma quota de 1/2 do direito de propriedade, do edifício sito na Trav. do XX, n.ºXX e Trav. do XX, n.ºXX, sendo o preço de MOP180.000,00, fracção descrita na CRP sob o n.º8XX0. (alínea A) dos factos assentes)
- Em 1 de Março de 1999, A. E o 1.º R. requereram o registo de aquisição da referida fracção junto da RRP e que ficou inscrita sob o n.º4XX7G. (alínea B) dos factos assentes)
- Em 1 de Junho de 2015, o 1.º R. assinou uma procuração através da qual conferiu poderes a E para vender a sua quota de 1/2 do direito de propriedade da fracção supra referida e para receber o preço da fracção, tudo conforme doc.2 junto com a p.i. e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea C) dos factos assentes)
- Mediante a celebração de escritura pública de compra e venda realizada no dia 30 de Outubro de 2015, E, na qualidade supra referida, declarou ter vendido a quota de 1/2 do direito de propriedade da fracção mencionada ao 2.º R., tudo conforme doc.3 junto com a p.i. e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea D) dos factos assentes)
- Em 12 de Novembro de 2015, o 2.º R. requereu o registo da referida aquisição junto da CRP, tendo a mesma ficado inscrita sob o n.º303058G. (alínea E) dos factos assentes).
- O 1.º R. nunca comunicou à A. sobre o plano de compra e venda da sua quota de 1/2 supra identificada, nem das condições do contrato, incluindo o preço da compra e venda. (alínea F) dos factos assentes)
- A A. apenas teve conhecimento da aludida venda no dia 26 de Outubro de 2017. (alínea G) dos factos assentes)
- A A não procedeu ao depósito autónoma à ordem destes autos de qualquer valor. (alíena H) dos factos assentes)
Base instrutória:
- O 1.º R. continua a ter chave da fracção e o 2.º R. nunca para se mudou. (resposta ao quesito 4.º da base instrutória)
b) Do Direito
Nas conclusões de recurso insurge-se a Autora contra a resposta dada pelo Tribunal a quo aos quesitos 1º a 3º e 5º, alegando que segundo as declarações prestadas pelas testemunhas e os documentos constantes dos autos haviam de ter sido dados por provados.
Mais alega que o 1º Réu confessou que não tinha intenção de vender a sua metade na fracção autónoma a que respeitam os autos mas que outorgou a procuração a E para servir de garantia ao pagamento de uma dívida que tinha para com este.
Ora, contrariamente ao que a Autora alega o passar uma procuração com poderes para vender a alguém para garantia e eventual pagamento de uma dívida que se tem para com essa pessoa pressupõe precisamente que se assume e autoriza a venda do imóvel caso a divida não seja paga.
Poderia eventualmente haver abuso de poderes, mas nem tal se alega, nem o âmbito para tal seria este processo mas sim um outro entre o 1º Réu e o mandatário que nem aqui é parte.
Por outro lado, tendo o 1º Réu deposto á matéria dos quesitos 1º a 5º da base instrutória, o certo é que da acta da audiência de julgamento o que consta é que não houve confissão dos factos.
Pelo que, nunca o tribunal “a quo” poderia ter dado o que fosse como provado com base na confissão do 1º Réu uma vez que, este nada confessou, sendo manifesta a falta de fundamento do recurso nesta parte.
Na sua argumentação invoca a Recorrente que apenas resulta que a esposa do 2º Réu entregou dois cheques no valor global da compra ao mandatário do 1º Réu, não se demonstrando que o dinheiro haja sido entregue ao 1º Réu. Ora, para que haja pagamento o valor da venda não precisa de ser entregue ao vendedor podendo perfeitamente ficar na posse do mandatário se essas foram as instruções do mandante - quiçá para o pagamento de uma dívida – pelo que, também esta argumentação, tal não é convincente para extrair qualquer conclusão em sentido diverso da adoptada pelo tribunal a quo.
Em tudo o mais as alegações e conclusões do recurso versam sobre o entendimento que a Autora tem do que haveria de ter sido dado como provado e não foi, contudo, apesar de genericamente remeter para os depoimentos das testemunhas e documentos juntos, não indica quais as passagens das gravações dos depoimentos, nem concretiza qual o documento, que impunham uma decisão diversa da recorrida, o que de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso.
Em sentido idêntico vejam-se Acórdãos deste tribunal:
- De 09.05.2019, processo nº 240/2019
«Assunto
- Impugnação da matéria de facto
- Prova documental e negócio simulado
Sumário
I – Em matéria de impugnação de matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
II - para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.».
- De 24.10.2019, processo nº 587/2019:
«Assunto
- Negócios simulados e elementos probatórios
Sumário
I – Em sede de impugnação de matéria de facto no recurso, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. É em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.».
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 29 de Abril de 2021
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Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
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Lai Kin Hong
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Fong Man Chong
1146/2020 CÍVEL 4