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Processo nº 81/2021 Data: 03.06.2021
(Autos de recurso relativo ao direito de reunião e manifestação)

Assuntos : “Direito de reunião e manifestação”.
“Direito fundamental”.
Limites e legalidade no seu exercício.



SUMÁRIO

1. O “direito de reunião e manifestação” constitui um “direito fundamental” consagrado no art. 27° da Lei Básica da R.A.E.M. e regulamentado pela Lei n.° 2/93/M, (com as alterações introduzidas pela Lei n.° 11/2018).

2. Os “direitos fundamentais” podem ser entendidos como “direitos inerentes à pessoa humana e essenciais à sua vida (digna)”.

São direitos “irrenunciáveis”, “inalienáveis”, “invioláveis”, “imprescritíveis”, “universais”, “concorrentes” (na medida em que podem incidir em concomitância a outros direitos fundamentais), e “complementares”, pois que devem ser interpretados em consonância e em conjunto com o sistema jurídico.

3. O direito de “reunião” e o de “manifestação” são, no fundo, espécies do mesmo género.

Uma “reunião”, constitui uma aglomeração de pessoas, com duração temporária, não institucionalizada, e dirigida a fins livremente escolhidos em comum, (assim se distinguindo de um ajuntamento ocasional, de uma associação ou de uma assembleia), mostrando-se de considerar uma “manifestação” como uma “reunião qualificada”, que se caracteriza pela expressão de uma mensagem dirigida, ou contra terceiros, em local público, e segundo uma vontade e consciência assumida por todos os seus participantes.

4. A todo o “direito” – por mais “fundamental” que seja – corresponde, necessariamente, uma “responsabilidade no seu exercício”, (inexistindo “direitos absolutos”).

Doutra forma, (absolutamente) inútil seria (v.g.) o estatuído no art. 326° do C.C.M. sobre o “abuso do direito”, sobre a “colisão de direitos”, “acção directa”, “legítima defesa”, “estado de necessidade” e sobre as “causas que excluem a ilicitude e a culpa” no C.P.M..

5. A aferição da legalidade do exercício de um direito deve pautar-se por critérios de objectividade na apreciação da facticidade que lhe está subjacente e atenta análise do seu regime legal.

6. Em caso de embate ou colisão entre a “liberdade de expressão” e a “necessidade de protecção à honra”, (ou outro direito), cabe verificar se a livre expressão que, no caso, atingiu a honra (ou dignidade) que a terceiro era devida, foi “necessária”, “moderada”, “razoável” e “proporcional”, e inexistindo um necessário “equilíbrio”, imperativa é a conclusão do excesso daquela.

Quando o suposto exercício do direito de livre expressão, reunião e manifestação dá lugar ao que se denomina de “fighting words”, ou seja, puras “agressões” e “insultos” (verbais), publicamente proferidas ou exibidas com clara intenção de ofender, chocar, atingir, diminuir, humilhar, apoucar ou achincalhar, claro se apresenta que (aquelas) não podem ser aceites, sob pena de se ter de admitir “abusos e ofensas sem limites”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 81/2021
(Autos de recurso relativo ao direito de reunião e manifestação)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:



Relatório

1. A “UNIÃO DE MACAU PARA O DESENVOLVIMENTO DA DEMOCRACIA”, (“澳門民主發展聯委會”), representada por AU KAM SAN (區錦新), com os restantes sinais dos autos, traz o presente recurso a este Tribunal de Última Instância, pedindo a anulação do despacho do COMANDANTE SUBST. DO CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA datado de 25.05.2021 que não permitiu a “reunião” que a ora recorrente pretendia realizar no próximo dia 04 de Junho.

Para cabal explicitação das razões da decisão recorrida, passa-se a transcrever o seu teor:

“ Governo da Região Administrativa Especial de Macau
CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Despacho
N.º 56/DOC/2021
Au Kam San, da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia, apresentou em 17 de Maio de 2021, o seguinte aviso prévio à Corporação sobre uma reunião ou manifestação (recibo de aviso n.º 5964/2021/CZ):
Tema da reunião: Reunião com velas de 4 de Junho
Local de realização: Largo do Senado
Data de realização: 4 de Junho de 2021
Horário de realização: 18H00 – 23H00
N.º de participantes previsto: 100
Artigos ou instrumentos que serão usados na actividade: aparelhos sonoros, luzes para iluminação, ecrã de projecção, 10 painéis de 3 pés por 5 pés.
Relativamente ao supramencionado aviso prévio, a resposta desta Corporação à associação promotora é o seguinte:
I. Análise do conteúdo constante no aviso prévio:
1. Na RAEM, a reunião pacífica e o direito de manifestação são estritamente protegidos pelas convenções internacionais, pela Lei Básica e pela lei local de Macau; no entanto, esses direitos e liberdades não são absolutos. De acordo com as disposições da referida legislação, se o objectivo da reunião revestir alguma forma de ilegalidade ou se for susceptível de causar prejuízo para a segurança nacional ou segurança pública, ordem pública, saúde pública, moralidade ou os direitos e as liberdades de outrem, o exercício dos referidos direitos deve ser limitado nos termos da lei.
2. Situação das anteriores “Reuniões de 4 de Junho”
2.1 Desde o “Incidente de 4 de Junho”, em 1989, a União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia organiza anualmente, em Maio, a “Exposição de Fotografias do Movimento Democrático de 1989 ”, em vários locais de Macau, com a duração de cerca de um mês, e também realiza em cada ano, na noite de 4 de Junho, a “Reunião com velas de 4 de Junho” (doravante designada por “Reunião de 4 de Junho”).
2.2 Olhando retrospectivamente para as situações dos últimos cinco anos, como exemplo, e exceptuando a não permissão da reunião em 2020 devido à prevenção e controlo da epidemia de pneumonia causada pelo novo tipo de coronavírus, a União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia escolha, anualmente, a noite do dia 4 de Junho, para realizar a “Reunião de 4 de Junho” no Largo do Senado, durante a qual, mostra slogans, designadamente, “Não se esqueça o dia 4 de Junho”, “Mártires da democracia são imortais, Movimento Democrático de 1989 estão com o espírito nobre jamais morrerá”, “Reivindicação do Movimento Democrático de 1989, Construção da China democrática, Reunião com velas de 4 de Junho China.Macau”, “Após 30 anos do Acontecimento de 4 de Junho ainda não há justiça”, “O Governo Comunista prejudica o país e a população”, “Basta ouvir a ditadura do Partido Comunista da China para ficar amedrontado”, “Fim do unipartidarismo! Acaba com a perseguição aos direitos humanos da China”, “Protesto contra o regime do terror branco do Partido Comunista, O desabrochar do jasmim, A queda da ditadura” (Vide as fotos 1 a 5 do anexo), realizando a cerimónia de silêncio e passando filmes, pelo que todas as vezes que se realiza a “Reunião de 4 de Junho” atrai sempre centenas de participantes.
2.3 Os temas das anteriores exposições de fotografias e da “Reunião de 4 de Junho” são idênticos, as relevantes palavras, fotografias e slogans abrangeram o incitamento de subversão do regime e derrubamento da constituição, tais como, “Efectivar a responsabilidade do massacre”, “Fim da perseguição política”, “Fim do unipartidarismo”, Apelo à “Revolução do Jasmim” e “Carta 08”. (Vide as fotos 7 a 9 do anexo)
3. Análise das questões jurídicas sobre a “Reunião de 4 de Junho”:
3.1. A “Reunião de 4 de Junho” tem a mesma natureza ilegal:
A “Reunião de 4 de Junho” realiza-se em determinado período de cada ano, e os conteúdos promocionais, como slogans e lemas, entre outros, desafiam a autoridade do Governo Central e têm obviamente a natureza de provocação e os elementos difamatórios, actos estes que violaram as respectivas disposições do Código Penal e o princípio da boa-fé consagrado no Código do Procedimento Administrativo. Agora, esta Corporação recebeu o aviso prévio desta reunião, o qual tem a mesma natureza ilegal nos fins como os das anteriores "reuniões de 4 de Junho".
3.2. A “Reunião de 4 de Junho” violou as respectivas disposições do Código Penal:
3.2.1. O Governo Central já tem uma definição clara sobre o incidente de “4 de Junho”: Da “Deliberação do Comité Permanente da Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China sobre impedir o distúrbio e apaziguar a revolta contra-revolução”, adoptada em 6 de Julho de 1989, pela Oitava Sessão do Comité Permanente da Sétima Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China, constam que: “Muito poucas pessoas, utilizando o movimento contestatário estudantil, provocaram em Pequim e em alguns locais um distúrbio político planeado, organizado e premeditado, o qual se tornou em Pequim uma revolta de contra-revolução. Os objectivos delas são derrubar a liderança do Partido Comunista da China e o Governo Popular Central da República Popular da China, e subverter a República Popular da China com socialismo...”. E no “Relatório da situação sobre impedir o distúrbio e apaziguar a revolta contra- revolução”, publicado no “Boletim do Conselho de Estado”, n.° 11, de 1989, já se esclareceu em concreto as situações reais do incidente de “4 de Junho”. Pelos vistos, o Governo Central já definiu a natureza do incidente de “4 de Junho”, esclarecendo os factos.
3.2.2. O artigo 181.° - Crime de Ofensa a pessoa colectiva que exerça autoridade pública, e o artigo 177.° - Crime de Publicidade e calúnia, ambos do Código Penal: No âmbito de “Um País, dois Sistemas”, o Governo Central goza de plena governação sobre a Região Administrativa Especial de Macau, pelo que o sujeito do poder da autoridade pública inclui-se certamente o Governo Central; nas reuniões de 4 de Junho anteriores foram usados imagens e textos de carácter incitável, como " massacrar a cidade ", "perseguição", "o Governo Comunista prejudica o país e a população", "o regime do terror branco do partido comunista da China", "milhares de cidadãos e estudantes foram massacrados", "advogado - profissão mais perigosa da China" e assim por diante (vide as imagens 4 a 7 e 10 anexadas) para fazer uma sensibilização falsa que contraria a verdade, bem como a deliberação e qualificação já feitas pelo Governo Central sobre o incidente de 4 de Junho, o que prejudicou a reputação, o prestígio e a credibilidade do Governo Central. Além disso, a respectiva lesão foi feita mediante reunião em local público para facilitar a sua divulgação, sendo assim a “reunião de 4 de Junho” se encontra violado as respectivas disposições do artigo 181.º e do artigo 177.º do Código Penal.
3.2.3. O crime do incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido do artigo 298.º do Código Penal: “Um País, dois Sistemas” é um regime básico do Governo Central para governar a Região Administrativa Especial de Macau, "Um País" é o pressuposto e a base de Dois Sistemas", "Um País" refere a República Popular da China, opor-se a "Um País" é uma negação de "Um País, dois Sistemas". Nas anteriores “Reuniões de 4 de Junho”, utilizaram-se reuniões, discursos, slogans, exposição de fotografias e os média, entre outras formas de divulgação social, para apoiar e elogiar, publicamente, o comportamento de distúrbio de um número muito reduzido de pessoas, a incitação da subversão contra a liderança do Partido Comunista Chinês, o estímulo à mudança da natureza do País, e até mesmo a defesa da “Revolução de Jasmim”, a divulgação das informações de “Não se esqueça do 4 de Junho, lute até ao fim”, “O desabrochar do jasmim faz temer Pequim”, “A reivindicação da revolução de 4 de Junho ainda não teve sucesso”, “A queda da ditadura”, etc. (vide as fotografias de 1 a 6 do anexo), e isso constitui forte impacto e dano para o princípio de “Um país, Dois sistemas” e um acto previsto e punível pelo artigo 298.° do Código Penal.
3.3 A “Reunião de 4 de Junho” viola o princípio de boa fé do Código de Procedimento Administrativo:
Nos termos do artigo 8.° do Código de Procedimento Administrativo, tanto a Autoridade Administrativa como os particulares devem agir de boa fé. Na realização dos respectivos encontros em Macau, impõe a boa fé que se salvaguarde o princípio de “Um País, Dois Sistemas”, que inclui a salvaguarda dos interesses do País e a salvaguarda da relação harmoniosa entre o Governo Central e a Região Especial. No entanto, a “Reunião de 4 de Junho”, sem assentar em factos objectivos, usou informações falsas e extremamente negativas, tais como “massacrar a cidade” e “perseguição”, etc., para confundir a comunidade, propagar rumores e calúnias relativos ao Governo Central, incitar à subversão do regime, perturbar a atmosfera harmoniosa da sociedade e induzir em erro aos cidadãos, propiciando a ocorrência de disputas e confrontos entre os residentes do Continente e os residentes de Macau, bem como entre os próprios residentes de Macau, o que prejudica os interesses do País e as relações entre o Governo Central e Macau. Além disso, nos termos do artigo 1.° da Constituição: “A República Popular da China é um Estado socialista subordinado à ditadura democrático-popular da classe operária e assente na aliança dos operários e camponeses. O sistema socialista é o sistema básico da República Popular da China. A liderança do Partido Comunista Chinês é a característica mais essencial do socialismo chinês. É proibida a sabotagem do sistema socialista por qualquer organização ou indivíduo.” Sob o princípio “Um país, Dois sistemas”, mesmo que o sistema socialista não seja aplicável em Macau, é necessário respeitar o sistema do país definido pela Constituição. A “Reunião de 4 de Junho” exige “o fim do unipartidarismo”, cujo objectivo é obviamente provocatório e viola o princípio da boa fé estipulado no artigo 8.º do Código do Procedimento Administrativo.
3.4 A decisão de não permissão da “Reunião de 4 de Junho” corresponde aos princípios da legalidade e da proporcionalidade:
3.4.1 Correspondência ao princípio da legalidade: Dado que o objectivo da “Reunião de 4 de Junho” viola disposições do “Código Penal” e o princípio da boa fé, o CPSP pode, nos termos do artigo 2.º (não são permitidas as reuniões ou manifestações para fins contrários à lei) da Lei n.º 2/93/M - “Direito de Reunião e de Manifestação”, tomar uma decisão de não permissão da “Reunião de 4 de Junho”.
3.4.2 Correspondência ao princípio da proporcionalidade: O bem jurídico prejudicado pela “Reunião de 4 de Junho” é a soberania e segurança do país e o seu desenvolvimento, o objecto prejudicado é a ordem constitucional. Portanto, uma vez que os interesses centrais do país e a ordem constitucional são o bem jurídico mais importante que deve ser defendido, a decisão de não permissão da “Reunião de 4 de Junho” tomada pelo CPSP corresponde ao princípio da proporcionalidade.
3.4.3 A decisão de não permissão da “Reunião de 4 de Junho” não prejudica o exercício do direito da crítica: o exercício do direito da crítica deve basear-se em factos objectivos, mas o tema da “Reunião de 4 de Junho” desvia-se do âmbito do exercício deste direito, tendo intenção de divulgação ilegal e ampla das mensagens falsas, sem uma base factual objectiva e abrangente, através da organização de actividades colectivas, cujo objectivo é obviamente da má fé; assim, a sua natureza é diferente da liberdade de expressão ou direito da crítica através de opinião política puramente expressa por meio verbal ou escrito.
4. No âmbito da prevenção e combate à epidemia:
4.1 Recentemente, em Hong Kong, região que se situa próxima de Macau, na sua comunidade registou-se caso confirmado de contaminação local em que envolve a nova variação do coronavírus, e a situação dos casos confirmados em trabalhadores não residentes levou a que o Governo de Hong Kong exigisse a todos os trabalhadores não residentes de Hong Kong que não tenham concluído ainda a vacinação, a realização obrigatória do respectivo teste, pois a possibilidade da penetração da nova variação do coronavírus nos bairros comunitários não pode ser ignorada; e a situação epidémica no país vizinho da China, na Índia, é ainda mais preocupante, tendo batido repetidamente o recorde do maior número de novos casos confirmados em um único dia; o mais preocupante é que a nova variante do coronavírus encontrada na Índia já se propagou para os países vizinhos, como o Nepal, e até na China já se detectou a nova variante do coronavírus da Índia;
4.2 A China é considerada um dos melhores países do mundo no combate e prevenção da epidemia, e em situação de nenhum caso confirmado de infecção local durante 22 dias seguidos, mas, nas províncias de Anhui e Liaoning surgiram sucessivamente casos confirmados de infecção local. O especialista-chefe, Wu Zunyou, do Centro para a Prevenção e Controlo de Doença da China, afirmou que, segundo a apreciação da relação de transmissão epidemiológica existente, os novos surtos na China continental foram causados por pessoas ou materiais importados do exterior. E nas proximidades de Macau, no distrito de Liwan da cidade de Cantão, recentemente (23 de Maio) foi notificado 1 caso confirmado da nova pneumonia coronária importado do exterior, o seu vírus é uma nova variação do coronavírus que apareceu na Índia, e não se exclui a hipótese de que a infecção ocasional tenha sido causada por exposição acidental. No entanto, sob tais medidas estritas de prevenção epidémica, é ainda difícil de bloquear todos os casos importados possíveis, daí que se pode ver que a nova onda do coronavírus é mais oculta e apresenta maior grau de risco;
4.3 Como se referiu acima, na sequência do aparecimento dos casos confirmados locais, nas províncias de Anhui, Liaoning e Guangdong, até ao dia 23 de Maio de 2021, 7 locais da província de Anhui, 15 locais da província de Liaoning e 1 local da província de Guangdong foram listados como áreas de risco médio, onde foram já activadas as medidas de teste de ácido nucleico em grande escala e de controlo da mobilidade de pessoas, sendo necessário suspender as aulas de escolas e o funcionamento dos hospitais envolvidos na luta contra a epidemia.
4.4 Em Macau, verificou-se recentemente que um indivíduo proveniente do Nepal e que regressou a Macau, durante o período de observação médica, foi submetido, sucessivamente, a 3 testes de ácido nucleico para COVID-19 e testes de anticorpo, cujos resultados foram todos negativos. Mais tarde, no dia 16 de Maio, o referido indivíduo obteve um resultado fracamente positivo ao novo teste de ácido nucleico. Por outro lado, um residente de Macau, depois de ter  recebido duas doses da vacina contra a COVID-19, viajou para fora de Macau, e ao entrar em Macau no dia 19 de Maio, foi submetido ao teste de ácido nucleico para COVID-19, cujo resultado foi negativo, porém, o resultado do teste de anticorpo para COVID-19 foi positivo, o que fez com que se tivesse registado, em Macau, um aumento de 2 casos confirmados de pneumonia causada pelo novo tipo de coronavírus num curto período de tempo, perfazendo um total de 51 casos. Por outro lado, o Director dos Serviços de Saúde, Lo Iek Long, exprimiu que: "Neste momento, a situação da pandemia em várias locais do mundo ainda é grave e houve ainda ressurgimento de epidemia nas regiões vizinhas. Ocorreu um surto epidémico em Taiwan e casos confirmados na comunidade em Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e outros locais. Apelando a todos os sectores, instituições, organizações e cidadãos da comunidade de Macau para não relaxarem e executando com rigor as diversas medidas de prevenção epidémica. Uma vez houver caso confirmado na comunidade em Macau, afectará para além da vida quotidiana dos cidadãos, ainda da recuperação económica e até da facilidade dada à passagem fronteiriça para o Interior da China";
4.5 De acordo com os dados fornecidos no aviso prévio pela associação promotora, a qual pretende organizar uma reunião/manifestação, no Largo do Senado, com 100 participantes, mediante utilização de aparelhos sonoros, luzes para iluminação, ecrã de projecção, 10 painéis de 3 pés por 5 pés, etc. os quais irão ocupar um determinado espaço público;
4.6 Recentemente, registou-se um aumento significativo do fluxo de pessoas nos principais pontos turísticos, como as Ruínas de São Paulo e o Largo do Senado, e prevê-se que, com o aumento do número de visitantes de Macau, o fluxo de pessoas nessas zonas venha a aumentar. Caso se realizem reuniões e manifestações nessas zonas, irá atrair um grande número de residentes e turistas o observarem no espaço limitado junto do Largo do Senado, sendo imprevisíveis e indetermináveis a densidade e o movimento do fluxo de pessoas;
4.7 Nas actividades de reunião, caso se encontrem os participantes ou espectadores nas reuniões que são infectados pelo novo tipo de coronavírus ou até por suas variantes, a concentração irá trazer um alto risco de propagação, pois, uma vez que o vírus se espalhe, será muito difícil encontrar as pessoas infectadas por vírus e as pessoas que estiveram em contacto próximo, e em seguida, até provocar uma propagação de grande escala na comunidade, o que poderá causar prejuízos graves para a saúde pública e a segurança pública de Macau, resultando na medida de fechamento de zonas para realizar exames, medidas de restrição da mobilidade de pessoas e até medida de interrupção do alívio das restrições para a passagem migratória de Zhuhai e Macau; tudo isto irá causar impactos graves na economia, na vida da população e nos cuidados de saúde, entre outros, cujas consequências serão suportadas por toda a população de Macau;
4.8 Tendo em conta a imprevisibilidade e a incerteza do número de participantes na actividade de reunião, e a fim de obter opinião profissional sobre a prevenção epidémica, esta Corporação convidou os representantes dos Serviços de Saúde e da associação promotora para uma reunião nesta Corporação em 24 de Maio de 2021, cerca das 10H30. Na reunião, os representantes dos Serviços de Saúde e da associação promotora efectuaram abordagem acerca das medidas de prevenção epidémica durante a actividade, referido pelos representantes dos Serviços de Saúde, para evitar a transmissão da pneumonia causada pelo novo tipo de coronavírus durante o evento, a associação do evento é obrigado a optar diversas medidas no sentido de reduzir o risco de transmissão do novo tipo de coronavírus, em particular: 1) controlo rigoroso de número de participantes no evento; 2) garantir que os participantes não se encontram com febre ou sintomas respiratórios; 3) todos os participantes devem usar máscara durante todo o evento; 4) durante o evento, os participantes devem manter pelo menos 1 metro de distância uns dos outros e caso, não possam manter a mencionada distância, devem apresentar o relatório de resultado negativo do teste de ácido nucleico de COVID-19 que se reporte aos últimos sete dias; 5) evitar concentrações de curiosos; 6) para garantir que os participantes se mantenham, pelo menos, a um metro de distância durante a sua estadia num local fixo, durante o planeamento, deve reservar para cada pessoa um espaço médio de, pelo menos, dois metros quadrados;
4.9 Na reunião, os representantes dos Serviços de Saúde ouviram o promotor como garante que todos os participantes podem cumprir as exigências de controlo contra epidemia. Depois de ouvir a resposta da organização promotora, os representantes dos Serviços de Saúde avaliaram-na, de forma profissional, e consideraram que o promotor não conseguiria garantir que, na pretendida actividade de reunião, sejam satisfeitas as devidas exigências de controlo contra a epidemia.
4.10 Nos termos do artigo 3.º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, na prossecução dos fins de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”, as pessoas e as entidades públicas ou privadas têm o dever de, nos termos legais, colaborar com as entidades competentes bem como cumprir as ordens e orientações por elas emitidas; se esta Corporação permitir a realização desta actividade de reunião e manifestação quando a organização promotora seja incapaz de satisfazer as exigências das medidas de controlo contra a epidemia dos Serviços de Saúde, irá violar a disposição do artigo 3.º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis; nesta circunstância, se a organização promotora continuar a insistir na realização da actividade de reunião e manifestação, irá violar também a referida disposição legal.
II. Decisão desta Corporação:
1. Pelo exposto, dado que a “Reunião de 4 de Junho” está ferida de ilegalidade conforme analisado no ponto 1 e é incompatível com o disposto no artigo 3.º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, nos termos do artigo 2.° da Lei 2/93/M, de 17 de Maio — Direito de Reunião e de Manifestação (doravante designado por Lei do Direito de Reunião e de Manifestação), alterado pela Lei n.° 11/2018, esta Corporação tomou uma decisão de não permissão da pretendida actividade de reunião e manifestação.
2. Aqueles que organizarem reuniões ou manifestações contrariando o presente despacho incorrerão no crime de desobediência qualificada, nos termos do Artigo 14.° da Lei do “Direito de Reunião e de Manifestação”.
III. A organização promotora pode interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, nos termos do n.° 12 da Lei do “Direito de Reunião e de Manifestação”.
O Comandante, substituto
(…)”; (cfr., fls. 6 a 17 e 103 a 122 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Na petição que deu início ao presente recurso – e que deu entrada na Secretaria deste Tribunal no dia 27.05 – alega a recorrente o que segue:

“Eu, Au Kam San (區錦新), sou representante legal da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia. No dia 17 de Maio do ano corrente, a nossa União avisou, nos termos do art.º 5.º da Lei n.º 2/93/M e por escrito, o Corpo de Polícia de Segurança Pública que pretendeu realizar reunião com velas na noite do dia 4 de Junho deste ano, no Largo do Senado. Depois, no dia 25 de Maio, a nossa União foi notificada do Despacho do CPSP n.º 56/DOC/2021, pelo qual o Comandante do CPSP “tomou decisão no sentido de não permitir a realização da actividade de reunião e manifestação requerida”, com fundamento em que “a reunião de 4 de Junho padece da ilegalidade referida no ponto I – Análise, e não está conforme com o disposto no art.º 3.º da Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”.
A nossa União entende que a decisão da Polícia é absurda e irrazoável, pelo que decide interpor recurso para o TUI nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, com os seguintes fundamentos:
   I. A Polícia não permite a realização da reunião requerida pela nossa União, com fundamento em que a reunião com velas de 4 de Junho é ilegal, até viola os artigos 177.º, 181.º e 298.º do CPM, bem como o princípio da boa fé previsto no CPA. Ao mesmo tempo, a respectiva reunião não está conforme com o art.º 3.º da Lei n.º 2/2004 – Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis, pelo que a Polícia “tomou decisão no sentido de não permitir a realização da actividade de reunião e manifestação requerida” conforme o art.º 2.º da Lei n.º 2/93/M.
   II. A partir de 1990, a nossa União tem vindo a realizar anualmente a reunião com velas de 4 de Junho, desde a Administração Portuguesa até depois do estabelecimento da RAEM, e nunca encontrou qualquer problema de ilegalidade. Os respectivos artigos do CPM, cuja violação foi imputada pela Polícia à realização da reunião, foram elaborados no ano de 1995, e no pressuposto da falta de qualquer alteração introduzida ao mesmo Código, uma actividade de reunião que se realizou legalmente em cada ano passa, de repente, a ser ilegal, o que constitui uma acusação completamente absurda, e afasta-se dos princípios fundamentais duma sociedade de Direito.
   III. Antes de analisar a acusação da Polícia, é de mencionar que, apenas parte das dez fotos em anexo ao despacho da Polícia referem-se à reunião com velas de 4 de Junho, e as fotos 4 e 5 não têm nada a ver com o promotor da reunião com velas de 4 de Junho. Mas a Polícia, para demonstrar a ilegalidade da reunião com velas de 4 de Junho, citou em grande quantidade os escritos nas fotos 4 e 5. Quando o representante da nossa União recebeu o respectivo despacho, já indicou de imediato o problema à Polícia. Entendeu a Polícia que as referidas fotos foram tiradas na noite do dia 4 de Junho no Largo do Senado. E eu disse que os objectos mostrados nas referidas fotos foram colocados num outro lugar alheio àquele onde se realizou a reunião com velas de 4 de Junho, e não tinham nada a ver com o promotor de tal reunião. Eu também indiquei que antes e depois da reunião com velas de 4 de Junho realizada todos os anos, havia sempre um grande número de guardas policiais no local, sendo assim impossível que a Polícia não pudesse distinguir os objectos colocados por grupos ou indivíduos diferentes. Só que a Polícia insistiu nesse engano e recusou-se a corrigir a citação errada no seu despacho. Para o efeito, o representante da nossa União fez de imediato a seguinte anotação no despacho em causa: “as fotos 4 e 5 não são o que se exibiu na reunião com velas de 4 de Junho realizada pela União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia, que por sua vez, apenas mostrou o que consta das fotos 2 e 3. A União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia não concorda com o aditamento sem razão de conteúdos não relacionados com as actividades realizadas pela nossa União ao despacho de indeferimento.”
   IV. O despacho em causa indicou que a realização da reunião com velas de 4 de Junho violou “o crime de ofensa a pessoa colectiva que exerça autoridade pública previsto pelo art.º 181.º, e o crime de publicidade e calúnia previsto pelo art.º 177.º do CPM”, com fundamento em que “as anteriores reuniões de 4 de Junho fizeram, através de imagens e escritos incitadores, tais como “massacre”, “perseguição”, “o Partido Comunista da China causa prejuízos ao país e ao povo”, “a dominação do Partido Comunista da China é terror branco”, “foram massacrados milhares de cidadãos e estudantes” e “advogado – emprego mais perigoso na China”, entre outros, falsas divulgações contrárias à verdade dos factos, opuseram-se à deliberação e qualificação do Incidente “dia 4 de Junho” feita pelo Governo Central, e prejudicaram a reputação, o prestígio e a credibilidade do Governo Central.”
   V. Face à aludida exposição por parte da Polícia, temos de indicar que, primeiro, pode-se ver nas fotos 1 e 2 que os escritos exibidos na reunião com velas de 4 de Junho incluem apenas “não se esqueça do dia 4 de Junho”, “glória eterna para os mártires de democracia, espírito nobre da actividade democrática de 89”, “reabilitar a actividade democrática de 89, construir um país democrático, reunião com velas de 4 de Junho, Macau” e “a injustiça não foi corrigida por 30 anos”, mas não os enumerados no ponto 3.2.2 do despacho em causa. Como se indicou no supracitado ponto III, os escritos mostrados nas fotos 4 e 5, tais como “o Partido Comunista da China causa prejuízos ao país e ao povo” e “a dominação do Partido Comunista da China é terror branco”, não foram exibidos na reunião com velas de 4 de Junho realizada pela União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia. Quanto às fotos 7 a 10, é de mencionar que está em causa uma outra actividade realizada pela nossa União, ou seja “exibição de informações e fotos da actividade democrática de 89”, que não tem relação directa com a reunião com velas de 4 de Junho. As fotos 7 a 10 foram tiradas durante o dia, e a reunião com velas de 4 de Junho é realizada durante a noite, pelo que a Polícia enganou-se deliberadamente para inventar crimes para a reunião com velas de 4 de Junho.
   VI. Segundo, o Incidente de Tiananmen que teve lugar em 1989 terminou com a desocupação do local por parte do Exército de Libertação na madrugada do dia 4 de Junho. As pessoas de todo o mundo, incluindo a maioria dos residentes de Macau, viram, através de transmissão ao vivo na televisão, que um grande número de cidadãos e estudantes foram baleados, ficaram feridos e morreram. No mesmo dia, todas as instituições médicas de Pequim tornaram-se em hospitais de campanha ou necrotérios. Trata-se de factos históricos. Face às condições extremamente difíceis e restritas, os familiares das vítimas formaram a associação “Mães de Tiananmen”, e houveram 186 mortos com nomes, cuja investigação consta do livro «Procura das vítimas de 4 de Junho». Daí que, muitos cidadãos e estudantes foram massacrados no Incidente de 4 de Junho, facto esse que é irrefutável, e não pode ser encoberto por uma deliberação do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional ou um relatório do Conselho de Estado. O mais importante é, ao longo dos 70 anos após a fundação da República Popular da China, a “qualificação” de eventos históricos foi frequentemente alterada devido às mudanças de situação política, por exemplo, a “campanha antidireitista”, a “revolução cultural” e o “contra-ataque à tendência de reversão de veredictos de direitistas”, actividades essas que foram qualificadas de forma diferente até publicamente reabilitadas pelo Governo em tempos diferentes por causa de situação política diferente. A apreciação acertada dos eventos históricos deveu-se, em certo grau, à divergência entre o povo e o governo, e finalmente, o governo respondeu à opinião pública e ajustou a qualificação dos eventos históricos. Assim, não obstante que sejam diferentes da “deliberação” ou “qualificação” feita pelo Governo Central, as expectativas de “reabilitar a actividade democrática de 89” e outras manifestadas na reunião com velas de 4 de Junho não são ilegais. “A reputação, o prestígio e a credibilidade” do Governo Central não se consubstanciam na unanimidade da opinião de 1,4 bilhões de pessoas, mas sim na tolerância de opiniões diferentes. Por isso, não resta dúvida que a Polícia agiu de forma obscura e desorganizada ao reconhecer que a reunião com velas de 4 de Junho prejudicou “a reputação, o prestígio e a credibilidade” do Governo Central, e violou os artigos 181.º e 177.º do CPM, por as opiniões manifestadas na respectiva reunião não condizer com a “deliberação” ou “decisão” do Governo Central.
   VII. A Polícia entendeu que a realização da reunião com velas de 4 de Junho constituiu o “incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido” previsto pelo art.º 298.º do CPM, o que é ridículo. No ponto 3.23 do despacho em causa, a Polícia citou de novo muitos escritos não exibidos na reunião com velas de 4 de Junho para culpar o seu promotor. Como foi referido no aludido ponto V, os escritos exibidos na reunião com velas de 4 de Junho não contêm os citados pela Polícia, por exemplo, dissemos “não se esqueça do dia 4 de Junho”, mas nunca dissemos “não se esqueça do dia 4 de Junho, lute até ao fim”. Mais uma vez, a Polícia enganou-se deliberadamente. É verdade que o promotor da reunião com velas de 4 de Junho manifestou a demanda política de “construir um país democrático” e outras demandas, mas será que isso configura o “crime de alteração do sistema estabelecido”? O Governo Central também tem promovido nos últimos anos os valores fundamentais do socialismo, e os objectivos a alcançar no nível nacional incluem “prosperidade”, “democracia”, “civilização” e “harmonia”, pelo que “construir um país democrático” não se opõe aos valores fundamentais defendidos pelo Governo Central, e muito menos constitui o “crime de incitamento à alteração do sistema estabelecido”.
   VIII. O mais importante é, aquele que pretenda a “alteração do sistema estabelecido” não pratica qualquer crime, como no caso da nossa União, que pretendeu “terminar a ditadura do partido único”. Isso porque, o elemento chave da incriminação do crime de “incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido” previsto pelo art.º 298.º do CPM é a “violência”, quer dizer, tem que haver condutas concretas do infractor no sentido de incitar outros à alteração “violenta” do sistema estabelecido. Não constitui o respectivo crime a conduta de apenas pretender “terminar a ditadura do partido único”, sem incitar outros à alteração violenta do sistema estabelecido. Partindo desta perspectiva, desde 1990 até ao presente, a reunião com velas de 4 de Junho foi realizada por 30 anos, sempre de modo pacífico, racional e legal, e nunca incitou outros à prática de qualquer acto ilícito, nem pregou ou incitou qualquer pessoa ao alcance de certo objectivo por meio violento. Desta forma, é completamente absurdo dizer que a realização da reunião com velas de 4 de Junho configura o “crime de incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido” previsto pelo art.º 298.º do CPM.
   IX. A Polícia ainda indicou no ponto 3.3 do seu despacho que a “reunião de 4 de Junho” violou o princípio da boa fé previsto no CPA, o que é ridículo. O CPA regula os procedimentos administrativos a cumprir pelos serviços da Administração Pública, e o âmbito de aplicação deste Código é previsto no seu art.º 2.º. O princípio da boa fé também deve ser respeitado pelos serviços públicos, o que significa que nos procedimentos administrativos, todos os serviços e os titulares dos cargos públicos devem agir segundo as regras da boa fé e estabelecer boas relações com os administrados. Trata-se duma lei reguladora dos serviços públicos, e a realização duma reunião por uma associação civil não está regulada pelo CPA, nem violará o princípio da boa fé. Para reprimir a reunião com velas de 4 de Junho, a Polícia apenas citou uma frase incompleta no art.º 8.º, ou seja “a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé”, mas ignorou o pressuposto previsto na primeira parte deste artigo, isto é, “no exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases…”. Quer dizer, mesmo que o princípio da boa fé abranja os “particulares”, tem-se como pressuposto “no exercício da actividade administrativa”. No entanto, a reunião com velas de 4 de Junho é uma actividade de reunião civil realizada por uma associação civil, e como é que pode ser considerada como uma “actividade administrativa” ou uma fase da “actividade administrativa”? Por isso, a acusação de que a reunião com velas de 4 de Junho viola o princípio da boa fé no art.º 8.º do CPA deve constar dos livros didácticos de Direito em Macau como um exemplo negativo.
   X. Um outro fundamento que levou a Polícia a não permitir a realização da reunião com velas de 4 de Junho é a “desconformidade com o disposto no art.º 3.º da Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”. A chamada “desconformidade” não passa de “após avaliação profissional, os representantes dos Serviços de Saúde entendem que a associação promotora não pode assegurar que a respectiva reunião satisfaça as exigências de prevenção de epidemia”. Para nós, isso é incompreensível. No dia anterior à prolação do respectivo despacho, ou seja 24 de Maio, o CPSP e os SS tiveram um encontro com os representantes da nossa União, a fim de ter conhecimento das medidas concretas de prevenção de epidemia a tomar na reunião com velas de 4 de Junho. Durante o encontro, os oficiais dos SS não disseram aos representantes da nossa União que a Autoridade já tinha feito as seis exigências mencionadas na alínea 4.8 do supracitado despacho, limitando-se a formular perguntas sobre os nossos arranjos concretos. Os representantes da nossa União alegaram que o número de participantes da reunião foi rigorosamente limitado em 100, e seria fixada uma área para medir a temperatura corporal dos participantes e deixá-los mostrar o Código de Saúde antes da entrada no local da reunião. Também iria marcar pontos no local para garantir a manutenção da distância de 1 metro entre os participantes. Durante a reunião, todos os participantes deviam usar máscaras. Do despacho posteriormente recebido resulta que, os arranjos concretos de prevenção de epidemia, expostos pela nossa União no referido encontro, estão em plena conformidade com as exigências 1, 2, 3, 4 e 6 dos SS constantes do despacho. Durante o aludido encontro, foi perguntado aos representantes da nossa União como é que evitaria a atracção de outras pessoas fora do local da reunião para assistir. E os representantes da nossa União responderam que, se as outras pessoas não participantes da reunião fossem atraídas para assistir, a associação promotora não teria o poder público para impedir qualquer cidadão de ficar no Largo do Senado e noutros lugares públicos. Caso não seja permitida a aglomeração ou a assistência à reunião por motivo de prevenção de epidemia, cabe à Polícia aconselhar as pessoas a sair. Nós prometemos, na qualidade de promotor, apelar constantemente às pessoas que assistam à reunião para sair. Pode-se dizer que, podemos cooperar com todas as seis exigências dos SS e assegurar que todos os participantes da reunião cumprem com as mesmas. Por isso, a Autoridade não tem qualquer razão para imputar à reunião com velas de 4 de Junho a “desconformidade com o disposto no art.º 3.º da Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”, com fundamento em que o promotor “não pode assegurar que a respectiva reunião satisfaça as exigências de prevenção de epidemia”.
Nestes termos, eu, em representação do promotor da reunião em causa – União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia, interponho o recurso para o TUI nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, e peço que o tribunal faça a justiça.
(…)”; (cfr., fls. 2 a 5 e 4 a 14 do Apenso).

*

Admitido o recurso por despacho preliminar do ora relator e citada a autoridade recorrida para responder – nos termos do art. 12°, n.° 3 da Lei n.° 2/93/M, que regula o “direito de reunião e manifestação” – (em 29.05.2021), aos presentes autos juntou a seguinte resposta:

“(…)
Acerca do ponto 1 do recurso:
1. Na Região Administrativa Especial de Macau, a reunião pacífica e o direito de manifestação são estritamente protegidos pelas convenções internacionais, pela Lei Básica e pela lei local de Macau. No entanto, de acordo com as disposições da referida legislação, se o objectivo da reunião revestir alguma forma de ilegalidade ou se for susceptível de causar prejuízo para a segurança nacional ou segurança pública, ordem pública, saúde pública, moralidade ou os direitos e as liberdades de outrem, o exercício dos referidos direitos deve ser limitado nos termos da lei.
2. Dado que o objectivo da “Reunião com velas de 4 de Junho” reveste alguma forma de ilegalidade e é incompatível com o disposto no artigo 3.º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, nos termos do artigo 2.° da Lei n.° 2/93/M, de 17 de Maio - Direito de Reunião e de Manifestação, alterada pela Lei n.° 11/2018, o CPSP tomou uma decisão de não permissão da “Reunião com velas de 4 de Junho”.
Acerca do ponto 2 do recurso:
3. Antes do dia 20 de Dezembro de 1999, a República Popular da China ainda não tinha retomado a sua soberania sobre Macau, e a soberania sobre Macau pertencia a Portugal, pelo que, as “Reuniões com velas de 4 de Junho” não violavam a soberania integral da República Popular da China sobre Macau. No entanto, após o retorno de Macau à Pátria, a República Popular da China retomou a sua soberania sobre Macau e, apesar de as disposições relevantes do Código Penal não terem sido modificadas, o titular dos bens jurídicos foi alterado e, em consequência, a mesma “Reunião com velas de 4 de Junho” passou a violar os artigos 177.°, 181.° e 298.° do Código Penal.
4. No dia 13 de Setembro de 2018, as competências do Presidente do antigo Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais previstas na Lei n.° 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação), em vigor, foram transferidas para o Comandante do CPSP. Antes dessa data, para as actividades de reunião a serem realizadas, o Comandante do CPSP só tinha direito a impor restrições adequadas nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 8.°; e durante a realização de reunião, a Polícia só podia interromper a realização de reuniões ou manifestações nos termos do artigo 11.°, pelo que, antes da transferência das competências, o Comandante do CPSP não possuía competências para tomar decisão de não permissão da reunião cujo aviso prévio não estivesse em conformidade com o artigo 2.° da Lei acima referida.
5. Por outro lado, é consabido que o “Projecto da Revisão da Constituição da República Popular da China” foi adoptado em 11 de Março de 2018, pela Primeira Sessão do Comité Permanente da Décima Terceira Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China, sendo acrescentada, no n.° 2 do artigo 1.° da Constituição da República Popular da China, uma frase cujo conteúdo é o seguinte: “A liderança do Partido Comunista Chinês é a característica mais essencial do socialismo chinês”, e nos temas e slogans das anteriores “Reuniões de 4 de Junho”, também houve apelo ao “Fim do unipartidarismo”. O Projecto da Revisão da Constituição da República Popular da China, aprovado em 2018, já definiu claramente que“A liderança do Partido Comunista Chinês é a característica mais essencial do socialismo chinês”. Mesmo que antes da publicação do Projecto da Revisão da Constituição da República Popular da China em 2018, pudessem existir eventuais dúvidas ou impugnação relativas ao conhecimentos sobre a ilegalidade dos slogans como “Fim do unipartidarismo”, para as “Reuniões de 4 de Junho” subsequentes, obviamente, devemos reconhecer a respectiva ilegalidade.
6. Para além disso, desde a manifestação de grande escala de Hong Kong ocorrida no dia 9 de Junho de 2019 contra a revisão ao “Decreto dos Infractores Fugitivos”, ocorreram vários incidentes que afectaram gravemente a ordem social e a segurança pública. Um grande número de factos ilegais afectou gravemente o estado de direito em Hong Kong, e resultou no desprezo pela segurança de vida e dos bens de outros, causando fracturas sociais e impedindo o funcionamento eficaz da sociedade e influenciando gravemente o estado de direito e a vida da população e prejudicou a base da establilidade social, resultando uma influência profunda. O incidente, globalmente considerado, revestiu características de uma “revolução colorida”, sob a intervenção de forças estrangeiras, violou a plena governação de Hong Kong pelo Governo Central e tentou subverter o poder político. Posteriormente, as forças violentas “negras” de Hong Kong infiltraram-se em Macau e associaram-se com algumas associações ou organizações locais, a fim tentarem replicar a situação negativa da sociedade de Hong Kong em Macau, mas no final, apenas conseguiram provocar incidentes esporádicos em Macau, porque a sua pretensão ou objectivo não foi apoiado pela maioria dos cidadãos de Macau.
7. Uma análise abrangente do desenvolvimento do incidente contra a revisão legislativa de Hong Kong mostra que a actividade de associação com as forças exteriores e a subversão do poder político já foram concretizadas através de acções práticas, constituindo, assim, uma ameaça significativa para a segurança nacional e a segurança de Macau. Além disso, a recolha de provas assenta num procedimento, sendo que as numerosas recolhas nas anteriores “Reuniões com velas de 4 de Junho” já fornecem provas suficientes para demonstrar a ilegalidade da actividade em causa; assim, sendo um Serviço que cuida da segurança de Macau, esta Corporação deve tomar a decisão de não permitir a realização da presente reunião em estrita conformidade com os factos e as leis aplicáveis.
Acerca do ponto 3 do recurso:
8. Após a consulta de dados por esta Corporação, as duas fotografias anexadas no âmbito do recurso foram tiradas no local durante a noite da “Reunião com velas de 4 de Junho” do ano 2011. Naquela noite, a “União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia” (adiante abreviadamente designada por “U.M.D.D.”) organizou uma reunião no Largo de S. Domingos, aí se encontrando os slogans, constantes nas fotografias 4 e 5 anexadas do despacho ora recorrido, debaixo de uma árvore, em frente da Igreja de S. Domingos, sendo que a actividade mencionada e os slogans ocorreram ambos no mesmo local (para mais detalhes, vide as imagens um a três, anexadas).
9. Na noite da “Reunião com velas de 4 de Junho”, foi disponibilizada uma plataforma para o respectivo tema, não se tendo restringido a identidade dos participantes, todas as pessoas podiam participar nessa reunião e exibir slogans que se ajustassem ao tema ou ideais da respectiva reunião, o quer podia ter sido previsto pelo promotor da reunião. Na verdade, o promotor dos slogans das fotos 4 e 5 do anexo do despacho, (Lee Kin Yun), e o promotor da reunião, Au Kam San, estiveram constantemente em interacção durante toda a reunião, tendo o Au Kam San até convidado, por duas vezes, Lee Kin Yun para dirigir a palavra aos participantes da reunião (vide os ficheiros 1 e 2 do disco anexado); além disso, nessa noite Lee Kin Yun ocupou uma área maior no local e exibiu 24 slogans (vide as fotos 4 e 5 do anexo, os respectivos slogans incluem: “O governo comunista prejudica o país e a população”, “Não se esqueça do 4 de Junho, lute até ao fim”, “Basta ouvir a ditadura do Partido Comunista da China para ficar amedrontado”, “Reivindicação da Revolução de 4 de Junho ainda não teve sucesso”, “Fim do unipartidarismo! Acaba com a perseguição aos direitos humanos da China”, “Protesto contra o regime do terror branco do Partido Comunista, Desabrochar do jasmim, Queda da ditadura”, etc.), Au Kam San não exigiu nem apelou para retirá-los e guardá-los, por isso aqueles actos foram tacitamente permitidos. É visível que os supramencionados actos estão intimamente relacionados e constituem conjuntamente a actividade de reunião. Os slogans exibidos na reunião constituem, também, parte do conteúdo da reunião, e independentemente de os slogans das fotos 4 e 5 do anexo do despacho terem sido ou não afixados pelo Au Kam San, isso não altera a supramencionada realidade. Na percepção comum, as pessoas que se encontravam no local a assitir consideraram tratar-se da mesma reunião, realizada no mesmo local, como um todo da actividade, não sendo possível basear-se na diferença do exibidor dos slogans da reunião para distinguir a mesma reunião das diferentes reuniões.
10. Além disso, na Exposição de Fotografias do Movimento Democrático de 1989 organizada pela “U.M.D.D.”, que é da mesma série de actividades da “Reunião com velas de 4 de Junho”, não é difícil de encontrar conteúdos relacionados com os slogans das fotos 4 e 5 do anexo do despacho recorrido, vide a foto 7 do anexo do despacho recorrido, é visível que os conteúdos dos slogans demonstrados nas fotos 4 e 5 e o tema e ideais da “Reunião com velas de 4 de Junho” promovida pela “U.M.D.D.” são altamente coincidentes.
11. A par disso, a ilegalidade do objectivo da “Reunião com velas de 4 de Junho”, como foi referido no despacho recorrido, resulta de todas as anteriores reuniões do passado, não se limitando a duas fotografias específicas, de um determinado ano, como vem impugnado por parte do recorrente.
Acerca dos pontos 4 e 5 do recurso:
12. Quanto à impugnação do recorrente de que, na “Reunião com velas de 4 de Junho”, a U.M.D.D. não exibiu os dizeres dos slogans, nem os slogans das fotos 4 e 5 do anexo (referidos no ponto 3.2.3 do despacho recorrido), vide os pontos 8 a 11 desta contestação, sem necessidade de mais aprofundamento.
13. Após o incidente de “4 de Junho” ocorrido em 1989, a U.M.D.D., liderada por Ng Kuok Cheong e Au Kam San, organiza anualmente em Macau no mês de Maio a “Exposição de Fotografias do Movimento Democrático de 1989 ”, com a duração de mais de um mês, e também realiza em cada ano, na noite de 4 de Junho, a “Reunião com velas de 4 de Junho”. Os objectivos, temas expressos e ideais da “Exposição de Fotografias do Movimento Democrático de 1989” e da “Reunião com velas de 4 de Junho” são altamente coincidentes e intimamente relacionadas, só que a mesma entidade organizadora (U.M.D.D.) apresentou respectivamente o requerimento/ aviso prévio em dois serviços administrativos, isto é, requereu a realização da Exposição de Fotografias do Movimento Democrático de 1989 ao Instituto para os Assuntos Municipais (anteriormente denominado “Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais”) pela via de “Notificação Prévia para a Realização de Actividades”, e a realização de reuniões, apresentou pela via de “Aviso prévio” ao CPSP.
14. A “Reunião com velas de 4 de Junho” foi realizada por muito anos, mas, devido à limitação da dimensão do despacho recorrido, apenas se escolheram imagens adequadas e mais representativas para a fundamentação. É de salientar que, após a verificação de dados, por esta Corporação, não é difícil verificar que, há vários anos, quando se realizava a “Reunião com velas de 4 de Junho”, no Largo do Senado, as placas de exposição eram exibidas no mesmo local (vide as imagens seis e nove do anexo), concluindo-se que as duas actividades são intimamente relacionadas e integradas, contrariando o que é sustentado pelo Recorrente, de que as duas actividades não têm uma relação directa.
Acerca do ponto 6 do recurso:
15. Da “Deliberação do Comité Permanente da Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China sobre impedir o distúrbio e apaziguar a revolta contra-revolução”, adoptada em 6 de Julho de 1989, pela Oitava Sessão do Comité Permanente da Sétima Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China, consta que: “Muito poucas pessoas, utilizando o movimento contestatário estudantil, provocaram, em Pequim e em alguns locais, um distúrbio político planeado, organizado e premeditado, o qual se tornou em Pequim uma revolta de contra-revolução. Os objectivos delas são derrubar a liderança do Partido Comunista da China e o Governo Popular Central da República Popular da China, e subverter a República Popular da China com socialismo...”. O Conselho de Estado, nos termos da Constituição, decretou o estado de sítio em alguns distritos de Pequim. O Comité Central do Partido Comunista da China, Conselho de Estado e a Comissão Militar Central tomaram peremptoriamente medidas resolutas, tendo apaziguado a revolta contra-revolução e recuperado rapidamente a ordem social na capital do país. As acções tomadas, por um lado, estão conforme com os interesses essenciais de todo o povo e, por outro, são necessárias, correctas, legais e merecem o nosso total apoio. No “Relatório da situação sobre impedir o distúrbio e apaziguar a revolta contra-revolução”, publicado no “Boletim do Conselho de Estado”, n.° 11, de 1989, já se esclareceu em concreto as situações reais do incidente de “4 de Junho”, desmentindo-se com firmeza os rumores difundidos. O documento referido está disponível, publicamente, para consulta na internet. Portanto, o Governo Central já definiu a natureza do incidente de “4 de Junho”, esclarecendo os factos.
16. As anteriores “Reuniões de 4 de Junho” têm totalmente a mesma natureza ilegal:
16.1 Segundo a análise relativa às anteriores “Reuniões com velas de 4 de Junho” e “Exposições de Fotografias do Movimento Democrático de 1989” constante no despacho recorrido, concluiu-se que: as palavras, fotografias, comportamentos e actividades manifestadas nas exposições e reuniões violaram totalmente a “Deliberação do Comité Permanente da Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China sobre impedir o distúrbio e apaziguar a revolta contra-revolução” referida no ponto 15, tendo realizado uma divulgação falsa que é plenamente incompatível com os factos consignados no “Relatório da situação sobre impedir o distúrbio e apaziguar a revolta contra-revolução”.
16.2 Nos casos registados no estrangeiro sobre a proibição de reunião, concluiu-se que as motivações de natureza ilegal manifestadas no decorrer de reuniões ocorridas com um tema idêntico podem servir futuramente como fundamento para o indeferimento do requerimento de reunião com o mesmo tema. Por outras palavras, a motivação de natureza ilegal de anteriores reuniões com determinado tipo de tema pode constituir fundamento para o indeferimento de uma eventual reunião com o mesmo tipo de tema, no futuro.
16.3 Por exemplo, em Madrid, Espanha, os desfiles realizados por grupos ateus são proibidos desde 2011, tendo em conta que os temas dos desfiles destes grupos podem provocar conflitos entre os ateus e os católicos conservadores. Além disso, foram ainda exibidos cartazes com conteúdo pornográfico durante o desfile (Ref: “Authorities outlaw ‘atheist’ Easter procession”, https://www.thinkspain.com/news-spain/19455/authorities-outlaw-atheist-easter-procession; “Spanish atheist march banned in Easter Week”, https://www.bbc.com/news/world-europe-13158138). Em Abril de 2014, o Tribunal Superior de Justiça de Madrid negou provimento ao recurso apresentado pela Associação Madrilenha de Ateus e Livres-pensadores relativo ao indeferimento pelo governo do pedido da realização de desfile na Quinta-feira Santa, com os seguintes fundamentos: A existência do risco de confrontos entre os membros dos grupos ateus e os fiéis e membros de confrarias católicas já foi plenamente verificada e provada. A escolha pelos ateus da realização do desfile na Quinta-feira Santa tem uma óbvia intenção de provocação, pelo que o Tribunal concordou com o governo na restrição da liberdade do direito de realização do referido desfile e manifestação. (Ref. “ La liberté de manifester et ses limites: perspective de droit comparé”, https://www.researchgate.net/publication/313722422_La_liberte_de_manifester_et_ses_limites_Perspective_de_droit_compare).
16.4 Semelhantes aos casos acima referenciados, a “Reunião com velas de 4 de Junho” é realizado no dia 4 de Junho de cada ano, a escolha desta data específica para a realização da actividade de reunião e a divulgação propositada de factos fictícios que prejudicam a reputação do Governo Central, incitando o sentimento de ódio contra o Governo Central, tem intenções provocatórias evidentes, prejudicando a segurança nacional, a honra e os interesses das instituições, e danificando as relações entre a Região Especial e o Governo Central. O aviso prévio da “Reunião com velas de 4 de Junho” apresentado desta vez é igual ao das reuniões anteriores, cujo o objectivo possui igualmente a mesma natureza ilegal, portanto, não sendo de permitir a sua realização.
17. De acordo com o artigo 181.° do Código Penal, constitui “Crime de Ofensa a pessoa colectiva que exerça autoridade pública” a conduta de quem afirmar ou propalar factos inverídicos, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço que exerçam autoridade pública. A pessoa colectiva aqui referida refere-se aos sujeitos que exercem o poder da autoridade pública na RAEM. Sob o princípio de “Um país, Dois sistemas”, a Região Administrativa Especial é dotada de alto grau de autonomia e o Governo Central goza de plena governação sobre a mesma, pelo que, no âmbito dos sujeitos do poder da autoridade pública acima referidos, inclui-se certamente o Governo Central. Ademais, se a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação, ou, se averiguar que o agente conhecia a falsidade dos factos divulgados é considerado “crime de publicidade e calúnia” agravado previsto no artigo 177.° do Código Penal.
18. As anteriores “Reuniões com velas de 4 de Junho” realizaram-se em período específico, nomeadamente antes ou no próprio dia 4 de Junho, durante as quais foram usadas imagens e textos de carácter incitativo, como: “massacrar a cidade”, “perseguição”, “advogado - profissão mais perigosa da China”, entre outros, para fazer uma sensibilização falsa que contraria a verdade e a deliberação feita pelo Governo Central sobre os incidentes, prejudicando a reputação, o prestígio e a credibilidade do Governo Central. O objectivo destas reuniões é obviamente provocatório, consubstanciando crimes nos termos previstos nos artigos 181.° e 177.° do Código Penal.
Acerca do ponto 7 do recurso:
19. Quanto à impugnação deduzida pelo recorrente contra o ponto 3.2.3 do despacho recorrido, vide, para pormenores, os pontos 8 a 11 da presente contestação, sem necessidade de mais aprofundamento.
Acerca do ponto 8 do recurso:
20. As “Reuniões com velas de 4 de Junho” anteriores apresentam a mesma natureza ilegal, remetendo-se, para mais promenores, para o ponto 16 da presente contestação, sem necessidade de mais aprofundamento
21. O crime do incitamento à alteração violenta do sistema, previsto no artigo 298.º do Código Penal, consiste em incitar, publicamente, ao uso de violência ou ameaça de violência, para tentar destruir, alterar ou subverter o sistema político, económico ou social estabelecido em Macau. Trata-se de um crime contra o sistema político, económico ou social estabelecido em Macau, que se consubstancia no acto de incitar, publicamente, ao uso de violência ou ameaça de violência, para tentar destruir, alterar ou subverter o sistema político, económico ou social estabelecido em Macau. “Publicamente” refere-se ao uso de qualquer meio, inclusive reuniões, discursos, distribuição de panfletos ou através dos media para a divulgação ao público. Em termos subjectivos, trata-se de um crime doloso, cujo objectivo consiste em destruir, alterar ou subverter o sistema político, económico ou social estabelecido em Macau. “Um país, Dois sistemas” é um princípio básico do Governo Central que rege a governação das Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e Macau, referindo-se “Um país” à República Popular da China, que é um Estado socialista subordinado à ditadura democrático-popular da classe operária e assente na aliança dos operários e camponeses. O Partido Comunista Chinês ocupa o lugar de liderança na política e na sociedade do País. A liderança do Partido Comunista Chinês é a característica mais essencial do socialismo com características chinesas. “Um país” é o pressuposto e a base de “Dois sistemas”, pelo que opor-se a “Um país” equivale a negação de “Dois sistemas”. A “Reunião com velas de 4 de Junho” serviu para incitar, publicamente, a subversão da liderança do Partido Comunista Chinês, apelar ao “fim do unipartidarismo”, estimular para a mudança da natureza do País, embelezar e elogiar o comportamento de distúrbio e de violência de um número muito reduzido de pessoas no incidente de “4 de Junho” e para fazer propaganda a favor da “Revolução de Jasmim”; tudo isto constitui, essencialmente, um impacto e dano para o princípio “Um país, Dois sistemas”, violando assim o artigo 298.° do Código Penal.
Acerca do ponto 9 do recurso:
22. A “Reunião com velas de 4 de Junho” traduz uma violação do princípio da boa fé do Código de Procedimento Administrativo:
Nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do Código de Procedimento Administrativo: “No exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé”. É de notar que o sujeito da administração pública e o administrado devem agir de acordo com o princípio da boa fé. Recebido o aviso prévio sobre uma manifestação, o CPSP, decide, de acordo a Lei do “Direito de Reunião e Manifestação”, sobre a permissão da manifestação, em conformidade com a lei. Ora, caso o CPSP não se opusesse à “Reunião com velas de 4 de Junho”, isso poderia, eventualmente, ser interpretado como uma concordância com aquela manifestação de revolta contra o Governo Central, interferindo na qualificação pelo Governo Central do incidente de “4 de Junho” e assim causando prejuízo nas relações entre a RAEM e o Governo Central.
23. A “Reunião com velas de 4 de Junho” prejudica os interesses do País:
A República Popular da China é um Estado unitário. A Região Administrativa Especial, sendo uma região administrativa local que goza de um alto grau de autonomia e que fica directamente subordinada ao Governo Popular Central, tem responsabilidade de salvaguardar a unidade nacional, dignidade e interesses fundamentais. Os residentes da RAEM, independentemente de quaisquer convicções ideológicas ou políticas que professam, têm o dever de defesa da soberania, da segurança, dos interesses de desenvolvimento do Estado e da estabilidade da sociedade da RAEM. A “Reunião com velas de 4 de Junho” prejudica as relações entre o Governo Central e a RAEM, perturba a atmosfera harmoniosa da sociedade, tudo isso causando facilmente disputas e confrontos entre os residentes da China continental e os residentes de Macau, bem como entre os próprios residentes de Macau, o que prejudica os interesses do País.
24. A “Reunião com velas de 4 de Junho” causa impactos negativos para as relações entre a RAEM e o Governo Central:
De acordo com o princípio de “Um país, Dois sistemas” e com a Lei Básica, sob o pressuposto de “Um país” na China continental aplica-se o sistema socialista, enquanto em Macau o capitalista, promovendo a coexistência dos dois sistemas. Tanto na China continental como em Macau, existe um respeito mútuo pelos respectivos sistemas sociais e modos de vida, aprendendo uns com os outros sem ingerência. No entanto, na “Reunião com velas de 4 de Junho”, propagam-se rumores e calúnias relativos ao Governo Central, incita-se para subverter o regime e, se for permitida a sua realização, poderá de facto, não só contrariar o que conforme na lei se determina, como também causar impactos negativos para as relações entre a RAEM e o Governo Central.
Pelo exposto, na “Reunião com velas de 4 de Junho”, sem base em factos objectivos, usaram-se expressões falsas e extremamente negativas, tais como “massacrar a cidade” e “perseguição”, etc. para confundir a comunidade e para induzir em erro a população, o que prejudica os interesses do País e as relações entre o Governo Central e a RAEM, com um objectivo obviamente provocatório; assim, a ser permitida a sua realização, tal acarretará a violação do princípio da boa fé, estipulado no artigo 8.º do Código de Procedimento Administrativo.
Acerca do ponto 10 do recurso:
25. Como referido nos pontos 4.1 a 4.2 do despacho ora recorrido, a situação epidémica a nível mundial tende a ser cada vez mais séria, com o número de casos de infecção a aumentar constantemente e os sistemas de saúde de vários países a entrarem em colapso, acrescido do surgimento de casos em Macau causados pela variante do novo coronavírus identificada na Índia, pelo que esta Região não pode baixar a guarda no combate à pandemia, pois, se houver propagação na comunidade, isso trará consequências imprevisíveis e graves a Macau.
26. Relativamente à organização de actividades de reunião e manifestação durante a pandemia, esta Corporação tem vindo a solicitar parecer dos Serviços de Saúde de Macau (SSM) em matéria de prevenção epidémica. E, em relação às actividades de reunião que prevêem um elevado número de participantes e grande concentração e movimentação de pessoas, esta Corporação convoca inclusive reunião com o representante dos SSM e o promotor/associação promotora para troca de opiniões e esclarecimento das medidas antiepidémicas que devem cumprir. Sobre o aviso prévio da “Reunião com velas de 4 de Junho” apresentado pelo recorrente no dia 17 de Maio do corrente ano, esta Corporação convocou uma reunião com o representante dos SSM e a associação promotora, no dia 24 de Maio, pelas 10h30, tendo o profissional de saúde feito a avaliação sobre os pormenores da reunião que o Recorrente pretende organizar. Posteriormente, esta Corporação recebeu o ofício de resposta dos SSM sobre a “Reunião com velas de 4 de Junho” (vide Anexo - 4), no âmbito de prevenção epidémica, donde consta “Depois de se inteirar sobre as medidas de prevenção epidémica a serem adoptadas durante a realização de actividade junto do promotor e após a avaliação, estes Serviços acreditam que o promotor da actividade não oferece medidas eficazes para assegurar o cumprimento dos requisitos de prevenção de epidemia acima mencionados durante a realização da actividade.”
27. A promoção de uma actividade de reunião tem inevitavelmente como objectivo e efeito a aglomeração de pessoas. E na verdade, ao longo dos anos, a “Reunião com velas de 4 de Junho” conseguiu atrair, no seu auge, umas centenas de pessoas (conforme os dados registados nesta Corporação: cerca de 370 pessoas em 2019, cerca de 165 pessoas em 2018, cerca de 290 pessoas em 2017, cerca de 580 pessoas em 2016). O recorrente pretende realizar a “Reunião com velas de 4 de Junho” no Largo do Senado durante a epidemia; contudo, não apresentou um plano adequado de prevenção epidémica a propósito do grande número de observadores curiosos que necessariamente irão existir. Este é um factor importante, que levou a autoridade sanitária a classificar que o Recorrente não reúne as medidas eficazes que assegurem que a actividade cumpre os requisitos de controlo contra a epidemia.
28. O artigo 21.º do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos”, vigente na RAEM, estabelece expressamente: “O direito de reunião pacífica é reconhecido. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições impostas em conformidade com a lei e que são necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança pública, da ordem pública ou para proteger a saúde e a moralidade públicas ou os direitos e as liberdades de outrem.” Pelo que se pode ver, o direito de reunião e manifestação não é um direito absoluto, este direito pode ser objecto de restrições impostas em conformidade com a lei e que são necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança pública, da ordem pública ou para proteger a saúde e a moralidade públicas ou os direitos e as liberdades de outrem. Atendendo a considerações de saúde pública e avaliações feitas à actual situação epidémica, a importância do interesse público prevalece sobre a do direito individual de reunião e manifestação. Fazendo referência ao acórdão n.° 58/2020 do Tribunal de Última Instância, no que respeita ao interesse público:
“No decorrer da elaboração da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, o legislador ponderou especificamente a possibilidade de, com a aplicação das medidas em causa pelo Governo, virem a ser restringidos alguns direitos e liberdades fundamentais (designadamente o direito de reunião, a liberdade de circulação e a liberdade de entrada e saída da RAEM). Ainda assim, permitiu, mediante legislação, que essas medidas pudessem ser aplicadas, o que demonstrou a importância e prevalência do interesse público. É de afirmar que, perante o risco de transmissão da doença transmissível, o legislador decidiu dar prevalência ao interesse público, permitindo a imposição de restrições aos direitos e liberdades fundamentais dos particulares, de modo a assegurar a higiene e saúde públicas.
Por outras palavras, face à necessidade de prevenção e controlo de doenças transmissíveis, o Governo deve dar prevalência ao interesse público, podendo restringir em casos de emergência o exercício de direitos e liberdades fundamentais, incluindo o direito de reunião.”
29. Assim sendo, sob a circunstância de o Recorrente não conseguir corresponder ao estipulado no artigo 3.º da Lei de Prevenção, Controlo e Tratamento de Doenças Transmissíveis, esta Corporação tomou, nos termos da lei, uma decisão de não permissão da actividade de reunião pretendida, no pressuposto de proteger a saúde pública e dos residentes, dando prevalência ao interesse público.
“Reunião com velas de 4 de Junho” afecta a ordem constitucional estabelecida pela “Constituição da República Popular da China”:
30. “Constituição” aplica-se de modo geral na RAEM
Como Lei basilar do país, a “Constituição” produz o máximo efeito legal e implementa-se em todo o território nacional, devendo, de modo geral, aplicar-se na RAEM. Esta aplicação concretiza-se através dos seguintes dois principais aspectos: 1. Nas disposições da “Constituição” referentes ao reconhecimento e concretização da soberania do Estado, a unidade nacional e a integridade territorial, isto é, as disposições no âmbito de “um país” aplicam-se igualmente na RAEM, nomeadamente as disposições referentes a órgãos estatais, defesa do estado e negócios estrangeiros, símbolos nacionais (bandeira nacional, emblema nacional e capital do país), nacionalidade, entre outros; 2. O Estado exerce sobre a RAEM o princípio “Um país, Dois sistemas”, através do qual RAEM aplica o sistema capitalista.
A aplicação da “Constituição” na RAEM é a manifestação da soberania do Estado. A RAEM deve cumprir as disposições previstas na “Constituição”, não podendo violar os poderes que o Governo Popular Central exerce sobre a RAEM previstos na Constituição e na Lei Básica. Nos termos do artigo 54.º da “Constituição”: “Constitui dever dos cidadãos da República Popular da China defender a segurança, a honra e os interesses da Mãe-Pátria e não cometer actos atentatórios da segurança, da honra e dos interesses da Pátria.”.
31. “Reunião com velas de 4 de Junho” afecta o sistema estadual
Nos termos do artigo 1.º da “Constituição”: “A República Popular da China é um Estado socialista subordinado à ditadura democrático-popular da classe operária e assente na aliança dos operários e camponeses. O sistema socialista é o sistema básico da República Popular da China. A liderança do Partido Comunista Chinês é a característica mais essencial do socialismo chinês. É proibida a sabotagem do sistema socialista por qualquer organização ou indivíduo.”. Nos termos da “Constituição”, o sistema estadual da República Popular da China é a ditadura democrático-popular e o Partido Comunista da China desempenha um papel de liderança na vida política e social do país.
Embora na RAEM não se aplica o sistema socialista, esta Região tem a obrigação de respeitar o sistema estadual estabelecia na “Constituição”. A “Reunião com velas de 4 de Junho” instiga ao “fim do unipartidarismo” com o intuito de alterar o sistema estadual, o que constitui infracção ao dever constitucional.
Conclusão:
32. Resumindo, há ilegalidade na “Reunião com velas de 4 de Junho”, por implicar o cometimento de crimes previstos nos artigos 177.º, 181.º e 298.º do Código Penal e a violação do artigo 8.º do Código do Procedimento Administrativo, lesando a segurança do Estado, a ordem constitucional e o sistema estadual, e por não estar em conformidade com as disposições previstas no artigo 3.º da Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis. Assim sendo, o despacho ora recorrido não constitui infracção à Lei n.º 2/93/M, de 17 de Maio, alterada pela Lei n.º 11/2018, cumprindo a esta Corporação, nos termos da lei, não permitir reuniões cujo objectivo implique a violação da Lei. Pelo exposto, deve-se manter o despacho recorrido e julgar improcedente o recurso.
O Comandante do CPSP
(…)”; (cfr., fls. 55 a 102).

*

Observada que foi a tramitação processual devida, e, nada obstando, cumpre conhecer.

A tanto se passa.


Fundamentação

2. Com o presente recurso é esta Instância chamada a se pronunciar sobre a adequação jurídico legal da atrás referida (e transcrita) decisão que não permitiu a reunião pela ora recorrente pretendida levar a cabo no local, horas, termos e condições que se deixou retratado.

Cabe notar que sobre a matéria do referido “direito de reunião e manifestação”, várias foram já as decisões por esta Instância proferidas; (cfr., v.g., os Acs. de 29.04.2010, Proc. n.° 16/2010; de 04.05.2010, Proc. n.° 21/2010; de 17.12.2010, Proc. n.° 75/2010; de 12.01.2011, Proc. n.° 2/2011; de 30.01.2011, Proc. n.° 5/2011; de 24.02.2011, Proc. n.° 6/2011; de 30.05.2011, Proc. n.° 25/2011; de 25.06.2011, Proc. n.° 31/2011; de 11.07.2011, Proc. n.° 34/2011; de 27.09.2011, Proc. n.° 50/2011; de 21.04.2012, Proc. n.° 30/2012; de 12.07.2013, Proc. n.° 44/2013; de 04.06.2014, Procs. n°s 33/2014 e 34/2014; de 30.07.2014, Proc. n.° 95/2014; de 18.08.2014, Proc. n.° 100/2014; de 11.03.2016, Proc. n.° 15/2016; de 13.05.2016, Proc. n.° 28/2016; de 24.03.2017, Proc. n.° 18/2017; de 11.09.2017, Proc. n.° 57/2017; de 03.05.2018, Proc. n.° 37/2018; de 27.09.2019, Proc. n.° 94/2019, e mais recentemente, de 29.05.2020, Proc. n.° 58/2020, assim como a decisão datada de 12.05.2021 proferida no Proc. n.° 60/2021), valendo a pena aqui salientar que no citado Acórdão de 29.05.2020, (Proc. n.° 58/2020), conheceu-se de idêntico recurso da ora recorrente sobre idêntica decisão de não permissão de uma semelhante “reunião” que a mesma pretendia realizar no dia 04 de Junho do ano transacto.

Verificando-se que as “razões” da decisão aí recorrida não são totalmente coincidentes com as agora invocadas na decisão sindicada na presente lide recursória, o mesmo sucedendo com os “motivos” pela ora recorrente apresentados para a pretensão da sua anulação, passa-se a apreciar, tendo-se obviamente em consideração o que se entendeu e decidiu em sede do aludido recurso e veredicto.

Pois bem, a problemática suscitada com a “questão” no presente recurso colocada implica uma análise e pronúncia sobre o regime – alcance, “modus vinculanti” e limites no exercício – dos “direitos fundamentais” na Região Administrativa Especial de Macau; (sobre o tema, pode-se ver, v.g., Paulo Cardinal in, “Os direitos fundamentais em Macau no quadro da transição: algumas considerações” e “Direitos fundamentais em Macau: evoluções recentes e perspectivas à luz do processo de transição”; Jorge Costa Oliveira in, “A continuidade do ordenamento jurídico de Macau na Lei Básica da futura Região Administrativa Especial”, Revista Administração, n.° 19/20, pág. 24 e 25; M. Leonor Assunção in, “Os princípios de direito penal e direitos e garantias processuais penais dos residentes de Macau, no Contexto da Lei Básica”, Revista Administração, n.° 19/20, 1993, pág. 130 e 131; Wang Liuting in, “Macao’s return: Issues and concerns”, Loyola of Los Angeles International and Comparative Law Review, Vol. 22, 1999, n.° 2, pág. 180; Sun Wanzhong in, “A Lei Básica da RAEM e a construção do sistema jurídico de Macau”, B.F.D.M., n.° 13, 2002, pág. 54; Lok Wai Kin in, “Impacto da Lei Básica da RAEM na concepção do Direito de Macau”, B.F.D.M., n.° 13, 2002, pág. 61; Xu Chang in, “Localização da legislação de Macau – uma nova abordagem”, Revista Jurídica de Macau, Vol. V, n.° 1, pág. 82 e 83; Zhao Guoquiang in, “ABC da Região Administrativa Especial de Macau”, 1999, pág. 61 a 63; Jorge Neto Valente in, “Direitos fundamentais: qual o futuro?”; Wang Shuwen in, “As características da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”, B.F.D.M., n.° 1, 1997, pág. 49; Luo Weijian in, “A Lei Básica, garantia importante dos direitos e liberdades dos residentes de Macau”, Revista Administração, n.° 19/20, pág. 113; Ieong Wan Chong in, “Anotações à Lei Básica da R.A.E.M.”; e José Melo Alexandrino in, “O sistema de direitos fundamentais na Lei Básica da R.A.E.M.”).

A origem de tais “direitos fundamentais” encontra-se, (tanto quanto se julga saber), no pensamento grego dos “estóicos”, (século IV A.C.), e na Roma Antiga, pois que já nas obras de Marcus Tullius Cícero, (v.g., “Da República” e “Dos Deveres”), encontram-se passagens sobre o “direito de dignidade” e da “igualdade dos homens”, o mesmo sucedendo com Aristóteles que, na sua “A Política”, afirmava já que “todos os sistemas políticos, por distintos que sejam, reconhecem certos direitos e uma igualdade proporcional entre os cidadãos…”.

A evolução na afirmação de tais “direitos” seguiu o seu curso, (com os seus altos e baixos), afigurando-se de considerar S. Tomás de Aquino como um dos seus mais destacados defensores na Idade Média, (cfr., “Summa Theológica”), podendo-se, posteriormente, assistir à sua consagração (na Inglaterra) na “Magna Carta” (1215), na “Petition of Rights” (1628), no “Habeas Corpus” (1679), na “Bill of Rights” (1689), no “Art of Settlement” (1707), na “Virginia Declaration of Rights” (1776), assumindo, já aí, um acentuado “significado político de limitação da liberdade estadual”; (cfr., v.g., Locke in, “Two Treatises on Civil Government”, e, mais recentemente, Jean Touchard in, “Histoire des Idées Politiques”, e André Jardin in, “Histoire du Libéralisme Politique…”).

A estes documentos, juntam-se, depois, a “Constituição Americana de 1787”, onde os direitos individuais são já assumidos como “fundamento e razão de ser da sociedade política e do direito positivo”, e, dois anos depois, a, “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, votada em 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte Francesa, onde se reconhece, (essencialmente), que a “liberdade”, abstractamente concebida, decompõe-se em “liberdades” que as instituições e códigos passam a reconhecer: ou seja, a liberdade de opinião, de culto, de imprensa, de domicílio, de reunião, de associação, de ensino, etc…

Mais recentemente, surgem a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” (1948), a “Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (1950), e o “Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos”, (1966, aplicável em Macau por força do art. 40° da Lei Básica da R.A.E.M.; podendo-se, sobre o tema, ver, v.g., Paulo Cardinal in, “A Primazia do Direito Internacional em Macau”, e “A Questão da Continuidade dos Instrumentos de Direito Internacional Aplicáveis a Macau”, com abundante e variada doutrina sobre o tema).

Consoante o seu tempo, e sentido que se lhes pretendia imprimir, foi-lhes sendo atribuído diversas denominações, tais como, “direitos naturais”, “liberdades e garantias”, “direitos do homem”, “humanos”, “universais”, e, (entre outros), “fundamentais”, (expressão, actualmente, maioritariamente aceite e utilizada).

De reter – essencialmente – é que são “direitos inerentes à pessoa humana e essenciais à sua vida (digna)”, cabendo, ao Estado, (e outras autoridades e entidades), a sua defesa e protecção.

Aos mesmos são, habitualmente, reconhecidas determinadas características (próprias).

Assim, são “irrenunciáveis”, “inalienáveis” e “invioláveis”.

Além disso, são “imprescritíveis” e “universais”.

Não obstante, são “concorrentes”, (na medida em que podem incidir em concomitância a outros direitos fundamentais), e “complementares”, pois que devem ser interpretados em consonância e em conjunto com o sistema jurídico.

Em causa estando o “direito fundamental de reunião (e manifestação)”, no mesmo centremos a nossa atenção.

Nos termos do art. 4° da Lei Básica da R.A.E.M.:

“A Região Administrativa Especial de Macau assegura, nos termos da lei, os direitos e liberdades dos residentes da Região Administrativa Especial de Macau e de outras pessoas na Região”.

No Capítulo III, referente aos “Direitos e deveres fundamentais dos residentes”, prescreve também o art. 27° da mesma Lei Básica que:

“Os residentes de Macau gozam da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves”.

Por sua vez, e regulando o assim consagrado “direito de reunião e manifestação”, preceitua o art. 1° da Lei n.° 2/93/M, (como um dos seus “Princípios gerais”), que:

“1. Todos os residentes de Macau têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, em lugares públicos, abertos ao público ou particulares, sem necessidade de qualquer autorização.
2. Os residentes de Macau gozam do direito de manifestação.
3. O exercício dos direitos de reunião ou manifestação apenas pode ser restringido, limitado ou condicionado nos casos previstos na lei”; (cabendo notar que se encontram alusões ao referido direito nos mais recentes e significativos instrumentos jurídicos internacionais, v.g., no art. 20°, n.° 1 da referida “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, no art. 18° do “Pacto Internacionais de Direitos Civis e Políticos”, assim como no art. 11°, n.° 1 da “Convenção Europeia dos Direitos do Homem”).

Não sendo este o local – e momento – para se elaborar (e teorizar) sobre a origem, evolução, e regime do direito de “reunião” e “manifestação”, cabe notar que, no fundo, são “espécies” do mesmo “género”.

Uma “reunião”, constitui uma aglomeração de pessoas, com duração temporária, não institucionalizada, e dirigida a fins livremente escolhidos em comum, (assim se distinguindo de um ajuntamento ocasional, de uma associação ou de uma assembleia), mostrando-se de considerar uma “manifestação” como uma “reunião qualificada”, que se caracteriza pela expressão de uma mensagem dirigida, ou contra terceiros, em local público, e segundo uma vontade e consciência assumida por todos os seus participantes; (cfr., v.g., J. Miranda in, “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV, pág. 482 e segs., e J. M. e R. Medeiros in, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, pág. 463 e segs.).

Para Maria Lídia de Oliveira Ramos, e diferenciando do “direito de resistência”, (passiva, defensiva e agressiva), “A liberdade de Manifestação consiste, pois, na possibilidade de os cidadãos se agruparem na via pública, para exprimirem uma mensagem, opinião pública, sentimento ou protesto através da sua presença e/ou da sua voz, abrangendo gestos, emblemas, insígnias, bandeiras, cantos, gritos, aclamações, entre outras formas, sem exclusão do silêncio”; (in “O Direito de Manifestação”, pág. 363 e segs., podendo-se também ver Ana Maria Batista Robalo in, “O exercício do direito fundamental de manifestação: a ingerência pelas forças de segurança”; Ramon Adell in, “Manifestations et transition démocratique en Espanhe”, Les Cahiers de la Sécurité Intérieure, 1997, n.° 2; Eduardo Correia Batista in, “Os direitos de reunião e de manifestação no direito português”; Josefa Casimiro in, “Uma reflexão sobre direitos fundamentais”; Sérvulo Correia in, “O direito de manifestação – Âmbito de protecção e restrições”; António Francisco de Sousa in, “Liberdade de reunião e de manifestação no estado de direito”, Revista “Direitos Fundamentais & Justiça”, 2012, Ano 6°, n.° 21; e, João Paulo Miranda de Sousa in, “O direito de manifestação”, B.M.J., 1998, n.° 375).

O “direito de reunião (e manifestação)” em questão, apresenta dois aspectos que se complementam.

Do ponto de vista do organizador, trata-se de uma “liberdade de grupo” quanto ao modo do seu exercício, permitindo a expressão de uma opinião colectiva e sendo concebida como um direito de exercício colectivo, (uma espécie do género mais vasto que é a reunião).

De outro lado, trata-se de uma “liberdade do indivíduo” como pessoa física que pode participar numa manifestação.

Sem pretensões de esgotar o tema, (por natureza, vasto e fértil), mostra-se adequado atentar nas considerações dos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira que entendem que “(a) liberdade de reunião (e de manifestação), ou seja, direito de reunir-se com outrem ou de manifestar-se, sem impedimento e, desde logo, sem necessidade de autorização prévia; (b) direito de não ser perturbado por outrem no exercício desse direito, incluindo o direito à protecção do Estado contra ataques ou ofensas de terceiros (v.g., ataques de contramanifestantes); (c) direito à utilização de locais e vias públicas, sem outras limitações que as decorrentes da salvaguarda de outros direitos fundamentais que com aquele colidam”; (cfr., v.g., “Constituição da República Portuguesa Anotada”, pág. 253).

Porém, como se apresenta (apenas) natural para qualquer pessoa de razoável bom senso e saúde mental, inegável é que, a todo o “direito”, (por mais “fundamental” que seja), corresponde, necessariamente, uma “responsabilidade no seu exercício”, (inexistindo “direitos – absolutamente – absolutos”).

Como cremos ser evidente, a consagração (ou elevação) de um direito (ainda que a) “fundamental”, (e ainda que a nível constitucional, ou, como sucede em Macau, estatuído na L.B.R.A.E.M.), não o torna “ilimitado” ou “absoluto”, não obstando a que se estabeleçam restrições por via legal, (e ainda que por lei ordinária); (cfr., o § 2° do art. 40°, da dita L.B.R.A.E.M., onde se prescreve, nomeadamente, que “os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na Lei”).

Doutra forma, (absolutamente) inútil seria (v.g.) o estatuído no art. 326° do C.C.M. sobre o “abuso do direito”, onde se prescreve que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, e nos seguintes preceitos do mesmo código sobre a “colisão de direitos”, “acção directa”, “legítima defesa” e “estado de necessidade”; (cfr., também a matéria das “causas que excluem a ilicitude e a culpa” no C.P.M., art°s 30° e segs., podendo-se, também sobre o tema, cfr., art. 1° do D.L. n.° 406/74 de 29.08 – cuja aplicação foi estendida a Macau pela Portaria n.° 584/74, de 11.09, e que foi revogado pela referida Lei n.° 2/93/M – onde, no n.° 1 se prescreve que “A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas”, e no n.° 2 que “Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas”, valendo a pena recordar Vieira de Andrade que, atento o dito D.L. n.° 406/74 considera, nomeadamente, que “há preceitos constitucionais, como, por exemplo, os relativos às liberdades (…) de reunião e manifestação, (…) que não prevêem quaisquer restrições. Poder-se-á então invocar o nº 3 do art. 18º para considerar inconstitucional uma lei que (…) permita, às entidades policiais, impedirem ou interromperem reuniões ou manifestações que ponham em causa a ordem pública (…) a falta de preceitos constitucionais que autorizem a restrição pela lei pode, contudo, ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do nº 2 do art. 16º, (…) no seu artigo 29º, permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores aí enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática»”, acrescentando que “Isto significa que o nº 3 do artigo 18º deve ser interpretado como proibição de uma relativização absoluta dos direitos fundamentais, ao consagrar o princípio da excepcionalidade da restrição, que só deverá ser admitida quando se trate de salvaguardar um outro valor ou interesse constitucionalmente protegido”; (in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Português”, pág. 230 e segs.).

Acima de tudo, e apresentando-se-nos como essencial – e daí, também, “fundamental” – é que na aferição da adequação (legal) do exercício de um direito (fundamental) se proceda com objectividade na apreciação da “facticidade” em questão, (ponderando-se, em especial, o momento, o local, o modo, e outras circunstâncias do seu exercício), efectuando-se uma atenta análise do seu “regime legal”.

Ora, idêntica é – só pode ser – a situação em relação ao “direito de reunião e manifestação”.

Em conformidade com o exposto, (e cientes das nossas limitações), encaremos a “situação” dos presentes autos.

A “reunião (e manifestação)” que a recorrente pretende realizar tem como finalidade recordar – evocar – o incidente que ocorreu na madrugada do dia 03 para 04 de Junho de 1989 em Pequim, que constitui um “facto público” dado que, (pelo menos em parte), foi transmitido em directo por cadeias de televisão de todo o mundo, e que, pelas vidas perdidas constitui, sem dúvida, e cremos nós, compreensivelmente, motivo para “convicções e emoções fortes” de variados tipos e sentidos.

Constituindo o “direito à vida” o “bem supremo” de qualquer ser humano, inquestionável se nos mostra o que se deixou dito, (até mesmo porque inegável se apresenta o direito – “natural” – que a todos é reconhecido de expressar pesar pela morte de familiares e seus entes queridos).

Porém, (admitindo-se e respeitando-se eventual entendimento em sentido diverso), da mesma forma se nos mostra de considerar que o referido “incidente” foi objecto da “Deliberação do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular para a Repressão de Insurreições e para a Aplacação de Motins Anti-revolucionários”, aprovada em 06.07.1989, durante a 8.ª reunião do Comité Permanente da Sétima Assembleia Nacional Popular, (cfr., ponto “3.2.1” do despacho recorrido), não sendo igualmente de se olvidar não ser estes “Autos de Recurso” o “local” (próprio) para se reflectir e apreciar do que eventualmente se possa entender como “razões” das referidas “convicções e emoções”.

Constituem atribuições dos Tribunais “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir” – e não, fomentar! – “os conflitos de interesses públicos e privados”, (cfr., art. 4° da “Lei de Bases de Organização Judiciária”).

Assim, nesta conformidade se procederá na presente – como em todas as – lide(s) recursória(s), a esta Instância (apenas) cabendo, atenta a questão in casu colocada, decidir da “legalidade da decisão recorrida” (e da assacada “violação do reclamado direito”).

Isto dito – e considerando-se que inútil é uma Justiça que não se faz valer pela força dos seus argumentos, e que a mera força sem Justiça não passa de (pura) arbitrariedade – vejamos.

Ponderando-se no que habitualmente tem ocorrido em idênticas “reuniões e manifestações” pela mesma recorrente antes e continuadamente realizadas com o mesmo “tema”, (e na mesma data), e considerando, (nomeadamente), as suas “circunstâncias” assim como a “natureza” das “palavras de ordem” que naquelas se exibiram em cartazes e outras pinturas de variadas dimensões, (cfr., v.g., as fotografias pela entidade recorrida juntas ao despacho recorrido e à contestação), entendeu-se – em abreviada síntese – que a realização da reunião do próximo dia 04 de Junho era “contra-legem” por se apresentar em notória “violação do estatuído nos art°s 177°, 181° e 298° do C.P.M.”, (onde estão previstos os elementos típicos dos crimes de “publicidade e calúnia”, “ofensa a pessoa colectiva que exerça autoridade pública” e “incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido”), apresentando-se, também, em “oposição à boa fé da Administração e à ordem constitucional estabelecida na Constituição da República Popular da China”; (cfr., pontos 2° a 3° do despacho recorrido).

Por sua vez, ponderando na situação da “Pandemia do Coronavírus” a nível local, (regional e mundial), entendeu-se, também, e ao abrigo do art. 3° da Lei n.° 2/2004, (“Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”), que se impunha o dever (legal) de não permitir a dita reunião; (cfr., ponto 4° do dito despacho).

Ora, como atrás se deixou dito, a aferição da legalidade do exercício de um direito deve pautar-se por critérios de objectividade na apreciação da facticidade que lhe está subjacente e atenta análise do seu regime legal.

Atenta a “situação” em causa, afigura-se-nos que até se podem (e devem) introduzir juízos de (alguma) tolerância…

Porém – e como em tudo na vida – há, (tem de haver), limites…

Na verdade, e como já se referiu, os “direitos fundamentais”, e, como tal, o “direito de reunião e manifestação”, não é absoluto e isento de limites no que toca ao seu exercício; (cfr., art. 40° da L.B.R.A.E.M. e art. 1° da Lei n.° 2/93/M).

A referida Lei Básica repudia a “(…)discriminação em razão de nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social”, (cfr., art. 25°), e como tal, a todos é reconhecido o direito e liberdade em relação às suas “convicções políticas e ideológicas”, a todos cabendo, igualmente, o direito de se exprimir livremente – “liberdade de expressão”; art. 27° da Lei Básica – assistindo-lhe, assim, o direito de comentar, contestar, criticar e reprovar tudo o que entender e considerar desadequado, independentemente do assunto, tema, questão, pessoa ou entidade (pública ou privada) que com aquelas estejam relacionadas, (sob pena de “congelamento” do dito “direito”).

Porém, importa ter em conta que o exercício de tal direito de expressão, reunião e manifestação pode “colidir” com o exercício de outros direitos (também) fundamentais, sejam estes de terceiros particulares ou entidades públicas ou privadas, ou mesmo com interesses de “Ordem Pública” e de “toda a colectividade”, (como o “bem-estar geral”, a “Justiça”, a “Paz e a Segurança Pública”); (cfr., v.g., Miguel Salgueiro Meira in, “Os limites à liberdade de expressão nos discursos de incitamento ao ódio”; e Vitalino Canas in, “O princípio da proibição do excesso: em especial, na conformação e no controlo de actos legislativos”, onde com detalhe se aborda do “significado da razoabilidade”).

Admite-se, claramente, que no “processo criativo”, e enquanto se mantenha na esfera privada, a “liberdade de expressão” seja plena e possa não ter limites.

Porém, a exibição pública do resultado desta liberdade tem que respeitar os limites por Lei impostos.

Imagine-se, por exemplo, o trabalho de um pintor que faz um quadro de uma pessoa em momento da sua vida privada e na sua “intimidade”…

Se tal constituir a sua vontade, pode-o fazer, (e colocar na parede da sua sala).

Porém, se o vier a exibir em público, expondo, assim, a pessoa em causa a “humilhação e vexame público”, evidente se nos apresenta que tal conduta colide com o direito à privacidade e intimidade que ao visado legalmente assiste.

O mesmo pode suceder com uma “peça de teatro” cujo teor possa ofender a “moral pública” e que é levada a cabo em “sala fechada” e em “praça pública”…

Vale a pena deixar (bem) claro que os “excessos” na liberdade de expressão, reunião e manifestação não equivalem a (qualquer) “censura” por “opiniões”, “convicções”, “visões do mundo”, “humor negro” ou “sarcasmo”, nem podem ser pretexto para um “patrulhamento ideológico do politicamente correcto” ou do “cidadão perfeito”…

Uma coisa é a “censura”, (totalmente inadmissível), e outra coisa é a “responsabilização de pessoas” que extrapolam os limites dos seus direitos, (ultrapassando-os e) lesando com a sua conduta o “direito de outras”.

Como diz o ditado popular: uma liberdade acaba, (ou deve acabar), quando atinge a liberdade de terceiro, (ou como também se diz, “um direito termina onde começa o outro”).

Em caso de embate ou colisão entre a “liberdade de expressão” e a “necessidade de protecção à honra”, (ou outro direito), cabe verificar se a livre expressão que, no caso, atingiu a honra (ou dignidade) que a terceiro era devida, foi “necessária”, “moderada”, “razoável” e “proporcional”, e inexistindo um necessário “equilíbrio”, imperativa é a conclusão do excesso daquela.

Quando o suposto exercício do direito de livre expressão, reunião e manifestação dá lugar ao que se denomina de “fighting words”, ou seja, puras “agressões” e “insultos” (verbais), publicamente proferidas ou exibidas com clara intenção de ofender, chocar, atingir, diminuir, humilhar, apoucar ou achincalhar, claro se apresenta que (aquelas) não podem ser aceites, sob pena de se ter de admitir “abusos e ofensas sem limites”.

Como nota Eduardo Correia Batista, existe fundamento para determinar a proibição de uma manifestação quando o seu fim for contrário ao Direito Penal, uma vez, que o “Direito Penal é composto de normas (predominantemente de Ordem Pública) que podem, em diversos casos, constituir fundamento legítimo para proibir uma reunião”, sendo pois de se ter como legítima a proibição de uma manifestação, quando a comunicação prévia “constitua em si um crime público, avise da realização de uma reunião que constitua em si um crime, enquanto acto preparatório que seja penalmente sancionado em termos conformes com a Constituição”, ou quando seja admitida e revelada a intenção da prática de crimes públicos graves por parte dos manifestantes no decorrer da mesma; (in “Os direitos de Reunião e Manifestação no Direito Português”, pág. 208 e segs.).

Importa pois distinguir, e discernir – admitindo-se que nem sempre é fácil – entre a “opinião”, “fala retórica”, “comentário”, e até “crítica”, (ainda que destrutiva, negativa e dura), e a (verdadeira) “prática de uma ofensa à honra, dignidade, respeito, e consideração”.

Ponto que merece também (especial) destaque diz respeito às “figuras e/ou entidades públicas”.

Em virtude da referida qualidade (de “públicas”), estão, naturalmente, mais expostas a todo o tipo de considerações e observações.

Mostra-se, portanto, em certos aspectos, admissível uma maior ponderação e até tolerância quanto a “críticas” que lhes são tecidas e dirigidas.

Mas tal, (e ainda que assim seja), não pode – como é evidente – permitir o “vale tudo”…

Feitas estas considerações, que dizer da “situação dos autos”?

Será a decisão recorrida (legalmente) inadequada?

Ora, “negativa” se apresenta ser a nossa resposta.

Invocar-se o direito – fundamental – à “reunião e manifestação” para cobertura (e palco) de um planeado e deliberado ataque e insulto a Autoridades, Entidades e Instituições do Governo Central da República Popular da China, violando-se, grosseiramente, a honra, dignidade, respeito e consideração que lhes é devido, é, como se mostra óbvio, claramente inadmissível e de necessário repúdio.

Como se deixou explicitado na decisão recorrida, o recurso a expressões como “terror”, “massacre” e “matança” (e outras) – que pela sua própria natureza e sentido, implicam, (no mínimo), a causa da morte de um grande número de pessoas com “crueldade e desprezo” e com “intenção do seu extermínio”, fazendo recordar “episódios negros da história da Humanidade”, (como, v.g., os ocorridos em Nanjing e Auschwitz) – são, sem dúvida, inadmissíveis em qualquer espécie de evento público, sendo juízos que, atentas as circunstâncias, quando imputados a quem quer que seja, implicam, necessariamente, um evidente “excesso” no exercício do direito em questão, e uma clara e directa “ofensa à honra e consideração” do seu destinatário.

Da mesma forma, a utilização de expressões – como as supra referidas e outras – com claro propósito de incitar, incendiar e instigar à pública “oposição”, “combate”, “derrube” e (à própria) “extinção” das referidas Autoridades e Instituições, constitui, igualmente, uma conduta que ultrapassa o aceitável, não sendo de tolerar, atento, nomeadamente, o estatuído nos art°s 1° e 5° da Constituição da República Popular da China e art°s 1° e 12° da Lei Básica da R.A.E.M. quanto à “ordem e sistema constitucional estabelecido”; (cfr., v.g., Xu Chang in, “Nova reflexão sobre a relação entre a Constituição da República Popular da China e as Leis Básicas”, Revista “Administração”, Vol. XII, 1999, pág. 659 a 671; Wang Zhenmin in, “Uma tentativa de abordagem sobre a eficácia da Constituição nas Regiões Administrativas Especiais”, Revista “Administração”, Vol. XIX, 2006, pág. 967 a 975; Lok Wai Kin in, “A Constituição e a Lei Básica são base constitucional da Região Administrativa Especial”, Revista “Administração”, Vol. XXIII, 2010, pág. 383 a 395; e, Wang Yu in, “Interpretar «Volta a Assumir o Exercício da Soberania»”).

Assim – tendo-se presente o “momento”, “circunstâncias”, “objectivos” e previsíveis “efeitos” da pretendida reunião, e, não se podendo olvidar que à entidade recorrida, enquanto integrante das Forças de Segurança de Macau, cabe, não só, a “repressão criminal”, mas, mais importante ainda, a sua “prevenção”, (pois, como nota Germano Marques da Silva, “o que importa à colectividade (…) não é tanto punir os que transgridem, mas evitar, pelo adequado uso dos meios legais de dissuasão, que transgridam”, in “A Polícia e o Direito Penal”) – correcto se apresenta o “enquadramento jurídico” que em relação a este segmento decisório se entendeu fazer.

Dir-se-á – quiçá – que idênticas reuniões ou manifestações se tem vindo a realizar por dezenas de anos, (desde princípios dos anos 90), desde datas anteriores à entrada em vigor do Código Penal de Macau, (em 1995), e da transferência do exercício da soberania sobre Macau para a República Popular da China, (em 20.12.1999), podendo-se, mesmo, invocar, eventualmente, o princípio da “continuidade do modo de vida – e “maneira de viver” – em Macau por 50 anos” consagrado na Lei Básica da R.A.E.M.; (cfr., v.g., o seu Preâmbulo, e art°s 5° e 11°).

Ora, este é – certamente – um ponto de vista.

Porém, (em face da “questão decidenda” e do seu “contexto”), não se tem por adequado.

A “situação” que se deixou exposta, constitui, como se viu, uma evidente prática de “ilicitudes” que integram, nomeadamente, um sério risco de graves violações de dispositivos legais do Código Penal que “hoje vigora em Macau”, e sem embargo do muito respeito que nos merece o aludido “princípio da continuidade”, o mesmo, não pode, de forma alguma, significar, ou implicar, considerações no sentido de se permitir a “impunidade” e “irresponsabilidade” de condutas abusivas e ofensivas (de natureza explicitamente criminal), até mesmo porque, como sabido é, a prática, ainda que contínua e reiterada de uma “ilegalidade”, não a transforma em “legalidade”; (cfr., sobre “aspecto” próximo, o estudo de Leonardo Alves de Oliveira, com o título “A sétima dimensão dos direitos fundamentais”, e em que se refere ao extremo de um “direito fundamental à impunidade”).

No que toca à pela entidade recorrida invocada “Pandemia do Coronavírus”, entende-se que a “situação” se apresenta (integralmente) idêntica à que justificou a prolação do (atrás já referido) Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 29.05.2020, tirado no Proc. n.° 58/2020, em relação a idêntica questão, (sobre o “direito reunião e de manifestação”).

Dest’arte, e dando-se aqui como reproduzido o que no referido aresto se consignou, e censura também não merecendo assim o nesta parte considerado na decisão recorrida, resta concluir pela improcedência do recurso.

Decisão

3. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça de 3 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, nada vindo de novo, dêem-se baixas com os averbamentos necessários.

Macau, aos 03 de Junho de 2021



Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) [Com a declaração que segue:
1. Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, considerando que o presente recurso é de “plena jurisdição” – cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 13.01.2010 e de 04.05.2010, Procs. n°s 24/2009 e 21/2010, podendo assim este Tribunal reformular a decisão administrativa recorrida – cremos que se podia avançar para uma solução no sentido de se permitir a pretendida “reunião/manifestação” desde que expurgada de todos os seus “elementos abusivos e ofensivos”.
2. No que toca à “Pandemia do Coronavírus”, mantenho o que consignei na declaração de voto que juntei ao Ac. deste T.U.I. de 29.05.2020, Proc. n.° 58/2020].
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 81/2021 Pág. 22

Proc. 81/2021 Pág. 21