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Processo nº 281/2021
Data do Acórdão: 06MAIO2021


Assuntos:

Recurso jurisdicional
Suspensão de eficácia de actos administrativos
Suspensão do estágio de advocacia
Natureza de sanção disciplinar
Prejuízos de difícil reparação


SUMÁRIO

Não reveste a natureza de sanção disciplinar a deliberação tomada pela Direcção da Associação dos Advogados de Macau, que decidiu suspender a inscrição, como advogado estagiário, com fundamento na reprovação em exames finais de estágio.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 281/2021


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos de suspensão de eficácia, que correm os seus termos no Tribunal Administrativo sob o número 180/21-SE, de que é requerente A, foi proferida a seguinte sentença deferindo o pedido:
I. Relatório
  Requerente A, melhor identificado nos autos, vem instaurar,
  O procedimento cautelar da suspensão de eficácia
  Da deliberação da Direcção da Associação dos Advogados de Macau, de 30/12/2020, que lhe suspendeu a inscrição como advogado estagiário pelo período de um ano, com efeitos a partir de 11 de Janeiro de 2021, com os fundamentos constantes a fls. 2 a 3 dos autos.
*
  Contestou a Entidade requerida, pugnando pelo indeferimento da providência, com os fundamentos constantes a fls. 67 a 85 dos autos.
*
  O digno Magistrado do M.ºP.º emitiu o parecer a fls. 91 a 93 dos autos, promovendo o indeferimento da providência, por não se mostrarem preenchidos os requisitos legalmente estabelecidos, cujo teor se transcreve no seguinte:
  “…Com os fundamentos e argumentário constante de fls. 2 a 3, A, advogado estagiário, vem requerer que seja decretada a suspensão de eficácia da deliberação proferida pela Direcção da Associação dos Advogados de Macau (AAM) “que suspendeu a respectiva inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano, com efeitos a partir de 11 de Janeiro de 2021”.
  Invoca o Requerente que, na sequência daquela Deliberação e no dia 6 de Janeiro do ano em curso, foi “relembrado” de que, para além do mais, deveria “entregar a respectiva cédula profissional e cartão de beneficiário do acesso aos cuidados de saúde nos serviços administrativos da AAM...”, o que, protesta, lhe causará “prejuízos irreparáveis”, seja no que concerne à vertente prática da respectiva formação, seja em termos de perda de honorários que poderia auferir no exercício das competências profissionais próprias de advogado estagiário, seja, ainda, em termos do consequente (não) acesso aos cuidados de saúde gratuitos, convencionados para os advogados e advogados estagiários.
  Contestou a Entidade Recorrida, conforme douto articulado de fls. 67 a 85, pugnando pelo não provimento do recurso, pois que o Recorrente não terá logrado (ainda que de forma indiciária) demonstrar o preenchimento dos pressupostos em que baseia a alegacão de que a deliberação em causa nos autos é/será causadora de “prejuízos irreparáveis”; mais refere a mesma entidade que a eventual procedência da pretensão do Requerente se traduziria numa “instrumentalização dos autos”, consubstanciado no facto de, em tal caso, o Requerente poder aceder à realização das provas escritas do Exame Final de Estágio, designadas para os dias 20 e 27 do mês em curso; afirma, assim e também, a Entidade Recorrida que tal situação não só se traduziria na não aplicação da previsão constante do artigo 35.º, n.º 10, do Regulamento de Acesso à Advocacia (norma cuja validade ou aplicação o Requerente não contesta), como também colocaria o Requerente em situação de “vantagem ilegítima” em relação a outros (dez) advogados estagiários igualmente suspensos, pelos mesmos motivos, e os quais não irão realizar o referido Exame Final de Estágio.
  Finalmente, alega a Entidade Recorrida que a eventual procedência da pretensão do Requerente seria susceptível de constituir “...um sério risco para a Justiça e para os interesses e direitos da comunidade de Macau”, assim como “...implicará grave prejuízo para o interesse público”, conforme melhor resulta dos argumentos trazidos aos autos nos termos e para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 126.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (cfr. fls. 33 a 43).
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  Afigurando-se que os elementos acima recenseados traduzirão, nos seus traços essenciais, a questão a decidir e os argumentos aduzidos pelo Requerente e pela Entidade Recorrida, desde já se antecipa que, na perspectiva do signatário, a pretensão formulada pelo Requerente não terá, na realidade, sustentação suficiente para proceder.
  Com efeito e ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, afigura-se que, na realidade, o Requerente não logrou demonstrar que a efectivação da deliberação cuja execução pretende ver suspensa lhe causará prejuízos de difícil reparação, na exacta medida em que a avaliação e reparação dos danos que daquela execução lhe possam advir, a verificarem-se, não serão impossíveis nem, quer-se crer, muito difíceis de efectuar.
  Com efeito, e apenas em termos de “prejuízos materiais”, acredita-se que será sempre relativamente simples calcular a efectiva perda de rendimentos que, da respectiva suspensão como advogado estagiário, poderá advir para o Requerente, simplicidade essa derivada também do facto de, conforme refere a Entidade Recorrida, “apenas” lhe estar vedado anunciar-se como advogado estagiário e/ou, em tal qualidade, intervir directamente em processos judiciais ou prestar consultaria jurídica; acresce, ainda e como igualmente referido pela Entidade Recorrida, desde 2019 todos os advogados estagiários com mais de cinco anos de inscrição no estágio – como sucede com o ora Requerente – não são considerados para efeitos de integrarem as escalas para nomeações oficiosas pelo que, também nesta perspectiva, a existir alguma perda de rendimento do Requerente a mesma seria apenas marginal e derivada de erros/lapsos na respectiva nomeação, atenta a comunicação anualmente efectuada pela Entidade Recorrida dos advogados estagiários que se encontram em tal situação.
  Ou seja, o cálculo dos prejuízos materiais decorrentes da impossibilidade de prática dos sobreditos actos será (seria) sempre relativamente simples de efectuar.
  Paralelamente e no que concerne aos prejuízos para a respectiva formação, quer-se crer que os mesmos não serão de relevar, na medida em que não nada impedirá o Requerente de assistir a diligências processuais – por via de regra, públicas – e/ou de continuar a frequentar o escritório do respectivo patrono, acompanhando o mesmo nos mais diversos actos da prática diária de um escritório de advocacia embora, naturalmente, sem poder praticar os actos reservados a advogados e/ou advogados-estagiários.
  Considerando que “Cabe ao requerente o ónus de alegar e provar os factos integradores do conceito de difícil reparação, fazendo-o por forma concreta e especificada, não sendo bastante a mera utilização de expressões vagas e genéricas”, assim como que igualmente “Cabe ao requerente o ónus da prova do requisito da alínea a) , bem como do nexo da causalidade entre a execução e os prejuízos”, impõe-se afirmar que o Requerente não terá logrado, de todo, demonstrar que a execução da Deliberação da Direcção da AAM o colocará numa situação de “privação de rendimentos geradora de uma situação de carência quase absoluta e de impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares” [importando, a este propósito, referir que apesar de a Entidade Recorrida (cfr. artigo 65.º da contestação junta aos autos) afirmar que o Requerente tem a condição de funcionário público aposentado, tal afirmação é pelo mesmo infirmada].
  Não obstante se partilhe do entendimento de José António Valente Torrão de que “Em princípio, a procedência da suspensão depende da verificação cumulativa dos requisitos enunciados no n.º 1, bastando a não verificação de um deles para que a providência não seja decretada” (destaque e sublinhado meu), ainda que de forma sucinta, importa referir que, na perspectiva do signatário, também os requisitos estabelecidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso se não verificam preenchidos, assim não podendo proceder a pretensão do Requerente.
  Na verdade, e analisando o pedido formulado à luz da exigência de que “a suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto” – cfr. citada alínea b) – e mesmo tendo em atenção que “... não é qualquer lesão de interesse público que obsta à suspensão da eficácia do acto, mas apenas aquele interesse público concretamente prosseguido pelo acto”, afigura-se que, na realidade, a norma contida no n.º 10.º do artigo 35.º do RAA, prossegue também um relevante fim/interesse público, máxime o da qualidade dos serviços de advocacia proporcionados à comunidade macaense por todos os profissionais que abracem tal profissão após terem, com sucesso, enfrentado as diversas etapas (formativas e avaliativas) definidas pela AAM, entidade a quem foi reconhecida competência para tal efeito.
  E como bem alerta a Entidade Recorrida, o facto de a pretensão ora em apreço ter sucesso poderia, no limite, conduzir a uma situação não só geradora de grande perplexidade na comunidade em geral, mas também de enorme insegurança jurídica, pois se o Requerente fosse admitido a submeter-se aos exames designados para os dias 20 e 27 do mês em curso e nos mesmos tivesse sucesso, assim podendo vir a advogar no futuro imediato e, posteriormente, o acto sob recurso fosse judicialmente confirmado, tal contaminaria, necessária e inapelavelmente todas as decisões em que o ora Requerente, entretanto, tivesse sido admitido a intervir como advogado/patrono – quando, afinal, o não podia fazer – o que se tem como absolutamente catastrófico em termos de (in)segurança jurídica e, consequentemente, do interesse público.
  Finalmente e no que concerne à alínea c) da norma sob análise, importa tão-só e liminarmente, referir que do processo nada resulta quanto à (i)legalidade do recurso.
  À luz de quanto antecede, conclui-se no sentido de que deve a ser indeferida a pretensão formulada pelo Requerente, por não se mostrarem preenchidos os requisitos legalmente estabelecidos para que a mesma pudesse ter sucesso…”
*
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, ou questões prévias que obstem à apreciação “de meritis”.
***

II. Fundamentação
  1. De facto
  Resulta provada por documentos, a seguinte factualidade pertinente:
  1) Por carta de 6/1/2021, foi comunicada ao Requerente a deliberação da Direcção da Associação dos Advogados de Macau de 30/12/2021, cujo teor se transcreve no seguinte:
  “…Assunto: Suspensão da sua inscrição como advogado estagiário
  …
  Vimos, pelo presente, informá-lo de que, em reunião da Direcção da Associação dos Advogados de Macau, de 30 de Dezembro de 2020, foi deliberado, de acordo com o disposto no n.º 10, do art.º 35.º, do Regulamento de Acesso à Advocacia (R.A.A.), suspender a sua inscrição, como advogado estagiário, com efeitos a partir de 11 de Janeiro corrente, na sequência da sua reprovação em mais um exame final de estágio.
  …
  Tal inscrição ficará suspensa pelo período de um ano, após o qual se deve sujeitar à avaliação final de estágio seguinte. A falta ou reprovação a esta, terá como efeitos os descritos no n.º 11 do referido artigo.
  …
  Aproveitamos a oportunidade para relembrar que, nos termos do artigo 12.º, n.º s 3 e 4, do R.A.A., deverá entregar a sua cédula profissional e o seu cartão de beneficiário do acesso aos cuidados de saúde, nos serviços administrativos da AAM, bem como providenciar pelo encaminhamento dos assuntos dos seus clientes ainda pendente ao momento da suspensão, e ainda remover ou ocultar todas as placas de identificação que lhe respeitem.
  …
  Desta deliberação cabe recurso contencioso para o Tribunal Administrativo, a interpor no prazo de trinta dias.
  …” (conforme o doc. junto a fls. 12 e 13 dos autos de recurso contencioso).
  
  2) Em 23/2/ 2021, contra o supra-referido despacho, o Requerente instaurou o procedimento da suspensão da eficácia neste Tribunal.
*

2. De direito
  Face à factualidade apurada acima, cumpre-nos apreciar e decidir.
  
  Desde logo, do acto suspendendo, ou seja, o acto da suspensão da inscrição do Requerente como advogado estagiário, decorre uma alteração na prévia situação jurídica do Requerente. Trata-se, por isso, do acto que tenha conteúdo positivo, sendo susceptível de ser objecto da suspensão da eficácia nos termos do art.º 120.º, alínea a) do CPAC.
  
  Conforme estabelecido no disposto no n.º 1 do art.º 121.º do CPAC, a suspensão da eficácia dos actos administrativos é concedida quando, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 da norma, se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
  - A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o Requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso contencioso; -
  - A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente produzido pelo acto; e
  - Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
  
  Na situação vertente, do processo não resultam fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso, mostra-se assim verificado o requisito previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC.
*
  No que diz respeito ao requisito de providência previsto na alínea b) do referido preceito legal, como é sabido, tal requisito negativo previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC funciona como facto impeditivo da pretensão do requerente, na medida em que o ónus da alegação e da prova da sua existência cabe à Requerida, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, quando, perante as circunstâncias do caso, seja manifesta ou ostensiva essa grave lesão (veja-se, Viriato Lima e Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso, Anotado, CFJJ, 2015, pp. 349 a 350).

Sustenta a Requerida que a suspensão determina grave lesão do interesse público concretamente produzido pelo acto porque: a suspensão provisória da deliberação possibilita ao Requerente realizar o próximo exame final marcado nos dias 20 e 27 do corrente mês de Março de 2021, o que não apenas colocaria o Requerente em situação de vantagem ilegítima perante os restantes 10 advogados, como também prejudicaria o interesse público sob protecção da norma do n.º 1 do artigo 11.º do Estatuto do Advogado, aprovado pelo DL n.º 31/91/M, de 6 de Maio, na medida em que permitiria os advogados inabilitados para serem inscritos como advogados, constituindo um sério risco para a justiça e para os interesses e direitos da comunidade de Macau.

É boa verdade que qualquer acto administrativo prossegue um determinado interesse público, enquanto que o procedimento cautelar da suspensão de eficácia visa o entorpecimento provisório dos efeitos normais do acto administrativo. Contudo “não se pode argumentar que, prosseguindo acto administrativo, pelo seu próprio conceito, um fim de interesse público, a sua não execução origine sempre danos para a concretização desse interesse público. É que no âmbito da suspensão da eficácia exige-se a verificação de grave lesão do interesse que é pressuposto de toda a intervenção da Administração”, segundo o que afirma Maria Fernanda Maçãs (cfr. Viriato Lima e Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso, Anotado, CFJJ, 2015, cit., p. 349).

  Portanto, “A grave lesão para o interesse público também deve ser apreciada nas circunstâncias do caso concreto, tendo em conta os fundamentos do acto e as razões invocadas pelo requerente e requerido, não devendo presumir-se, nem confundir-se com qualquer lesão do interesse público (que teria sempre de dar-se por existente, salvo porventura se o acto fosse evidentemente ilegítimo) ”(cfr. José Carlos Viera de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 2.ª edição, p. 169).
  
  Pese embora a argumentação insistente da Entidade requerida, vemos com dificuldade que neste caso concreto, os interesses públicos estejam gravemente postos em causa por um eventual decretamento da providência da suspensão.
  
  Se os advogados estagiários que viram suspensa sua inscrição na ordem da advocacia, por efeito de uma tutela cautelar que lhes seja concedida através da presente providência, acabam por conseguir passar o próximo exame final que viria a ser realizada, ficará então naturalmente demonstrada sua aptidão profissional no exercício da actividade durante todo o período da pendência da acção principal. Inexiste portanto tal “sério risco para a Justiça e para os interesses e direitos da comunidade de Macau”.

  Caso, pelo contrário, aqueles venham a ser novamente reprovados nesse exame final, continuarão sua carreira enquanto estagiário até à manutenção do acto suspendendo pela transitada decisão judicial proferida em sede do recurso contencioso, exercendo, assim, de forma limitada e nos termos legais, a respectiva função. Também não se pode, por isso, afirmar assertivamente como grave a lesão do interesse público originada pela não execução imediata do acto.
  Mais alega a Requerida que o eventual sucesso do Requerente na obtenção da tutela cautelar inutilizará os meios judiciais, tais como o recurso contencioso de anulação, uma vez que este consegue assim por via indirecta uma tutela definitiva da sua posição jurídica substantiva.

  Salvo o melhor entendimento, não podemos acompanhar esta tese de “instrumentalização dos presentes autos para tal finalidade”, já que a tutela judicial cautelar, certamente, nunca se pode confundir com a tutela definitiva.
  
  Como consequência da concessão da suspensão da eficácia, o Requerente poderá ser admitido ao próximo exame final, e seguidamente, poderá ter sucesso, conseguindo, fazer inscrever na respectiva ordem, o que é fora de dúvida. Porém, tudo isso pressupõe a procedência do recurso contencioso interposto do acto suspendendo, com o consequente desaparecimento deste na esfera jurídica do interessado, operado pela anulação judicial.
  
  No caso de o acto suspendendo chegar a ser finalmente mantido, ou se este acto não vier a ser contenciosamente impugnado não obstante a prévia concessão da providência, o mesmo voltará a produzir todos os seus efeitos normais no ordenamento jurídico.
  
  Como se sabe, apesar de não ser uma fonte de direito, o acto administrativo pode ser qualificado como fonte de efeitos jurídico-administrativos, na medida em que determina a produção unilateral dos efeitos jurídicos que “se dirigem primacialmente a constituir, modificar, ou extinguir situações jurídicas de Direito Administrativo” (Veja-se neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, O Novo Regime do Código do Procedimento Administrativo, p. 222).
  
  Em virtude da presença daquele acto válido e eficaz, decairão todos os actos posteriores que tenham por condição necessária a conclusão do exame final por quem com a qualidade do estagiário. Nesta linha, dificilmente se vislumbra como uma decisão da providência satisfaz definitivamente o interesse do Requerente, sem necessidade de qualquer acção principal.

  Compreende-se, como de resto, a “enorme insegurança jurídica”, nas palavras do digno Magistrado do Ministério Público, ocasionada por eventual sucesso da pretensão do Requerente. Mas tal “insegurança” não deixa de ter sua fonte legítima, porque prende-se, precisamente, com a natureza precária dos próprios efeitos provenientes da tutela cautelar. A mesma situação surge, aliás, com a suspensão de todos as decisões administrativas inibitórias da actividade. Não se vê razões para sobrevalorizar tal insegurança jurídica no sentido de fundamentar a existência da grave lesão do interesse público.
  
  Em todo o caso, não se pode ter como verificada a condição impeditiva da pretensão do Requerente, tal como invocada pela Requerida. Mostra-se preenchido assim o requisito previsto na alínea b) do artigo 121.º do CPAC.
*
  Por sua vez, quanto à questão de saber se a execução do acto causa previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o ora Requerente, parece-nos aqui que a posição da Requerente não seria de sustentar, considerando que os alegados prejuízos, tanto os patrimoniais – a perda dos honorários, a consequente privação do acesso aos cuidados de saúde gratuitos, como os não patrimoniais – a privação da formação legalmente confiada ao estágio - pelo respectivo grau da intensidade, poderão ser satisfeitos com a utilização dos meios processuais, ou seja, em acção indemnizatória que eventualmente venha a ser instaurada, acaso se venha a demonstrar a ilicitude da actuação administrativa aqui em causa (cfr. neste sentido, Acórdãos do TUI, Proc. n.º 69/2018, de 27/9/2018, Proc. n.º 33/2009, de 4/11/2009, Proc. n.º 35/2016, de 29/6/2016, Proc. n.º 117/2014, de 26/11/2014).
  
  Não se olvida, não obstante isso, que a exigência da verificação deste requisito particular deixa de ser necessária quando está em causa o acto com natureza de sanção disciplinar, nos termos do disposto do n.º 3 do artigo 121.º do referido diploma legal. Neste caso, é bastante a verificação dos dois restantes requisitos negativos das alíneas b) e c) dessa norma pra a concessão da suspensão.

  E o acto suspendendo comporta tal natureza?
  
  A norma que que integra o Regulamento de Acesso à Advocacia, aprovado pela Assembleia Geral da AAM, nas reuniões em Maio de 2017 e que serviu de base ao acto suspendendo, tem a seguinte redacção:
“Artigo 35.º
(Avaliação final de estágio)
  …
  10. A reprovação em três avaliações finais determina a suspensão da inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano, após o qual o advogado estagiário deverá sujeitar-se à avaliação final do estágio que venha a ter imediatamente lugar.
  ….” (conforme o doc. junto a fls. 15 a 19 dos autos do Recurso contencioso, proc. n.º 3008/21-ADM).
  
  À partida, o acto da suspensão da inscrição que tenha suprimido, ao abrigo da norma acima citada, o direito ao exercício da actividade profissional dos estagiários por período de um ano, tem evidentemente uma natureza sancionatória.
  
  À parte disso, trata-se, aqui, de uma reacção sancionatória aos candidatos que“ foram objectivamente considerados como ainda não habilitados pra serem inscritos como advogados”, e que, no entender da Requerida, não possam, depois de terem completado vários anos de período de estágio, continuar a praticar os actos próprios de advocacia. E, nesta perspectiva, o que o acto ora praticado visava foi, precisamente, salvaguardar a efectividade da norma no artigo 11.º, n.º do Estatuto do Advogado onde se dispõe, “Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Associação dos Advogados de Macau podem…praticar actos próprios da profissão e designadamente, exercer o mandato judicial de consulta jurídica em regime da profissão liberal remunerada” (conforme o alegado nos artigos 78.º a 79.º da contestação).

  Seguindo esta tese da Requerida, daquela norma resulta, implicitamente, que os advogados estagiários, no período em que o estágio decorre, têm o dever de fazer uma boa preparação para as avaliações finais organizadas, a fim de demonstrar sua aptidão profissional no exercício da advocacia.
  
  Pois, entendemos, tal como entendeu a Requerida, que atenta à extrema importância da função de advocacia para “a Justiça e para os interesses e direitos de comunidade de Macau”, constitui um dever funcional inerente a qualidade de advogado, estagiário ou não, o dever de competência profissional com vista a garantir o exercício da actividade com consciência, profissionalismo e com um elevado sentido de justiça e probidade. Uma vez que com a exigência da competência profissional nas dimensões de conhecimentos e capacidades, se poderia assegurar a colaboração efectiva e integral de qualquer advogado na administração da justiça, no sentido de “pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições”, conforme se prevê no artigo 12.º, n.º 1 do Código Deontológico, homologado pelo Despacho n.º 121/GM/92.
  
  Neste sentido, o facto de um estagiário ter sido reprovado nos sucessivos exames finais representaria, de alguma maneira, a falta daquele de uma preparação técnica necessária à execução da tarefa que lhe é incumbida, consubstanciando-se assim como um ilícito disciplinar, caracterizado pela violação do dever funcional.

  Como é conhecido, na noção que nos é dada pelo artigo 281.º do ETPAM, é infracção disciplinar “o facto culposo, praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado.” Da mesma forma, constitui a infracção disciplinar dos advogados “a violação culposa, por acção ou omissão, dos deveres consignados no Estatuto do Advogado, no Código Deontológico e nas demais disposições em vigor.”, nos termos do disposto no artigo 2.º do Código Disciplinar dos Advogados, homologado pelo Despacho n.º 53/GM/95.
  E naturalmente, a sanção enquanto a resposta censuradora ao ilícito disciplinar tem a natureza disciplinar.
  
  Além do mais, a sanção ora determinada pela Requerida é análoga à pena disciplinar prevista no artigo 41.º, n.º 1, alíneas d) a f) do Código Disciplinar dos Advogados quanto à espécie, e com a duração do período de um ano que se posiciona acima da respectiva pena da alínea d) – 10 a 180 dias.
  
  Pelo que fica dito acima, o acto suspendendo reveste os contornos materiais de uma verdadeira sanção disciplinar.
  
  Não obstante, pode-se questionar se relativamente à suspensão da eficácia de um acto sancionatório previsto fora do Código Disciplinar dos Advogados, determinado por um órgão sem competência disciplinar e fora da âmbito de um procedimento, é ainda possível dispensar a verificação do requisito de “prejuízo de difícil reparação”, com base no n.º 3 do artigo 121.º do CPAC.
  
  É certo que a sanção aqui falada não tem configuração de uma pena disciplinar formal. Mas não menos certo é que a qualificação substantiva de um acto não depende da vontade do seu autor, nem da do autor da norma que o estabeleça, ou do lugar onde tal acto esteja concretamente inserido.

  Ao que nos parece, o Legislador quando referindo naquela norma “…actos com a natureza de sanção disciplinar”, deu preferência a um critério material, em desfavor de um meramente formal – ou melhor dizendo, tencionando abranger nesta norma não apenas as penas disciplinares formais, como também outras sanções que embora não tenham sido configuradas “nominalmente” como penas disciplinares, materialmente revestem tal natureza.
  
  Termos em que é forçoso concluir pela natureza de sanção disciplinar do acto suspendendo, devendo por isso conceder a suspensão da eficácia do acto pela verificação dos requisitos previstos na alínea b) e c) do artigo 121.º do CPAC.
*
  Como nota final, consideramos ser ainda necessário referir quanto à questão da eficácia do acto suspendendo na pendência da presente providência, tendo em especial consideração o facto de que a Requerida, citada para contestar, comunicou a este Tribunal que reconheceu grave prejuízo para o interesse público na não imediata execução.
  
  Decorre do disposto do artigo 126.º do CPAC que a suspensão provisória da eficácia do acto administrativo, por regra, opera-se, ope legis, com o recebimento da citação pelo órgão administrativo, salvo que “o órgão administrativo reconheça fundamentadamente e por escrito, no prazo de 3 dias, grave prejuízo para o interesse público na não imediata execução” e esse reconhecimento seja “imediatamente comunicado ao tribunal”.
  
  No caso em apreço, conforme resulta dos autos, a comunicação foi feita pelo advogado mandatário da Requerida, assim concluindo que “reconhecendo a Requerida, nos termos do disposto do art.º 126.º n.º 2, do CPAC, que existe grave prejuízo para o interesse público na suspensão provisória da sua deliberação cuja eficácia é posta em causa através do presente meio processual, não pode a mesma operar, devendo tal deliberação continuar a operar os seus efeitos,….”

  Importa dizer que a comunicação assim realizada não vale, nunca sendo apta a impedir a suspensão provisória da eficácia do acto administrativo, já que “A decisão a reconhecer, fundamentadamente e por escrito, no prazo de 3 dias, grave prejuízo para o interesse público na não imediata execução só pode ser tomada pelo órgão administrativo autor do acto ou evidentemente, pelo seu substituo legal, mas não por qualquer outra entidade, seja assessor, mandatário forense ou jurista que subscreva a contestação” (cfr. Viriato Lima e Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso, Anotado, CFJJ, 2015, cit., p. 368, e no mesmo sentido, o Acórdão do TSI, de 21/7/2911, no Proc n.º 464-A/2011).
  
  A Lei foi clara no sentido de reconhecer ao “órgão administrativo” tal faculdade, porquanto o que está em causa não é a prática de um acto processual que competia ao mandatário forense, mas sim uma decisão administrativa emanada por órgão administrativo, ou autor do acto suspendendo, no exercício da respectiva competência.
  
  Por outro lado, a suspensão provisória do acto suspendendo mantém-se até à prolação da decisão final e não até ao seu trânsito em julgado. Significa isto que se a decisão veio a indeferir a providência, terá a parte desfavorecida interpor o recurso jurisdicional com efeito suspensivo da decisão, para que se mantenha a suspensão provisória do acto suspendendo nos termos do artigo 126.º, n.º 1 do CPAC.
  
  No caso de ser proferida a decisão que suspende a eficácia do acto, o eventual recurso desta decisão tem efeito meramente devolutivo, ou não suspensivo da decisão – nos termos do artigo 155.º, n.º 2 do CPAC. Por consequência, opera-se a execução provisória da decisão em primeira instância, sem se esperar pela decisão definitiva do recurso. Foi o que sucedeu no caso concreto.

  Em síntese:
  - no pressuposto da ineficácia da comunicação impeditiva da suspensão provisória da eficácia do acto nos termos do artigo 126.º, n.º 2 do CPAC, o acto fica suspenso provisoriamente até à decisão da primeira instância.
  - proferida a decisão de suspensão da eficácia do acto, o acto continua suspenso por força da execução provisória desta decisão, haja ou não recurso jurisdicional da mesma para o Tribunal de Segunda Instância.
  
  Resta decidir.
***

3. Decisão
  Assim, pelo exposto, decide-se:
  Julgar procedente a providência requerida, deferindo a suspensão da eficácia do acto praticado pela Entidade requerida.
*
  Sem custas pela Entidade requerida, por ser subjectivamente isenta.
*
  Registe e notifique.

Notificada e inconformada com a sentença deferindo o pedido de suspensão, veio a entidade requerida, interpor o presente recurso jurisdicional da mesma para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:
1. A douta sentença recorrida, considera que o acto em causa - deliberação da Recorrida, de 30 de Dezembro de 2020, tem “natureza disciplinar”;
2. Tal natureza inclui o acto em causa no âmbito do disposto no art.º 121.º, n.º 3, do CPAC, não sendo, em consequência, necessária a verificação do preenchimento do requisito cstatuído na al. a), do n.º 1 da mesma norma;
3. A douta sentença ora recorrida não julga terem sido dados como provados todos os requisitos das alíneas do n.º 1, do art.º 121.º, do CPAC, sendo explícita quando refere que o requisito do prejuízo de difícil reparação, previste na alínea a) daquela norma, não se encontra dado como provado pelo Recorrido;
4. Aliás, note-se que o Recorrido nem sequer alegou a natureza disciplinar do acto em causa ou da norma do art.º 35.º, n.º 10, do Regulamento do Acesso à Advocacia (RAA) que o acto em causa apenas cuidou de aplicar, tal como competia à Recorrida;
5. No entanto, o tribunal a quo exclui a necessidade da verificação de tal requisito ao considerar que o acto em causa tem natureza disciplinar, na medida em que “... o facto de um estagiário ter sido reprovado nos sucessivos exames finais representaria, de alguma maneira, a falta daquele de uma preparação técnica necessária à execução da tarefa que lhe é incumbida, consubstanciando-se assim como um ilícito disciplinar, caracterizado pela violação do dever funcional” - págs. 12 da douta sentença recorrida (sublinhados nossos);
6. Não podemos estar mais em desacordo com esta interpretação sobre a questão, por ser demasiado extensiva relativamente ao âmbito dos conceitos de “ilícito disciplinar” e de “natureza disciplinar do acto”, âmbito que não pode ser alcançado in casu;
7. A ser assim, todo o candidato a uma vaga no desempenho de uma função, que não preencha os requisitos para o exercício dessa mesma função, mormente por falta de preparação técnica para o desempenho da mesma, será considerado como “infractor” para efeitos da norma do n.º 3, do art.º 12.l.º, do CPAC;
8. O exemplo do estatuído no art.º 17.º, n.°s 1, 2 e 3 do Estatuto dos Magistrados (Lei 10/1999), bem como na norma do art.º 54.º, n.º 2, desse mesmo Estatuto, é manifesto, seja nas situações contempladas, seja nas respectivas consequências, nos termos em que cima referimos em sede de alegações, para os quais ora remetemos para todos os devidos efeitos, em comparação com o presente caso;
9. Nestas normas também se englobam no âmbito do “sistema de regulação do acesso à magistratura” mas nunca no âmbito disciplinar;
10. Aliás. no âmbito da aplicação do art.º 54.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados, através do competente acto para o efeito, não passaria pela mente do candidato a magistrado interpor e obter provimento em sede de providência cautelar de suspensão de eficácia de tal acto;
11. E a razão de assim ser prende-se com os riscos que comporta para o interesse público, mormente para a Justiça e para o sistema jurídico da RAEM, a continuação no exercício de funções de um “candidato” à magistratura que se revele "incompetente" para aquele exercício;
12. Relativamente aos advogados, servidores da Justiça, protectores dos Direitos e Interesses dos cidadãos da RAEM, o pensamento não pode ser diferente, estando em causa, no limite, para os candidatos à advocacia, exactamente os mesmos princípios de interesse público que fundamentam o sistema de provimento dos senhores magistrados;
13. À Associação dos Advogados de Macau (AAM), aqui representada pela Recorrida, seu órgão directivo, pessoa colectiva de direito público, foí atribuído o mandato de zelar pela qualidade dos serviços prestados pelos advogados que a mesma foi também incumbida de acreditar - art.º 30.º, n.º 1, als. a), b) c) e d) do EA;
14. Tais competências, foram atribuídas com a intenção de transmitir à AAM os instrumentos necessários para auxiliar na dignificação e protceção da Justiça, do Directo de Macau e do seu Sistema Jurídico, zelando pela qualidade dcs serviços prestados por quantos nela se encontram registados e por ela são acreditados como “servidores da Justiça”, na qualidade de advogados, com a possibilidade, de pleno direito e de forma definitiva, realizarem actos próprios da advocacia - vide os art.ºs 1º e 11.º e ss. do Código Deontológico (CD), homologado pelo Despacho n.º 121/GM/92, publicado no B.O. n.º 52, I Série, 5.º Suplemento, de 31.12.1992;
15. Na sequência de tal atribuição, são incumbências desta Associação, nos termos do disposto no art.ºs 19.º, n.º 3 e 30.º, n.º 1, alíneas a) e b), do EA, e no art.º 3.º, alínea b) dos seus próprios estatutos (Estatutos da Associação Pública dos Advogados de Macau - EAMM), regulamentar o exercício da profissão e atribuir o título profissional de advogado;
16. A AAM leva muito a sério tais competências, sempre com a consciência de que, do cabal cumprimento das mesmas depende, em muito, a qualidade da Justiça para os cidadãos da RAEM, através dos serviços que os advogados lhes prestam;
17. Aliá, não faria qualquer sentido que à AAM não fosse igualmente dada a faculdade de, tal como acontece com a magistratura, poder “suspender o exercício de funções” os candidatos a advogados que não se mostrem minimamente preparados, habilitados ou capacitados para tal exercício;
18. O acesso ao título de advogado e de advogado estagiário, é disciplinado pelo Regulamento do Acesso à Advocacia (RAA), cujo art.º 35.º disciplina o exame final de estágio;
19. Este institui uma espécie de “sistema de prescrição”, tal como os existentes em qualquer entidade do ensino superior no mundo - vide, por exemplo, o art.º 3.º do Regulamento do Curso de Licenciatura em Direito, em língua portuguesa, da Faculdade de Direito da Universidade de Macau - destinado a assegurar a qualidade dos profissionais forenses cuja acreditação é da competência da AAM;
20. Uma vez que se encontram regulamentados todos os aspectos que devem constar do sistema de acesso e acreditação dos candidatos à advocacia, e cabe a Recorrente, enquanto órgão de direcção daquela “Zelar pelo cumprimento da legislação respeitante à Associação e respectivos regulamentos e pela prossecução das atribuições que lhe são conferidas;”, conforme dispõe a alínea b) do n.º 1 do art.º 29.º dos EAMM (sublinhado nosso);
21. Assim, quanto ao acto ora em causa, esta não teve outra opção senão a de o emitir, uma vez que age no âmbito de um poder legalmente vinculado;
22. Ao emitir o acto em causa, a Recorrida não agiu nas vestes de um órgão com poderes disciplinares;
23. Nem tem o acto em causa qualquer carácter sancionatório;
24. Nem tal acto foi emitido no âmbito de um procedimento disciplinar, nem no âmbito de uma infracção a uma norma de carácter disciplinar ou deontológico;
25. O mesmo é dizer que o Recorrido, na qualidade de advogado estagiário, não violou qualquer dever, não foí sujeito a qualquer processo disciplinar, nem lhe foi aplicada qualquer sanção disciplinar;
26. O acto cm causa trata-se, apenas e tão só, de acto emitido por aplicação de uma norma reguladora do acesso à profissão forense, que se impunha à Recorrente, no âmbito da aferição ou verificação das capacidades dos candidatos - neste caso, o Recorrido - para o exercício das nobres e dignas funções de advogado.
27. Esta verificação foi efectuada ao longo de anos de exercício das limitadas competências como advogado estagiário, por parte do Recorrido, a que acrescem os inúmeros exames finais de estágio a que o mesmo já teve oportunidade de realizar;
28. Também a melhor doutrina sobre o assunto, supra citada em sede de alegaçõs e para as quais se remete para todos os devidos efeitos, refuta a possibilidade de se atribuir natureza disciplinar ao acto ora em causa;
29. A norma que impõe a aplicação da suspensão da inscrição de Recorrido, como advogado estagiário- art.º 35.º, n.º 10, do RAAM- é uma mera norma rcgulatória no âmbito do acesso à advocacia;
30. As normas disciplinares, por seu lado, são reguladoras do exercício da mesma;
31. Existe, pois, uma clara distinção entre ambos os tipos de normas, que não se coaduna com o carácter sancionatório que a douta sentença ora recorrida pretende atribuir à deliberação da Recorrente aqui cm causa;
32. Não podendo ser compreendido o acto ora em causa dentro do âmbito disciplinar, mas antes no âmbito da regulação da profissão, a douta sentença proferida violou o disposto no art.º 30.º, n.º 1, als. a), b), c) e d), do Decreto-Lei 31/91/M, de 06.05, que aprova o EA.
Termos em que:
   deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se procedente o vício de violação de lei, devendo ser revogada a douta sentença ora recorrida, assim se fazendo a necessária
Justiça!

Notificado da motivação do recurso, o requerente contra-alegou pugnando pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.

Subidos os autos a esta segunda instância e devidamente tramitados, o Ministério Público emitiu oportunamente em sede de vista o parecer, pugnando pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
II

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 149º/1 do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

In casu, não há questões de conhecimento oficioso.

Em face do objecto delimitado nas conclusões do recurso, a única questão que constitui o objecto da nossa apreciação é a de saber se o acto de cuja eficácia ora se requer a suspensão tem ou não natureza de uma sanção disciplinar.

Para o Tribunal a quo, a resposta é afirmativa.

É justamente contra esse entendimento sufragado na sentença ora recorrida, a entidade requerida reagiu por via do presente recurso jurisdicional.

Sobre esta questão o Ministério Público emitiu, em sede de vista, o seu Douto parecer, nos termos seguintes:

  Nas alegações do recurso jurisdicional em apreço, a Direcção da Associação dos Advogados de Macau solicitou a revogação da sentença do MMº Juiz a quo traduzida em deferir a suspensão de eficácia pedida pelo Requerente Sr. Dr. A.
   Fundamentando a sua decisão de deferir a suspensão da eficácia da dita a deliberação da Direcção dos Advogados de Macau, o MMº Juiz a quo apontou claramente que “o acto suspendendo reveste os contornos materiais de uma verdadeira sanção disciplinar”, não obstante a que o mesmo não ter a configuração de uma pena disciplinar formal.
  Quid júris?
*
  Com todo o respeito pelo entendimento diferente, inclinamos a colher que o nosso ordenamento jurídico vem ser regido pela regra geral de que todas as sanções administrativas, incluindo as disciplinares, têm por pressuposto imprescindível uma infracção cometida e já constatada, sob pena da invalidade por erro nos pressupostos. E irrefutável é que as penas disciplinares prescritas do Código Disciplinar dos Advogados só podem ser aplicadas a quem tenha praticado uma infracção disciplinar.
  De acordo com a sensata doutrina (Freitas do Amaral: Direito Administrativo, Volume III, Lisboa 1989, p.127): os actos de comando e os ablativos se distinguem, por natureza, dos punitivos, pese embora todos sejam imperativos. O que nos encoraja a inferir que não são punitivos os actos administrativos que produzam, independentemente da prática de infracção, efeitos desfavoráveis aos respectivos interessados, tais como a revogação de actos constitutivos de direitos (por exemplo, a autorização de residência, permanência e de trabalho), as medidas provisórias (art.83.º do CPA), bem como as de polícia – a expulsão e a interdição ou recusa de entrada (vide. Acórdão do TSI no Processos n.º656/2012).
  No caso sub judice, o que sucede na realidade é que a deliberação cuja eficácia viu suspensa pela douta sentença em escrutínio traduz em declarar a suspensão da inscrição do Requerente como advogado estagiário pelo período de um ano, ao abrigo do disposto no n.º10 do art.35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia na redacção publicada no B.O. n.º25 de 21/06/2017 da II Série, que prescreve imperativamente: A reprovação em três avaliações finais determina a suspensão da inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano, após o qual o advogado estagiário deverá sujeitar-se à avaliação final de estágio que venha a ter imediatamente lugar.
  Sejas imputáveis ou não, do que não há dúvida alguma é que as três reprovações sucessivas (em avaliações finais) nas quais o Requerente fica não assumem a natureza de infracção disciplinar, nem podem ser encaixadas no conceito da mesma, mesmo se entende que cada avaliação final constitui acto principal em vez de acto instrutório (Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves, J. Pacheco de Amorim: Código do Procedimento Administrativo Comentado, Almedina 2ª ed., pp.555 a 557).
  Afigura-se-nos que em boa verdade, a suspensão de inscrição consagrada no n.º10 supra aludido é concebida como medida compulsória que se destina a alertar os advogados estagiários já com três reprovações sucessivas em avaliações finais, no sentido de intimar os mesmos para prestarem mais atenção e esforço. A similitude dos efeitos práticos com algumas penas disciplinares não tem a virtualidade de converter a supra-mencionada suspensão de inscrição na natureza da pena disciplinar.
  Chegando aqui, e ressalvado elevado respeito pela melhor opinião em sentido contrário, não podemos deixar de concluir que a sobredita deliberação da Direcção da Associação dos Advogados de Macau não tem a natureza da sanção disciplinar e, em consequência, a douta sentença em questão enferma de erro de julgamento.
***
  Por todo o expendido acima, propendemos pelo provimento do presente recurso contencioso.

Ora, para nós, a única questão de direito delimitada nas conclusões de recurso foi correcta e exaustivamente abordada nesse Douto parecer do Ministério Público acima integralmente transcrito, com quem estamos inteiramente de acordo.

Por isso, não nos resta outra alternativa melhor do que a de aproveitarmos o parecer, convertendo-o na fundamentação do presente recurso, no sentido de que o acto de cuja eficácia ora se requer a suspensão não reveste a natureza de sanção disciplinar, julgando procedente o recurso jurisdicional e revogando a sentença ora recorrida na parte que, com fundamento na natureza de sanção disciplinar do acto em causa, concluiu pela não exigibilidade da verificação do requisito previsto no artº 121º/1-a), nos termos prescritos do artº 121º/3, ambos do CPAC.

E, em consequência, por força da regra de substituição estabelecida no artº 630º do CPC, ex vi do disposto no artº 149º/1 do CPAC, passemos a debruçar-nos sobre a questão de saber se se verifica o requisito a que se refere o artº 121º/1-a) do CPAC.

A este requisito, o Ministério Público já se pronunciou, em sede de vista na tramitação de 1ª instância, nos termos previsto no artº 129º do CPAC, nos termos seguintes:

……
Com efeito e ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, afigura-se que, na realidade, o Requerente não logrou demonstrar que a efectivação da deliberação cuja execução pretende ver suspensa lhe causará prejuízos de dificil reparação, na exacta medida em que a avaliação e reparação dos danos que daquela execução lhe possam advir, a verificarem-se, não serão impossíveis nem, quer-se crer, muito difíceis de efectuar.
Com efeito, e apenas em termos de “prejuízos materiais”, acredita-se que será sempre relativamente simples calcular a efectiva perda de rendimentos que, da respectiva suspensão como advogado estagiário, poderá advir para o Requerente, simplicidade essa derivada também do facto de, conforme refere a Entidade Recorrida, “apenas” lhe estar vedado anunciar-se como advogado estagiário e/ou, em tal qualidade, intervir directamente em processos judiciais ou prestar consultoria jurídica; acresce, ainda e como igualmente referido pela Entidade Recorrida, desde 2019 todos os advogados estagiários com mais de cinco anos de inscrição no estágio - como sucede com o ora Requerente - não são considerados para
efeitos de integrarem as escalas para nomeações oficiosas pelo que, também nesta perspectiva, a existir alguma perda de rendimento do Requerente a mesma seria apenas marginal e derivada de erros/lapsos na respectiva nomeação, atenta a comunicação anualmente efectuada pela Entidade Recorrida dos advogados estagiários que se encontram em tal situação.
Ou seja, o cálculo dos prejuízos materiais1 decorrentes da impossibilidade de prática dos sobreditos actos será (seria) sempre relativamente simples de efectuar.
Paralelamente e no que concerne aos prejuízos para a respectiva formação, quer-se crer que os mesmos não serão de relevar, na medida em que não nada impedirá o Requerente de assistir a diligências processuais - por via de regra, públicas - e/ou de continuar a frequentar o escritório do respectivo patrono, acompanhando o mesmo nos mais diversos actos da prática diária de um escritório de advocacia embora, naturalmente, sem poder praticar os actos reservados a advogados e/ou advogados-estagiários.
Considerando que “Cabe ao requerente o ónus de alegar e provar os factos integradores do conceito de difícil reparação, fazendo-o por forma concreta e especificada, não sendo bastante a mera utilização de expressões vagas e genéricas”2, assim como que igualmente “Cabe ao requerente o ónus da prova do requisito da alínea a) , bem como do nexo da causalidade entre a execução e os prejuízos”3, impõe-se afirmar que o Requerente não terá logrado, de todo, demonstrar que a execução da Deliberação da Direcção da AAM o colocará numa situação de “privação de rendimentos geradora de uma situação de carência quase absoluta e de impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares”4 [importando, a este propósito, referir que apesar de a Entidade Recorrida (cfr. artigo 65.º da contestação junta aos autos) afirmar que o Requerente tem a condição de funcionário público aposentado, tal afirmação é pelo mesmo infirmada].
……

Cremos que é de aderir às pertinentes e sensatas considerações tecidas nesse Douto parecer do Ministério Público.

Ex abundantia, é de salientar que o que foi alegado pelo requerente não é mais do que efeitos jurídicos e as consequências logicamente decorrentes desses efeitos de quaisquer actos que neguem, extingam, restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, ou imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções. O que a lei exige para o efeito do decretamento da suspensão de eficácia ao requerente é o cumprimento de ónus de alegar e provar a dificuldade da reparabilidade dessas consequências logicamente decorrentes desses efeitos jurídicos produzidos com a execução imediata do acto, o que obviamente o requerente não logrou fazê-lo.

E quanto ao alegado dano irreparável adveniente ao requerente do facto de lhe ter sido coarctado o direito aos serviços dos cuidados saúde gratuitos e ao risco permanente de perda de saúde a que está exposta a contingente vida humana, risco que na sua óptica, é agravado, por ele, o ora recorrido, com a idade inferior a 65 anos, ainda não poder dispor dos cuidados de saúde gratuitos facultados pelo sistema público de saúde da RAEM, é de notar isso não é senão as condições em que vivem os residentes da RAEM e o grande número dos trabalhadores não residentes que aqui permanecem, que não beneficiam dos cuidados de saúde gratuitos proporcionados pela Administração da RAEM, o que todavia certamente não quer dizer que, enquanto não tiverem perfeito 65 anos de idade ou não tiverem sido feitos abrangidos nos serviços dos cuidados de saúde gratuitos, essa grande universo dos indivíduos estão a expor-se ao dito risco permanente de perda de saúde e a sofrer, todos os dias, de danos irreparáveis da sua saúde!

Assim sendo, dadas a pertinência e a sensatez do parecer do Ministério Público, não se nos afigura outra solução melhor do que a de louvar aqui esse Douto parecer, emitido em sede da 1ª instância, na parte que se transcreve supra e remeter para os Doutos fundamentos ai invocados, aproveitando-a para servir de fundamentos deste Acórdão, para julgar inverificado o requisito a que se refere o artº 121º/1-a) do CPAC, e indeferir o pedido de suspensão da eficácia do acto determinativo da suspensão do estágio do requerente.

Resumindo e concluindo:

Não reveste a natureza de sanção disciplinar a deliberação tomada pela Direcção da Associação dos Advogados de Macau, que decidiu suspender a inscrição, como advogado estagiário, com fundamento na reprovação em exames finais de estágio.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência conceder provimento ao presente recurso jurisdicional.

Custas pelo recorrido, em ambas as instâncias, com a taxa de justiça fixada em 6UC.

Registe e notifique.

RAEM, 06MAIO2021

Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Mai Man Ieng
1 Nada cumpre referir quanto a eventuais prejuízos não patrimoniais (danos morais) - passiveis de serem considerados quando, pela respectiva gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 489.°, n.º 1, do Código Civil) - pois que também o Requerente nada refere a tal respeito.
2 Cfr. Acórdão do TUI, de 10 de Julho de 2013, proferida no Processo n.º 37/2013.
3 Cfr. Viriato Lima e Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2015, pág. 348.
4 Cfr. Decisão do TUI proferida a 25 de Abril de 2001, no Processo n.º 6/2001, sendo relator Viriato Lima.
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Proc. 281/2021-22